O que perturba as pessoas não são as coisas que acontecem, mas as opiniões que se formam sobre as coisas que acontecem.
Epiteto

O livro Factfullness, de Hans Rosling, publicado há cinco anos, foi-me altamente iluminante. Primeiro, porque me fez perceber que o mundo é muito melhor do que a imagem que praticamente todos têm dele. Passo a passo, o mundo vai melhorando e, apesar de enfrentar grandes desafios, tem feito um progresso enorme. Não obstante essa realidade, a perceção que temos é negativamente enviesada e mais pessimista em quase tudo, como níveis de pobreza, condições sanitárias, acesso à educação, fome, condições de segurança ou ameaças. Enviesamento percetivo que acaba por formatar o nosso pensamento e distorcer muitas escolhas.

Segundo, porque me explicou por que é que a imagem que formamos do mundo (e de muito do que nos envolve) é tão negativamente inclinada. Por um lado, porque as nossas percepções são facilmente influenciadas por instintos defensivos, como o da (inconsciente) generalização, que nos leva a extrapolar para o geral, projectando desproporcionadamente, observações assentes num pequeno número de factos incomuns, ou, mesmo, num único facto. E o de negatividade, que nos leva a destacar mais facilmente – focando atenção e retendo na memória – o que de mau acontece, face ao bom.

Por outro lado, porque esse viés cognitivo estimula a orientação dos mídia mais para o que corre mal do que para o que corre bem. Com o inconsciente desvio da nossa atenção para o que é mau, centrar os noticiários no que corre mal, apelando à emoção, prende mais a atenção do público e “vende” mais. Uma vez que o que sabemos sobre o que vai no mundo provém, sobretudo, do que relata a comunicação social, esta obliquidade informativa, inscrita na natureza das coisas, e aliada aos referidos instintos, explica facilmente a visão negativamente inclinada que formamos Seria bom, pois, para o bem estar social do país e do mundo, que todos – e em particular os mediadores da informação que alimenta as percepções sociais – conseguíssemos manter o sentido das proporções entre o que corre mal e o que corre bem do que nos cerca.

E por fim, porque mostrou a existência de um outro factor – o activismo (ou lobismo) de causas –, que se alavanca nas mencionadas inclinações de enviesamento cognitivo, para intencionalmente deformar as percepções sociais da realidade e desencadear reações emocionais que favoreçam as sua causas. Distorcer factos, insinuar sem demonstrar, usar designações colectivas para referir situações singulares, sem as identificar, ou sugestionar a projecção mental desproporcionada de episódios sem representatividade estatística, ambos para sugerir abrangência universal no domínio visado, tudo isso são técnicas que tais activismos aplicam recorrentemente para distorcer as percepções sociais, e que os mídia reproduzem sem questionar, amplificando-lhes o efeito. Tudo para criar alarme social na opinião pública e estimular as pulsões populistas, activas ou latentes, dos agentes políticos, instigando-os a acções, nem sempre ponderadas, em prol das causas promovidas.

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E assim somos conduzidos, por deliberadas distorções da realidade e desproporcionadas projecções do que corre mal, a formar visões negativas e pessimistas do mundo que nos rodeia. E a desencadear acções que, por erradamente fundadas, acabam a fazer mais mal ao que está bem do que bem ao que está mal.

Dou dois exemplos simples. A nível mundial, e contrariamente à percepção dominante, a população que vive abaixo do limiar de extrema pobreza é inferior a 9% do total, quando há quatro décadas era mais de 36%; 2/5 da população mundial tem excesso de peso; e morre mais gente por excessos de comida, do que pela sua falta. A nível interno, e também ao contrário da profunda crise de que os noticiários e opiniões publicadas nos foram dando conta, ao longo do ano que passou, o que as estatísticas recentemente divulgadas pelo INE mostraram é que 2022 foi um ano de prosperidade. Prosperidade declinante ao longo da segunda metade do ano, é certo, mas prosperidade apesar de tudo. Sem com isso se desvalorizar situações dramáticas que continuam a existir, mas são socialmente contidas.

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Apesar da inflação acelerada e da perda de termos de troca provocada pelos choques externos, o consumo das famílias cresceu quase 6%, o que não acontecia desde 1991, estando já bem acima dos valores de 2019; as exportações aumentaram 16.7%; e o PIB, apoiado em ambos, cresceu 6.7%, valor que também já se não verificava desde 1990. E mesmo o declínio verificado no consumo de bens alimentares, noticiado como dramático e reminiscente do período da troika, não é mais do que o resultado da normalização da vida económica, com o regresso ao trabalho presencial nos serviços, depois de um prolongado (ainda que intermitente) período de confinamentos e extensivo recurso ao teletrabalho. Neste período, muitas pessoas passaram a cozinhar as próprias refeições em casa, aumentando significativamente o consumo de bens alimentares, enquanto o consumo de tudo o resto declinava, como se pode ver no gráfico junto. Com o regresso ao trabalho presencial, as mesmas pessoas voltaram a substituir os seus cozinhados pelo consumo de serviços de restauração (onde os bens alimentares são contabilizados como consumos intermédios). Assim, o consumo de bens alimentares diminuiu, dando lugar ao consumo de serviços (de restauração), que no gráfico estão incluídos no grupo “o. correntes e serviços”.

Por outro lado, o boom da procura – suportado no consumo interno, na “explosão” turística e nas demais exportações – gerou também um boom de vendas das empresas e um fortalecimento das respectivas margens. Portanto, o ano de 2022 correu muito melhor, económica e socialmente, do que dele contam.

A desaceleração verificada ao longo do ano, bem como as condições envolventes, sinalizam que em 2023 a situação deverá endurecer, sobretudo para a vida das famílias. A inflação continuará a corroer os rendimentos reais e a subida das taxas de juro continuará também a tornar mais difícil gerir os orçamentos das famílias endividadas, podendo deixar algumas no limiar da sustentabilidade. As famílias endividadas, todavia, e para se ter a noção das proporções, são cerca de 30% do total e situam-se predominantemente na classe média e média alta, como mostrou o Banco de Portugal. A actividade económica deverá abrandar com muito provável aumento do desemprego. Mas isso será, provavelmente, o que acontecerá em 2023, e não poderá deixar de ser visto em cima da prosperidade criada em 2022.

Esta prosperidade não pode, todavia, desvalorizar a degradação a que se tem assistido na qualidade da prestação de serviços públicos e da governance pública, em geral, ambas bem reais, e mais incompreensíveis face ao descrito cenário económico. Convém, por isso, que nos centremos nos verdadeiros problemas e na sua solução.

Seria bom, pois, para o bem estar social do país e do mundo, que todos – e em particular os mediadores da informação que alimenta as percepções sociais – conseguíssemos manter o sentido das proporções entre o que corre mal e o que corre bem na vida social e perceber que, apesar de haver sempre coisas que correm mal, a realidade, no geral, corre melhor – por vezes muito melhor – do que nos tentam fazer crer: O mundo é melhor do que parece!

6 de Março de 2023

Gestor e professor universitário