Como qualquer cidadão (membro da comunidade de uma cidade ou, mais correctamente, membro da “Polis”, a sociedade, a comunidade social), como qualquer cidadão, dizia, tenho seguido o actual debate sobre a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento com crescente perplexidade.

Perplexidade, porque, por um lado, o referido ensino seja referido como uma caixa fechada e irrecusável em que nenhum conteúdo pode ser excluído ou, sequer, discutido por outro, que não se discuta quais os conteúdos problemáticos e, por fim, porque todo o debate se inquinou quando passou a ser um debate perigoso e distorcido em que cada parte se colocou numa trincheira (predominantemente ideológica) e refuta as opiniões contrárias, começando por carimbar-lhe uma qualificação discriminatória. Em suma, o debate é conduzido, partindo do princípio da exclusão da outra parte da comunidade social por preconceitos num fundo de intolerância à diferença (ao diferente).

Daí eu referir, que este tem sido um debate com muito pouca ou nenhuma cidadania (ele tem sido predominantemente exclusivo, dogmático e sem qualquer espírito de respeito pelas opiniões e argumentos alheios).

Vejamos então o que está em causa.

Começo por referir que a humanidade, para poder progredir, desenvolver-se e qualificar-se precisa de gerir vários capitais (ambiental, económico, social e, particularmente, humano). É este capital humano que está subjacente ao conceito e prática da cidadania. Ele corresponde a valores básicos como coesão da comunidade, identidade cultural, diversidade, solidariedade, empenhamento, tolerância, humildade, compaixão, paciência, indulgência, camaradagem, fraternidade, instituições, amor, pluralismo, honestidade, respeito pelas leis e regras sociais, disciplina e atenção. Estes valores só podem ser alcançados através de uma participação sistemática, envolvida, consciente e interventiva da comunidade, constituindo o suporte de uma forte sociedade civil.

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Este parece-me que é, enfim, o cerne do que entendo que deverá ser o conceito de cidadania.

O debate em curso deveria, portanto, centrar-se sobre a transmissão e desenvolvimento individual no quadro destes valores e não em conceitos abstratos e ideologicamente distorcidos.

O que, no essencial, está em causa é o que se entende por educação e quem devem ser os seus agentes, ou seja, do seu enquadramento nas diferentes estruturas sociais, desde a família, os amigos, a comunidade próxima dos conhecidos, a escola formal e informal como local de encontro e convívio entre os alunos, até todos os outros universos e contextos em que,cada um, criança ou não, está de alguma forma integrado e deve ser consciente e, independentemente, construtivo.

Educação é um termo utilizado a torto e a direito, sem que, muitas vezes, quem o utiliza saiba realmente o seu significado. A palavra, e o conceito de educação têm a sua origem no latim educĕre que significa revelar, expor, ou, mais simplesmente, “abrir janelas”.

São estas janelas e o modo de as abrir que devemos discutir.

Em primeiro lugar, a função educativa não é propriedade de nenhum grupo ou instituição, mas é algo que tem, intrinsecamente, de ser assumido pelo conjunto da Polis, da sociedade. Naturalmente, a família e a escola assumem, dentro desse processo educativo, um papel claramente preponderante.

Mas qual é o papel específico de cada um, e em que é que consiste isto de abrir janelas?

Abrir janelas não pode ser uma acção exterior a cada um de nós, crianças ou adultos, tem de ser uma capacidade própria em que sejamos nós a saber abri-las e a incorporar na nossa personalidade e individualidade o que delas se vê. Portanto, o papel dos educadores, formais ou informais, é o de nos habilitar com a capacidade de abrir janelas e, mais importante, de termos a capacidade de incorporar dentro da nossa individualidade a vista que delas se desfruta.

Educar não pode, portanto, ser visto como um processo mais ou menos forçado de abrir apenas certas janelas, impondo que aquilo que delas observamos seja apenas o que se considera adequado “à nossa educação e desenvolvimento individual e social”. Educar, começa pois, por constituir um espaço de desenvolvimento da liberdade e individualidade como suporte da capacidade social e solidária e do nosso sentido crítico. Temos de desenvolver a nossa capacidade de olhar e de incorporar na nossa consciência individual a diferença, a multiplicidade de perspectivas e a importância do respeito por todas elas, sem, contudo, abdicar da nossa.

Voltando atrás, àquilo que referi como constituindo o capital humano, este tem de ser o fulcro do que se pretende estimular e desenvolver em qualquer processo educativo. Esse capital recordo, corresponde, no fundo, a valores básicos e a padrões de relacionamento essenciais para a existência de qualquer comunidade ou sociedade.

Como, então, se realiza a educação no domínio dos valores? Pela prática e pelo exemplo. Mas também pela chamada de atenção e pela crítica (construtiva) sempre que necessárias.

Então não há espaço para a existência de uma disciplina de Cidadania e Desenvolvimento? Claro que há! Leccionei muitos anos esses temas a futuros engenheiros e, particularmente, a futuros professores do ensino básico e a educadoras de infância. Acompanhei, desde os primeiros passos (há quase 45 anos), o desenvolvimento de um processo educativo então designado como “Educação Ambiental”, mas que rapidamente se afirmou como “Educação para a Sustentabilidade e a Cidadania”. Essa experiência, fundamentada em anos de trabalho com professores de todos os níveis de ensino, mostrou que não se podia abordar esse processo educativo como um pacote pré-definido de conteúdos programáticos, semelhante ao das disciplinas mais tradicionais. Tinha, antes, de constituir um processo de descoberta apoiada na diversidade e na complexidade da realidade envolvente, em que cada aluno fosse apreendendo (não aprendendo) a natureza e funcionamento da comunidade em que se integra e integrará, tomando progressivamente consciência da diversidade, da diferença, da importância da existência do diferente e do estabelecimento de pontes entre todos, seja qual for a sua natureza e individualidade. Este processo de ensino tinha de se desenvolver no quadro da integração de todos os domínios curriculares.

Perguntarão, com razão, se educação corresponde a este conceito de “abrir janelas”, de que forma é que nele se integram os conteúdos das ciências exactas como a Química, a Matemática, a Física, a Geografia, a Biologia ou a Geologia, para citar apenas as mais relevantes.  Da forma mais elementar: o conceito subjacente ao método científico corresponde a um processo de observação, desenvolvimento de hipóteses e corroboração das mais adequadas no quadro dos conhecimentos e dados disponíveis. Esse conceito faz com que, mesmo as ciências exactas não possam ser corretamente classificadas como tal e tenham sempre de ser um espaço de dúvida e de construção. Um bom exemplo é a Física, onde no final do século XIX, Kelvin, um dos físicos mais importantes da altura, afirmou que, salvo apenas dois pequenos detalhes, a Física não tinha mais campo para se desenvolver. Poucos anos depois, esses dois pequenos detalhes abriram as portas das teorias da relatividade e dos quanta, que revolucionaram completamente todo o universo de conhecimento da Física.

Em suma, educar é estimular o sentido crítico, desenvolver a percepção e assimilação dos valores essenciais do viver colectivo, é promover que cada aluno, criança, jovem, adulto estejam aptos a mais do que fazer parte da sociedade, a serem capazes de a enriquecer e, desta forma, contribuir para o seu desenvolvimento.

Por tudo o que acima referi, é essencial que a Educação para a Cidadania se foque na transmissão de instrumentos e de capacidades de desenvolvimento individual e colectivo, um dos quais, pode até dizer-se o mais básico, é o respeito pelo outro, pela diferença, pelo diferente, tendo consciência que só desse respeito se poderá desenvolver uma valorização mútua e construtiva. Não pode, portanto, incluir doutrinas dogmáticas, padrões de comportamento intolerantes, ou qualquer outra forma de intolerância, pareçam elas o mais bem intencionadas possível. Prosseguir nessa via será sempre uma castração do aluno, do filho, do colega, do amigo, enfim, do outro.

Saibamos, portanto, aprender a viver num mundo mais diverso, com cidadãos mais conscientes e críticos, um mundo capaz de se desenvolver de forma que agora se poderá designar como “sustentável”.