Surpresa, tragédia, incredulidade e choro

A vitória de Donald Trump desnudou várias realidades que já estavam à mostra. A mais curiosa de todas é a patética incapacidade das várias comunidades ditas de esquerda perceberem a realidade e a história. A mais penosa é o estado de angústia e despeito mal disfarçados dos seus jornalistas afiliados, dos que são cronistas do seu próprio desejo e que todos os dias, sem fadiga e sem vergonha, insistem em descrever o que se passa nas suas cabeças como se fossem coisas que acontecem no mundo real.

E, não menos insofrida, a danação cívica dos grandes líderes de pequenas causas, dos que detêm modestas empresas familiares de política, de todos os velhos e moças que em bloco se derramaram nas ruas de Nova York e becos de Lisboa, clamando.

Porém, acima de tudo isso, o mais tristemente risível é a erudição cheia de ressentimento com que aqueles personagens magoados fazem a exegese dos acontecimentos – tão argutamente como o poderiam ter feito se lhes tivessem perguntado antes. E também a altiva resignação com que aceitam a sandice do povo, a convicção com que adiantam uma nova data para o próximo fim do mundo, e a coragem que têm em ainda viver no meio disso tudo. Encontram-se em negação das suas próprias contradições e, enrodilhados nelas, reproduzem a vida triste do bicho-da-seda doméstico – do seu casulo não sairá uma borboleta e a sua vaidade de lepidópteros vai acabar numa pequenina múmia.

Da outra banda os conservadores, a direita, todos aqueles que sob diversos nomes venceram as eleições na América, exultam porque foi uma trepa choruda a que infligiram à senhora Kamala. Mas deviam ser mais comedidos porque não vão ter a vida fácil. Também eles se encontram mergulhados em inúmeras contradições, ainda mais e mais dispersas. O senhor Trump tem a subtileza cirúrgica de uma pata de elefante, orienta-se por um id do tamanho do Alasca (onde ganhou) e um super-ego do tamanho de Rhode Island (onde perdeu). Reuniu a seus pés elevadas percentagens de eleitores descontentes e com medo, uma base de apoio friável. Todos os seus machos latinos, os seus americanos profundos com vacas e fatos-macaco, foram suficientes para somar mandatos a uma terça-feira, mas podem ser inaptos para consolidarem políticas durante quatro anos.

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Os Estados Unidos

A vitória de Trump significa mais do que uma troca de poderes que ciclicamente ocorre entre republicanos e democratas. O bipartidarismo tem nos Estados Unidos uma clareza que não existe em outros países ocidentais. O sistema político americano evoluiu sempre à custa de questões prementes e significativas: o aparecimento dos primeiros partidos, logo após a declaração de independência, como polarizadores de ideologia e do apoio popular; a cisão dentro do primitivo partido republicano-democrata com a autonomização de um partido democrata mais populista e anti-elitista; a criação do partido republicano como reacção ao esclavagismo, absorvendo a facção anti-esclavagista do partido democrata e prolongando um longo período de domínio republicano; a recuperação da dominância política por parte do partido democrata na sequência da grande depressão e do New Deal.

A Europa, velha e com um passado antigo e complexo, tem uma história dos partidos diferente. A Europa sedimentou presunções muito diversas e abriga, na generalidade dos países, uma rede prolixa de partidos que representam variados nichos ideológicos. As eleições nos países europeus podem resultar numa pulverização de mandatos que faz depender a governabilidade de um ou dois pequenos partidos marginais. As campanhas eleitorais são uma babilónia de súplicas e antevisões catastrofistas, apelos ao voto identitário por parte de pequenos grupos de amigos e ao voto útil por parte dos partidos tradicionais. Prevalece na Europa – onde convivem a actualidade e as memórias de monarquias, ditaduras, libertarismos, identidades nacionais e religiosas – a ideia de que as democracias devem acolher em sede de eleições todas as tendências presentes na sociedade e promoverem, depois de apurados os votos, uma negociação de estabilidade que permita transferir para as diversas instâncias do Estado uma representação proporcional de todas elas.

Os partidos políticos americanos implantam-se numa sociedade com uma história bastante mais recente e onde sempre foram predominantes os valores da construção e do crescimento. O passado que ainda pesa na definição ideológica – a reconstrução capitalista após a grande depressão, a vitória na II Guerra Mundial e o reforço da influência no ocidente, as derrotas militares no Vietname e Afeganistão, o 11 de Setembro – é um passado muito recente, de grande ressonância emocional mas pouco divisivo. Os temas dos partidos políticos americanos reflectem tradicionalmente interesses e preocupações bem delimitadas, são facilmente reconhecidos pelos americanos, as suas propostas são inteligíveis e é expectável uma maior congruência entre elas e o que virá a ser o exercício governativo. Ao mesmo tempo, permitem um quadro de decisão simples a uma maioria de americanos que habita fora dos grandes centros ideologizados, que não é erudita culturalmente e decide segundo critérios pragmáticos. É essa relativa permanência de princípios matriciais que está na origem da fidelidade de famílias, regiões e estados a um ou outro dos dois grandes partidos.

Essa realidade tem-se nublado com a disseminação de ideologias compósitas de alinhamento à esquerda no seio da sociedade urbana e universitária americana. As grandes referências da esquerda tradicional não tiveram muita influência nos Estados Unidos, onde o imaginário de luta não foi muito além de Sacco e Vanzetti, e a realidade esteve sempre devedora das cumplicidades embaraçosas entre sindicalismo e mafia. O espaço aberto na sociedade americana para as políticas identitárias era muito maior, era a terra perfeita. A exuberância de nacionalidades, culturas e ideologias, forneceu as sementes que faltavam. A América onde proliferavam igrejas, cultos e manias de inspiração religiosa, habitualmente pouco interventivos a nível global e só salientes em casos esporádicos de loucura – como os episódios terríveis associados ao templo de Jim Jones ou o culto de Manson – deu lugar a cultos profanos muito activos e politicamente ambiciosos. A imprensa americana urbana, as principais cadeias de televisão e artistas de vários tipos, com enorme visibilidade e influência, deram a diversos fenómenos de emergência focal uma aparência de presença alargada. Tudo isso foi possível pela agressividade e pelo discurso ameaçador dos seus próceres – o fenómeno Me too terá sido o mais espantoso – e pela vulnerabilidade de opinion makers inseridos em microcosmos “criativos”, com escassa independência intelectual. Universidades, redes sociais e media transformaram-se em centros produtores de opinião, cada um com os seus temas particulares mas em conjunto comprometidos com um pensamento em rede penalizador da autonomia e da liberdade de pensamento.

As causas

O tardo-feminismo incorporou causas panfletárias como o combate ao “machismo tóxico” e ao“patriarcado”, patrocinou o alargamento demencial dos ingredientes LGBT+, arrebanhou as mulheres trans – as que tinham sido ou passaram a ser -, e assumiu uma atitude de combate que elegeu todos como inimigos, desde que divergissem pouco ou muito das suas ideias. A causa doaborto, possível, fácil e gratuito pelo menos até às 24 semanas de gravidez (apenas distante 3 fáceis meses do infanticídio post-parto) tornou-se o item mais relevante na lista de conquistas que as mulheres precisam para garantir a liberdade do seu corpo. A identidade de géneros com a desbiologização dos homens e mulheres, a despatologização de graves condições de doença, o culto da descaracterização natural e da transformação do corpo, levou a que a afirmação da identidade sexual segundo uma matriz binária se tornasse uma impertinência intolerável para a nova esquerda. As identidades raciais e as suas culturas de rodapé, particularmente entre a população negra, recuperaram os ressentimentos do esclavagismo, desenquadraram-no da história e fizeram dele um pecado branco para o qual urgia legitimar a morte, a morte do homem branco, simbólica ou física se as circunstâncias o proporcionassem. O racialismo afro-americano, frequentemente o racismo, extremou-se pela contestação da violência pontual de agentes da polícia e conseguiu emancipar da presença policial territórios negros onde o crime e a violência são, hoje, aterradores. A revisão da história dos homens e das civilizações numa perspectiva justicialista, a desvalorização de uma metodologia histórica isenta e objectiva, a promoção de versões grupais dos acontecimentos e a convicção da sua legitimidade, tem abalado as convicções nacionalistas e construído uma história de todos contra todos.

O cancelamento sistemático de todas as expressões contrárias a uma ou várias das convicções da nova esquerda destruiu carreiras universitárias, adulterou clássicos da literatura e espalhou a mediocridade e o medo nos campi universitários, nas editoras e nas ruas.

Europa

Na Europa, aquelas excrescências de pensamento viriam a encontrar enquadramento fácil em partidos marginais. Os partidos de esquerda radical viviam crises profundas de identidade após o desmoronamento de múltiplas peças agregadoras, ou apenas simbólicas, do seu edifício teórico – i.e. e por junto o operariado, a luta popular revolucionária, o muro de Berlim, as foices, os martelos e as músicas do Padre Fanhais. A assimilação da teorização operada por Gramsci e pela Escola de Frankfurt apresentava-se difícil. Eram muitos homens a lamber as feridas do comunismo transitário desde Marx a Estaline, cada um para seu lado, a pensarem e a fumarem várias coisas. A compatibilização do activismo político optimista de Gramsci com a reflexão social alargada, diletante e pessimista, da escola alemã, dividia os activistas. Foi possível à esquerda fazer coexistir o terrorismo sangrento com o libertarismo hippie e o Maio de 68, a reflexão maníaca nas universidades e recrutamento clandestino de operacionais.

Os novos temas da esquerda são muito menos exigentes intelectualmente, em rigor são acessíveis à inteligência fanatizada e pouco provida da generalidade dos activistas e compreensíveis por cada um dos segmentos de povo a que dizem respeito. Foi toda essa bateria de causas que partidos de inspiração marxista, agonizantes na Europa, incorporaram nas suas teorias muito rarefeitas e lhes deu alguma influência. A imigração crescente a partir de territórios desprotegidos e culturalmente estranhos, com enorme impacto desestabilizador nas sociedades de acolhimento, contribuiu para o armamentário dos partidos de esquerda com uma utilíssima componente miserabilista. A recuperação de franjas do eleitorado por parte de vários partidos de extrema esquerda atribuiu-lhes um peso desproporcionado nas decisões políticas requerendo maiorias. O modo como os partidos tradicionais têm resolvido a sua necessidade de maiorias está a alterar significativamente a sua consistência ideológica e vai criar distorções na adesão dos eleitores ainda mal definidas.

Estados Unidos

Nos Estados Unidos, onde o contributo dos filósofos e teorizadores não-americanos é menos estimado, não havia necessidade, nem fazia sentido, conciliar o percurso tradicional dos partidos comunistas – as suas lutas operárias, sindicatos, burguesia, todo o panteão dos templos da esquerda – com estratégias que, sendo novas, quisessem manter a sua implantação simbólica no imaginário antigo. Nas universidades americanas, em todo o lado onde era possível consumir algum tipo de droga libertadora, em todas as caves e clubes abandonados por Woody Allen, formaram-se ideias. O processo criativo que formou uma espécie de esquerda nova foi tão independente de qualquer tradição histórica que não constituiu verdadeiramente uma renovação – uma noção que é mais adequada e clara quando referida à esquerda europeia. Como é da tradição cultural americana, a arquitectura ideológica da nova esquerda foi muito mais prática, mais fácil, relacionável com objectos e causas de uso comum e com aplicabilidade imediata.

Nos Estados Unidos não existem partidos de esquerda com peso político. Os ideários de esquerda e direita, assim como as suas causas esporádicas, acomodam-se aos partidos democrata e republicano com perfeição variável. Aos gurus das ideias emergentes e aos seus apoiantes foi necessário um partido de aluguer para as suas causas. Para os dois grandes partidos interessou, interessa sempre, agregar causas ao seu corpo ideológico, desde que essas não o desvirtuem em excesso e arrastem um peso eleitoral compensador. Nas eleições de 2024 o Partido Democrata acantonou as causas da nova esquerda segundo aqueles dois pressupostos, aceitabilidade e rendimento eleitoral, e alimentou com elas um ruidoso discurso de vitória.

O partido democrata fez mal as suas contas. Os votos que ganhou pelo acolhimento de ideias identitárias e com outros defeitos foram em número inferior aos que perdeu pelo mesmo motivo. Transpondo do quadro de resultados eleitorais para a sociedade real quer dizer que o potencial de rejeição das ideias da esquerda radical foi muito maior do que a sua capacidade para concitar adesão. A aritmética contida numa conclusão simples como essa não tem nada de novo, assim como a conclusão. Sempre foi assim, é assim e, se a humanidade não cair num estádio de amnésia terminal, será sempre assim. Mas a tendência para desafiar essa evidência não vai desaparecer. A esperança dos políticos num desvio amnésico das pessoas costuma acompanhar-se de uma confiança imoderada na sua jeriquice. O partido democrata confiou nisso. E como acreditou estar em maré de sorte aceitou a continuidade de Biden numa primeira fase e a descontinuidade com Kamala numa fase ulterior.

As causas da derrota do Partido Democrata foram dissecadas abundantemente. A análise e as suas conclusões não são difíceis, e não são muito variadas. De um modo geral reflectem nos seus pormenores a predominância mediática das narrativas de esquerda e dividem-se entre um defeito de liderança, uma excessiva qualidade do discurso e uma horrível falta de nível do eleitorado. A liderança que falhou teria sido a de Biden, um cavalheiro que nunca terá percebido porque foi mantido no poder, porque foi apoiado na sua recandidatura, e porque é que foi despedido. A tremenda qualidade do discurso político ter-se-ia revelado muito acima das inquietações acanhadas do povo, um discurso de uma excelência que nem a mediocridade de Kamala conseguiu disfarçar. Finalmente, o povo, aquela metade mais vários milhões de deploráveis inexplicavelmente chamados a votar, não atendeu ao que devia nem a quem devia.

Em resumo, o povo americano não compreendeu Kamala nem cedeu ao seu sorriso – também não atendeu a Taylor Swift, a Madonna e a Beyoncé, mulheres de underwear e de pensamento -, o povo não percebeu os desafios que o mundo moderno coloca e rendeu-se a preocupações triviais malandramente inventadas por Trump, como o emprego e a segurança.

O senhor Biden realmente não deve ser julgado, é mais decente referir que foi obrigado a faltar à eleição para presidente por razões imprevistas de ordem pessoal. A senhora Kamala não beneficia da mesma impunidade. Não sofreu nenhum impedimento súbito, a senhora Kamala sofre de vários problemas pessoais não recentes. A senhora Kamala é uma tola amestrada, de sorriso assustador, postiço e de má qualidade, auto-limitada à sua condição de mulher furta-cores. A senhora Kamala foi levada a acreditar, ou acreditava genuinamente, que seria eleita por uma maioria de mulheres negras e filo-palestinianas, ambicionando a liberdade de estraçalharem bébés in-utero e a possibilidade de lerem romances despojados de mulheres gordas. Mas também a senhora Kamala não explica a derrota dos democratas.

O partido democrata perdeu as eleições porque teve opções erradas, desvirtuou a sua natureza, abraçou políticas identitárias e divisionistas, não recusou o cancelamento, a perseguição e a censura. Assim até o Partido Republicano ganhava. E ganhou.

O mundo e a liberdade

Desta vez o mundo salvou-se à pele. Foi necessário que os Estados Unidos se sacrificassem consentindo em eleger Donald Trump, um passarão impulsivo e narcisista. Não é possível prever o destino próximo tendo em atenção a imprevisibilidade do homem e a complexidade dos problemas que ele se propõe resolver como se fosse o CEO do mundo. A probabilidade de não vir a acontecer nenhuma tragédia é maior – afinal, Trump é um experimentado homem de negócios e a política mundial, que sempre foi um negócio entre países, lida hoje muito mais com dinheiro do que com honra e patriotismo.

O mais relevante das eleições para a presidência americana foi a tentativa de  ganhar votos marginais através da incorporação no seu programa de ideários radicais de esquerda. Não resultou. Mas a tentação existia, foi experimentada e vai continuar a existir. Os cenários europeus para eleições têm-se mantido protegidos pela existência de partidos posicionados nos fundilhos esquerdo e direito do espectro. Mas é latente a vontade de os grandes partidos comprometidos com a liberdade os reconhecerem e aceitarem as suas propostas, para crescerem eleitoralmente. Está a acontecer em Portugal. O Partido Socialista está a deixar-se permear pelos delírios da extrema-esquerda e o Partido Social-Democrata tem resistido com dificuldade aos apelos para incorporar políticas de direita radical. Pode acontecer que essa solução impúdica diminua a pulverização de mandatos e torne mais simples a constituição de um governo. Mas não será um governo estável. Qualquer cedência a partidos radicais apenas transportará para o momento da governação os impasses que existiam antes.

Nos Estados Unidos o bipartidarismo torna fortíssima a tentação de alianças ideológicas espúrias. Nos sistemas multipartidários europeus essa tentação é incompreensível. É sempre melhor não ter governo do que ter um governo mau ou paralisado. A gestão corrente da coisa pública tem resultado bem, sempre que os partidos se tentam entender à porta do poder e existe uma administração experiente que trabalha sem compromissos ideológicos excessivos.