Os resultados das mais recentes eleições nos países democráticos dão conta de dois aspetos. Primeiro, a existência de clivagens internas tão pronunciadas que levam a sociedade a dividir-se em dois blocos antagónicos. Segundo, o enorme crescimento do populismo cultural ou identitários. Uma realidade a que os Estados Unidos, enquanto potência liderante da Ordem Liberal, estão condenados a não escapar.
De facto, a duas semanas da escolha do novo inquilino da Casa Branca, as previsões apontam para uma espécie de empate técnico. Uma questão que só ficará resolvida após a contagem dos últimos votos em sete estados: Arizona, Geórgia, Michigan, Nevada, Carolina do Norte, Pensilvânia e Wisconsin. Na verdade, nos restantes estados a vitória do candidato republicano ou democrata não está em causa. Uma constante mesmo que os candidatos destes partidos não fossem Donald Trump e Kamala Harris, pois esses estados votam no partido e não no candidato.
Há quase dois séculos, Alexis de Tocqueville escreveu Democracy in America. No ano passado, colaborei com um capítulo no livro US Democracy in Danger. The American Political System under Assault. O longo espaço temporal que mediou entre as duas obras e as grandes alterações tanto na arena global como no plano interno não foram suficientes para alterar, na maioria dos estados, o espírito que preside ao sentido de voto dos eleitores norte-americanos.
A circunstância de a quase totalidade dos estados optarem pelo modelo que atribui todos os representantes ao vencedor faz com que o denominado voto popular não se revele decisivo. Dito de outra forma: pode ser eleito como Presidente um candidato que não obtenha a maioria de votos a nível nacional. Algo que já aconteceu cinco vezes, a última das quais quando Hillary Clinton, a vencedora do voto popular, foi preterida em favor de Donald Trump, circunstância que conduz a críticas sobre a falta de democraticidade do ato de eleição indireta do Presidente pelo Conselho Eleitoral.
Críticas provenientes, sobretudo, de democracias nas quais, no que se refere à eleição presidencial, vigora o sistema eleitoral maioritário a duas voltas e onde o país funciona como um único círculo eleitoral, como é o caso português. Por isso, é grande a tentação para olhar para a eleição presidencial norte-americana recorrendo a lentes europeias. Um erro de perspetiva que não toma na devida conta os estudos de analistas que conhecem profundamente a sociedade dos Estados Unidos.
Estudiosos como Charles Wright Mills que explicou que na Terra do Tio Sam todas as decisões passam pela confluência de interesses de três elites: a militar, a económica e a política. Por isso, a fórmula democrática one man, one vote cedeu lugar ao modelo one dollar, one vote.
Os sociólogos já dissecaram a sociedade norte-americana em todas as dimensões ou variáveis: étnica, económica, religiosa, etária, género, etc, etc. O cruzamento dessas variáveis já permite antecipar o sentido de voto a nível coletivo, embora ressalvando a existência de opções individuais que não seguem o sentido geral de voto.
Ora, é na dimensão individual que deverá ser colocado o enfoque. Dizer que os homens, ao contrário das mulheres, preferem votar em Trump, tal como o eleitorado não branco prefere Kamala é manifestamente insuficiente. A exemplo do que se passa quando o critério da escolaridade é chamado à colação ou quando a análise passa pela posição dos candidatos relativamente aos conflitos em curso na Ucrânia e, principalmente, no Médio Oriente.
O eleitorado dos Estados Unidos pensa com os bolsos e decide em função da economia e da segurança. Por isso os eleitores, qualquer que seja a sua condição, querem saber qual a política económica do futuro Presidente e as medidas que irá tomar no que concerne à imigração e ao aumento da criminalidade e consequente diminuição da segurança. A questão da política externa passa, em grande parte, ao lado dos eleitores. De facto, como menciona Denny Roy (2023), uma pesquisa da Pew Research de 2021 questionou os americanos sobre o objetivo que a política externa dos EUA deveria priorizar e, numa lista de vinte, o objetivo que passava por promover a democracia nas outras nações quedou-se pelo último lugar.
A escolha do novo Presidente dos Estados Unidos é tão importante neste Mundo de Múltiplas Ordens que todos os cidadãos dos países pertencentes à Ordem Liberal deveriam ter direito de voto. Porém, tal não vai acontecer por maior que seja o desconforto da opinião publicada. Uma opinião que ainda não se habituou à ideia de que em cada comício ou evento o elemento mais importante passa pelas quatro formações imaginárias, designadamente por duas – quem sou eu para lhes falar assim? – e – quem são eles para que lhes fale assim?.
Trump? Kamala? A incerteza está no ar!