O recente contributo da Senhora Embaixadora da Ucrânia para a discussão pública sobre a tragédia ucraniana de 1932-1933 distingue-se por insistir no imperativo de utilização do conceito de genocídio e do termo “Holodomor” (“matar pela fome”) para nos referirmos ao fenómeno. No artigo que tinha escrito originalmente, abstive-me de o fazer. Porquê?

Comecemos pela questão da aplicabilidade do conceito de genocídio. Enquanto académico, e nada mais que isso, cumpre-me frisar que o livre acesso à informação não conduziu a nenhum consenso científico na matéria. Pelo contrário, os especialistas – perfeitamente ao corrente das principais definições de genocídio em circulação nos meios políticos – permanecem divididos entre autores, como Norman Naimark ou Andrea Graziosi, que defendem estarmos perante um genocídio; autores, como R. W. Davies ou Stephen Kotkin, que entendem que o conceito não se aplica ao caso; e autores, como Robert Conquest ou Nicolas Werth, cuja posição, o que é mais que compreensível visto o problema estar longe de ser simples e linear, esteve em fluxo durante anos.

Ainda que permaneça aberto a novas evidências e interpretações, filio-me, até ver, na posição que enjeita a aplicabilidade do conceito de genocídio ao caso. E, centrando-me em exclusivo no pós-Outono de 1932 – já que, repito, não há indícios de que até ao Verão de 1932 a liderança estalinista tenha cogitado punir especificamente o povo ucraniano, diferentemente de qualquer outro, fosse por que motivo fosse –, passo a enunciar as três principais razões.

1) Uma fatia substancial dos perpetradores, isto é, dos indivíduos em posições de poder e influência que participaram na administração diária das medidas punitivas colocadas em marcha em Outubro-Novembro de 1932, eram tão ucranianos como a esmagadora maioria dos ucranianos da época. Começando por sublinhar que, por então, a “origem étnico-nacional” constante dos registos soviéticos levava exclusivamente em conta a auto-identificação dos indivíduos em causa, e que, ironicamente, tinham sido os estalinistas, enquanto facção intra-bolchevique, a impulsionar a grande vaga de “ucranização” do Partido, do Estado, da cultura e das instituições de ensino da Ucrânia da segunda metade dos anos 20, chamo a atenção para o facto de, por 1930, o Estado Socialista da Ucrânia contar com 58,6% de – para usar um termo corrente neste tipo de estudos – “ucranianos étnicos”, e de, pelo ano fatal de 1933, o próprio Partido Comunista da Ucrânia contar com 60% de “ucranianos étnicos” (para 23% de “russos étnicos”).

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Diríamos tão taxativamente estarmos perante um genocídio desse povo se metade dos membros do aparato nazi formalmente responsável por implementar o Holocausto no terreno fossem, e pudessem reivindicar-se abertamente, judeus?

2) No auge da tragédia ucraniana, durante a primeira metade de 1933, a liderança estalinista aceitou duas medidas para a Ucrânia especificamente concebidas para combater a fome: primeiro, diminuir as metas agrícolas indexadas à colheita de 1932 (mais 6 pontos percentuais em relação aos 35% já acordados até Outubro de 1932); e, segundo, libertar ajuda alimentar (no total, 176 mil toneladas entre Fevereiro e Julho de 1933). Tudo o que sabemos sobre a distribuição das reduções de metas e da ajuda alimentar nesses territórios sugere que essas medidas visavam responder ao imperativo geoestratégico que descrevi no meu artigo anterior; e, sobretudo, que essas medidas não discriminavam os beneficiários e recipientes em função da sua origem étnico-nacional, isto é, nunca excluíram, por princípio, “ucranianos étnicos”.

Em conjunto, as reduções de metas e ajudas alimentares – cujo móbil era “criminosamente utilitário”, isto é, não levava minimamente em conta o critério humanitário auto-evidente do favorecimento das populações mais atingidas pela calamidade –, concentraram-se, primeiro, nos distritos ocidentais das regiões que faziam fronteira com a Polónia, ou seja, nos distritos ocidentais das regiões de Kiev e Vinnytsia (com o objectivo de evitar que a fome servisse de “pretexto” e “agente facilitador” para uma invasão polaco-romena); e, segundo, nas regiões, especificamente Dnipropetrovsk e Odessa, cujas cidades e áreas rurais eram, à luz do projecto histórico estalinista, “estratégicas” – isto é, tinham um papel decisivo, pela natureza da sua produção industrial (mais industrial-militar que para consumo), ou agrícola (especializada nos vitalíssimos cereais em vez de noutras colheitas), no alimento do processo de industrialização-urbanização-militarização rápida.

Seríamos tão facilmente compelidos a afirmar estarmos perante um genocídio desse povo caso, pelo pico do Holocausto, o aparato nazi no terreno tivesse ordens para ajudar a salvar mais judeus do que os que condenava à morte?

3) A suspensão e reversão da política de “ucranização” decretada por Estaline em Dezembro-Janeiro de 1932-1933, ainda que inusitadamente feroz, foi só mais um dos arranques e recuos, na verdade cíclicos, da política de “indigenização” (korenizatsiya) soviética na Ucrânia – e não o prelúdio de uma política de russificação, pelo menos minimamente sistemática, dos territórios ucranianos. Não é preciso, aliás, ir mais longe que o exemplo concreto chamado à colação pela Senhora Embaixadora para ilustrar este ponto.

Primeiro, a política de realojamento a que se refere foi iniciada a 15 de Outubro de 1933 pelo Conselho dos Comissários do Povo da República Socialista Soviética da Ucrânia (sediado em Kharkiv) – e não pelo Conselho dos Comissários do Povo da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (sediado em Moscovo). Segundo, em termos de contexto, esse realojamento coincidiu não apenas com as “mortes em excesso” de 1932-1933 na Ucrânia, e portanto com a necessidade de importar mão-de-obra para substituir as vítimas (sem dúvida o seu principal motivo); mas também com a aurora de uma nova política de russificação, não da Ucrânia, mas da República Socialista Federativa Soviética da Rússia (RSFSR). Essa política, à qual a liderança estalinista sempre tinha resistido em nome da contenção do “chauvinismo russo” (que condenava tanto ou mais, até então, que qualquer expressão de “nacionalismo burguês” noutra etnia-nacionalidade), implicava, na prática: ou assimilar (russificar) “gradual e voluntariamente”, ou exportar para os respectivos territórios étnico-nacionais oficialmente delimitados (aldeias, distritos e regiões no caso das etnias-nacionalidades sem República própria, Repúblicas em casos como o da Ucrânia), o máximo possível de residentes não-russos da RSFSR não integrados em territórios oficialmente demarcados como não-russos (que seriam sistematicamente reduzidos em diversidade e número). Não compreenderia o total de 21 mil famílias oficialmente registadas ao abrigo desse programa uma percentagem significativa de “ucranianos étnicos” que Moscovo estaria pronto a “exportar” e Kharkiv a “importar”? Se atendermos ao facto de, por 1926, os “ucranianos étnicos” perfazerem 7,8% da população da RSFSR, mas, por 1937, apenas 3%, uma resposta positiva não seria de descartar. Além disso, sendo esse o caso ou não, não teriam essas pessoas sido acolhidas com livros, jornais, revistas e instrução em russo pelo simples facto de, como tantos “ucranianos étnicos” residentes na própria Ucrânia à época, ser essa a língua a que estavam habituados para viver e operar em sociedade? Convém ter presente que, por 1930, apenas 30,7% dos membros do Partido Comunista da Ucrânia e 43,3% dos filiados em sindicatos na Ucrânia que se auto-identificavam como ucranianos assumiam por “língua-mãe”, isto é, pode presumir-se, língua de utilização diária pelo menos em contexto familiar, o ucraniano.

A resposta a essas perguntas, em todo o caso, pouco muda no essencial do que há a reter sobre o episódio em causa. Porquê? Porque os privilégios reservados a esses “colonos”, na maioria dos casos, só existiam – como tanta coisa na União Soviética – “no papel”. Na verdade, na maioria dos casos, as pessoas em causa (117.149 pelo fim de 1933) só seriam recebidas com condições minimamente reminiscentes das que lhes tinham sido prometidas nos distritos cerealíferos vitais – e mesmo assim, em muitos casos, apenas durante o tempo necessário para assegurar a época de semeio da primeira metade de 1934. Depois disso, o seu destino tenderia a aproximar-se ao destino da maioria das pessoas realojadas noutros distritos – um destino pautado pela recusa dos dirigentes locais em cumprir minimamente o prometido (em termos de alojamento, subsídios e ajuda alimentar); e por hostilidade feroz, incluindo ostracização, pilhagens e violência, por parte das populações autóctones (de todas as etnias-nacionalidades). Na verdade, as condições tornar-se-iam muito rapidamente tão más para esses forasteiros que, longe de terem permanecido na Ucrânia como “colonos” ao abrigo de qualquer política, de qualquer natureza, minimamente sistemática, pelo início de 1935 pelo menos metade já teriam regressado, sem que nada fosse feito para as demover, aos seus lugares de origem (na RSFSR e na Bielorrússia).

Seria tão claro estarmos perante um genocídio desse povo caso, pelo auge do Holocausto, a liderança nazi não estivesse obcecada em garantir que os bens judaicos seriam apropriados “para sempre” por “alemães étnicos”?

Já o termo “Holodomor”, pelo contrário, parece-me cientificamente justificado – e não há nenhuma razão em particular para não o ter usado antes. De facto, não restam dúvidas de que a partir do Outono de 1932 a liderança estalinista decidiu impor medidas drásticas à Ucrânia e ao Cáucaso Norte que, como todos os envolvidos sabiam, só poderiam resultar na morte pela fome de gigantescas massas de ucranianos (ainda que, repito, a liderança estalinista tivesse excluído do âmbito dessas medidas as aldeias “cumpridoras”, e que, a despeito dos horrendos “excessos locais” nesse sentido – cuja intensidade variaria de região para região, como prova, por exemplo, o caso relativamente “menos mau” de Chernihiv –, nunca tivesse ordenado expressamente confiscos além dos produtos alimentares abrangidos pelas quotas de entregas às agências estatais de abastecimento, isto é, cereais, batatas, e, se necessário através do confisco de animais, carne e lacticínios).

E reside na constatação da pertinência do termo “Holodomor”, parece-me, o mais importante a reter da tragédia: que entre Novembro de 1932 e Junho de 1933 foi cometido, de forma deliberada, um crime bárbaro, de proporções bíblicas, contra ucranianos; e que, ao contrário do que a liderança estalinista, o regime soviético em geral, e muitos outros, tentaram tornar sequer concebível desde então – como muito oportunamente recorda a Senhora Embaixadora –, a memória desse crime jamais deverá ser apagada.