Os economistas centram-se, naturalmente, no desempenho das variáveis económicas. Mas nem tudo o que se manifesta nessas variáveis provém apenas da economia. Como actividade humana, a economia é o produto social da acção humana. E como todas as criações sociais nascem de ideias, é, pois, no campo das ideias que têm que ser buscadas as causas mais fundas do que é visto retratado nas variáveis económicas.

Um carro, uma casa, uma praça, uma empresa, um contrato, uma organização política, uma lei, um sistema fiscal, tal como uma pintura, um livro, ou uma sinfonia, começam por ser uma ideia e é a partir desta que serão convertidos em obra. O mesmo se passa com as organizações e instituições económicas e as suas acções.

As ideias são como que os modelos (blueprints) do que existe na realidade social, assim como os quadros mentais (ideologias) de onde provêm são como mapas que formatam os percursos do pensamento. E é da qualidade das ideias que formam a cultura dos povos, e dos quadros mentais que as produzem, que depende o sucesso do seu percurso pelas circunstâncias que a sua história atravessa.

Tal como modelos mal desenhados, também ideias erradas criam produtos disfuncionais. E, da mesma forma que mapas defeituosos nos desviam do destino desejado, também quadros mentais inconsistentes orientam as ideias para destinos de mau sucesso. Assim, para se melhorar os sucessos sociais, há que procurar, no campo das ideias, aquelas que, sendo erradas, atrasam ou bloqueiam o caminho. E perceber que argumentar pelas ideias certas – desmontando mapas e modelos errados – é a melhor via para melhorar consistentemente a vida das pessoas.

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Este é um terreno que as elites mais dadas à tecnocracia têm descurado, deixando que se tivesse instalado no espaço público um mapa ideológico enviesado e inconsistente com as ambições de progresso e justiça sociais que se desejam. Predominantemente assente nas correntes neo-marxistas de inspiração gramsciana, esse mapa ideológico funciona como uma espécie de sistema operativo das opiniões no espaço público. Assim como qualquer sistema operativo rejeita os softwares incompatíveis com as suas regras, também este sistema se abre às ideias para a condução da vida social e política que são conformes com os seus princípios, “licenciando-as” como aceitáveis e dando-lhes eco amplificador, enquanto se fecha às desconformes, desqualificando-as e ostracizando-as.

A fácil instalação deste enviesado mapa ideológico não foi forçada, mas decorreu apenas do diferente empenhamento das correntes de opinião. Enquanto os seus promotores são fortemente empenhados e exímios utilizadores das técnicas de propaganda –aquilo a que, na gestão, chamamos de marketing –,  os defensores dos guias alternativos e mais propícios a produzir melhores resultados sociais, desvalorizam a acção nesse terreno, considerando que as suas competências são melhor aplicadas a criar valor económico. Esquecem, porém, que as condições dentro das quais se pode criar valor económico são definidas pelo sistema operativo ideológico que estiver instalado na sociedade e, sobretudo, na esfera política. Como a natureza tem horror ao vazio, a militância de uns e a desistência de outros resultam na fácil instalação do mapa dos primeiros como sistema operativo da conversação no espaço público.

A instalação deste “sistema operativo” é também muito facilitada, e os seus efeitos ampliados, pela pulsão populista que tem vindo a alastrar-se na sociedade e que é alimentada por, pelo menos, dois factores. O primeiro é a vida em ritmo acelerado, com cada vez mais reduzidas disponibilidades de atenção, e onde o imediato, e a própria instantaneidade, acabam por predominar na apreciação dos acontecimentos, que se sucedem a uma cadência avassaladora e difícil de acompanhar equilibradamente. Neste caldo, as emoções tornam-se no primeiro, e mais importante, filtro de avaliação dos acontecimentos, obnubilando o papel da razão e comprimindo o tempo para reflexão. Centrar mensagens em pretendidos efeitos emocionais tornou-se na mais eficaz orientação comunicacional, sabendo que o mais demorado tempo da razão não dará azo a reagir em prazo útil, pois esse já terá sido, entretanto, preenchido pela sucessão de outros acontecimentos, que consumiram a disponibilidade de atenção e despertaram novas emoções. Os acontecimentos são descontextualizados e é-lhes retirado o sentido das proporções, tudo para maximizar emoções primárias e subjugar a razão.

O segundo factor, alcandorado no anterior e na prevalência das redes sociais, é aquilo a que Tom Nichols chamou “a morte da expertise”, ou a campanha contra o conhecimento fundamentado. Segundo o autor, o espaço público – basta ver o “comentariado” – é cada vez mais dominado por uma variedade de pessoas mal informadas, que desdenham da educação formal, da experiência e da racionalidade desapaixonada e demonstram o viés cognitivo conhecido como efeito Dunning-Kruger. Segundo este, pessoas com conhecimento ou competência limitados num determinado domínio intelectual ou social tendem a sobrestimar muito as suas capacidades nesse domínio. Argumentando que tudo são construções sociais e que cada um tem o direito de construir com os materiais que quiser, desconsideram o saber fundamentado e exibem o que o autor considera o elemento mais perturbador deste processo, que não é a falta de conhecimento per se, mas a arrogância sobre essa falta. Este processo de desconstrução do saber fundamentado acaba por funcionar como uma espécie de Lei de Gresham das ideias, levando a que a desinformação prevaleça sobre o conhecimento.

É, pois, deste sistema operativo que emanam as ideias cuja aplicação gera os resultados económicos e sociais que nos entretemos a discutir tecnicamente, pouco se dando conta de que, nessas condições, e trabalhando com modelos defeituosos, a maior aspiração possível, como qualquer mecânico experimentado sabe, é a de ir dando uns jeitinhos para atamancar a coisa.

Se a cerca das “ideias aceitáveis” sobre o funcionamento de uma economia de mercado for inconsistente – exibindo hostilidade à iniciativa privada, ao lucro e à acumulação de capital –, não se pode esperar que a economia se desenvolva para servir as pessoas como se deseja. Uma tal hostilidade ideológica não pode atrair investimento; sem investimento não cresce o capital produtivo; sem este não se melhora a eficiência económica e a produtividade; e sem esta não é sustentável subir salários para melhora a vida de quem trabalha. Assim, não nos podemos admirar que a hostilidade ao lucro e à acumulação de capital tenha contribuído para o estabelecimento de uma estrutura económica assente em micro-empresas, que ocupam 44% do emprego e absorvem cerca 1/3 do capital social das empresas não financeiras, produzindo pouco mais de 20% do VAB do conjunto, com uma produtividade de pouco mais de 1/3 do universo restante. Tal hostilidade manifesta-se entre nós, por exemplo, num sistema de IRC progressivo, que taxa progressivamente (desencorajando) a acumulação de capital nas empresas.

Esta estrutura económica constitui uma pesada âncora que afunda a produtividade e os salários de toda a economia, podendo dizer-se, sem excesso, que a adversidade ao lucro e ao capital é a principal responsável pelos baixos salários de que o País se queixa e pelo êxodo de uma boa parte da juventude talentosa. Só com muitas grandes empresas nacionais, rentáveis e com escala, se poderá levantar essa âncora. Mas, para poderem ganhar dimensão e ser mais eficientes, as empresas precisam de ser lucrativas e atrair capital. Ou seja, precisam que as ideias dominantes na esfera político-mediática não sejam adversas a essas condições.

Assegurar uma justa distribuição, combater a pobreza e as desigualdades injustificadas são importantes preocupações sociais e devem assumir-se como objectivos políticos fundamentais. Mas, para distribuir riqueza com justiça, é necessário, primeiro, criá-la com eficiência. E, para isso, os incentivos e as regras devem estar alinhados com os objectivos. Caso contrário, acaba-se apenas a distribuir pobreza.

Mas isto não se muda, insisto, se não se mudar a estrutura ideológica que condiciona as escolhas políticas. Se a sociedade civil desiste de lutar por um campo mais alargado de “ideias aceitáveis”, por entender que esse trabalho não é digno de elites mais preocupadas com os desafios da gestão empresarial, a disputa política fica limitada ao espaço restrito das ideias “licenciadas” pelo sistema operativo a que fiz referência, mesmo que essas ideias sejam erradas.

Uma acção eficaz neste domínio requer um investimento sério em think tanks empenhados na produção e divulgação de pensamento sistematizado, através do estudo, reflexão e sua comunicação. Esse investimento, por sua vez, requer capacidade (e vontade) de financiamento. E este é o campo de onde a elite empresarial se tem ostensivamente abstido. Talvez por receio de hostilizar o Leviatã e sofrer as consequências.

03/07/2024