No dia de Natal de 2022 terão passado 304 dias desde o início de uma guerra infame e sem fim à vista. Uma guerra incompreensível, totalmente inaceitável nos motivos e na forma e em que o invasor imperialista pouco interesse tem na guerra militar convencional, já que o seu foco são o ataque aos inocentes civis e a destruição das infraestruturas básicas, os hospitais, as escolas, as habitações de um país.

A guerra na Ucrânia demonstra diariamente quais os objetivos de Putin: a destruição do estado ucraniano, da nação ucraniana, em síntese, do povo ucraniano. Não estarão longe da verdade aqueles que já falam em genocídio e em crimes contra a humanidade a serem julgados em tribunal internacional.

Agindo como se de um estado imperial se tratasse, a Rússia pretende regressar ao seu passado, falido material e moralmente, refazendo fronteiras pela força e dividindo o mundo em esferas de influência.

Sob a égide de Putin, a Rússia rasgou os princípios básicos do direito internacional consagrados na Carta das Nações Unidas. A Rússia provou não ser merecedora de ser um dos membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, um lugar que era da URSS e que lhe foi atribuído como prova da confiança que o Ocidente tinha num país que começava, após 1991, a viver plenamente as ideias e valores das outras democracias liberais europeias e mundiais, um país que renunciava ao uso da força na política internacional e que se comprometia a respeitar a independência, a soberania e a integridade territorial de todos países. Desde 24 de Fevereiro de 2022 que a confiança na Rússia acabou.

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O resultado de muitas das ações provenientes de intervencionismos militares dos anos 90, baseados em benevolentes e humanitárias premissas morais, mas que eram em síntese acertos de contas e regime change para benefícios de alguns, envergonhou o Ocidente que, depois disso, se apoucou e deixou a Rússia atacar a Geórgia, a Moldávia, a Síria e a Ucrânia, em 2014 e agora em 2022. O corolário de tudo isto talvez tenham sido as declaradas linhas vermelhas de Obama em relação a Síria, das quais a Rússia fez tábua rasa, sem que isso levasse a qualquer contraponto mais musculado contra ela.

Passo a passo, a Rússia de Putin escolheu um caminho que a afastou da Europa e da ordem internacional cooperativa, democrática e pacífica, e nós, antecipando isso, continuámos em negação uns, e em acordos comerciais francos e abertos, outros, aumentando a nossa dependência de quem já tinha provado não ser merecedor de qualquer confiança. Muito terá de ser pensado, reformado e mudado na nossa relação com a Rússia.

Quanto à Ucrânia, por sua vez, manteve-se firme nos seus ideais e soberania. Zelensky, os seus homens e o povo ucraniano, recusaram sacrificar a liberdade e a sua soberania à agressão russa e estão gradualmente a reconquistar posições, a recuperar território e cidades, das quais Kherson é exemplo maior, e a ganhar uma guerra na qual eram considerados derrotados à partida. E essa é a sua maior lição: precisamos de lutar sempre pela nossa liberdade, por aquilo em que acreditamos, sejam quais forem as probabilidades de vitória, porque não lutar é sempre pior. Não lutar é sinalizar ao agressor que ele poderá vencer sem também ele ter de provar a dor que inflige aos outros, que poderá continuar a atacar, a destruir e a matar sem consequências. Este é um momento para recordar o contexto e as palavras de Churchill para Chamberlain, após o “apaziguamento” de Hitler em 1938: “You were given the choice between war and dishonour. You chose dishonour and you will have war.

Como tão bem disse recentemente Kaja Kallas, primeira-ministra da Estónia, alguém que sabe bem o que foi o imperialismo soviético e o que pretende ser o imperialismo russo “Agora não é hora de pressionar [a Ucrânia] para uma paz prematura. A menos que a Rússia abandone seu objetivo de conquistar novos territórios na Ucrânia, as negociações de paz têm poucas hipóteses de conseguir qualquer coisa. A paz russa não significaria o fim do sofrimento, mas sim mais atrocidades. O único caminho para a paz é expulsar a Rússia da Ucrânia.” (Foreign Affairs, 8 NOV 2022)

São assim dificilmente compreensíveis os continuados comentários de Emanuel Macron, na necessidade de atender às garantias que a Rússia quer ter de um não alargamento da NATO, numa futura reorganização da arquitetura de segurança europeia no pós-guerra da Ucrânia. Depois de em Junho de 2022 ter afirmado que uma negociação de paz com a Rússia teria de passar por salvaguardar a sua não humilhação, numa preocupação manifestamente fora de tempo, Macron vem agora afirmar que “…one of the essential points we must address – as President Putin has always said – is the fear that NATO comes right up to its doors, and the deployment of weapons that could threaten Russia,”

É fundamental manter os canais de comunicação diplomáticos abertos com a Rússia, mas o sentido das palavras do presidente da França desconfortam bastante as posições neste conflito dos países bálticos, da Polónia, de muitos dos países de leste, dos nórdicos e mesmo do Reino Unido. Em síntese, todos os países NATO devem se sentir desalinhados das afirmações francesas.

Para além de ser a Ucrânia quem precisa de ser respeitada e não humilhada pela força bruta russa, são o Ocidente e a Europa, em particular, quem precisa de “garantias de segurança” contra as intenções de Putin! Se no pós-guerra da Ucrânia, a Rússia estiver de tal modo dependente e subalternizada à China, será a Europa e o Ocidente a necessitarem das garantias que o presidente francês pede para a Rússia.

Adicionalmente, a afirmação de Macron está mal formulada, pois a NATO não se alarga por vontade dos seus membros, mas sim quando os países não-membros solicitam a adesão a esta organização. O artigo 10.º da NATO estabelece que a adesão está aberta a qualquer “Estado europeu em condições de promover os princípios deste Tratado e de contribuir para a segurança do Atlântico Norte”. Foi isso que a Suécia e a Finlândia fizeram e foi isso que aconteceu ao longo da história da Aliança. Alemanha, Turquia ou Espanha não estão entre os fundadores da NATO e solicitaram a sua adesão, sendo agora membros de pleno direito. Com o fim da guerra fria, os países do antigo Bloco de Leste entraram quase todos por sua livre, autónoma e soberana iniciativa.

Sabemos que o presidente da França tem uma agenda própria para a Europa que passa por um reforço substancial da influência do seu país na defesa europeia. <Não é segredo e faz tempo que Macron defende um exército europeu como elemento central de reforço da UE, e garantidamente não será para que a França tenha um papel secundário nele. O poderio económico e militar, o trajeto histórico francês, não permitiria tal papel e, sem o Reino Unido na União Europeia, consequência do Brexit, e, com as posições ambivalentes da Alemanha sobre este assunto, parece não haver contra-peso a este anseio francês.

A relutância de Macron em relação à NATO e aos Estados Unidos da América é factual. O exército único europeu parece ser uma obsessão do presidente francês. Disse-o repetidamente, chegando a afirmar que a Europa necessitava, no domínio ciber, de se proteger da “China, Rússia e até mesmo dos Estados Unidos da América” ou que não se poderia mais confiar nos Estados Unidos para defender os seus aliados, afirmando que estávamos “a viver a morte cerebral da NATO”.

A resposta assertiva dos países da organização atlântica e em particular dos EUA de Joe Biden, respeitando sempre o quadro cauteloso e diplomático, tem se revelado fundamental na resposta à invasão da Ucrânia e mostram o erro de perspetiva do presidente francês, que parece estar manifestamente desinteressado da parceria transatlântica.

Embora seja fundamental manter canais de comunicação com Moscovo, para a gestão do risco de escalada e acompanhamento diplomático da guerra, não há com Putin condições para, neste momento, estabelecer negociações para uma paz rápida e negociada. Ao mesmo tempo, o mundo livre da cooperação e do respeito entre estados, o mundo dos valores democráticos e dos ideais humanistas não deve reduzir o seu apoio militar à Ucrânia ou tentar congelar o conflito para procurar neste momento negociações.

Condicionarmos a Ucrânia a ceder território para a paz, premeia a iniciativa e os interesses militares da Rússia de Putin, que não é de todo confiável para estar sentado à mesa de negociações. Como disse Kaja Kallas, o único caminho para a paz é expulsar a Rússia da Ucrânia.