1. Desde muito pequenas que as minhas irmãs e eu nos habituámos a conviver com admirável naturalidade com personagens. Na nossa casa do Campo Grande não eram poucos. Uns, com quem vivíamos, outros que vinham, animando serões e tertúlias de toda a sorte, ou enfeitando festas. E depois havia os que já se tinham despedido do mundo mas que permaneciam porém tão concretamente ali impressos que quase podíamos esbarrar fisicamente com eles nos corredores da casa.

Lembro-me por exemplo de quando, no alvorecer da adolescência, tive direito a um quarto de dormir só para mim e refilei por o achar exíguo, ouvir a minha mãe dizer-me, com estarrecedora normalidade: “Então é o quarto que tem o alçapão do Paiva Couceiro…”. Era verdade. O caso é que o meu avô materno, Eduardo Pinto da Cunha, monárquico convicto, tendo-se envolvido de corpo e alma nas Incursões Monárquicas, abrigara algumas vezes Paiva Couceiro. A nossa casa, imensa e fora de portas, prestava-se bem nesse já tão longínquo ano de 1914 a uma oportuna “clandestinidade” mas, pelo sim pelo não, abrira-se por debaixo de uma das divisões — o então meu novo quarto — um alçapão de onde se descia para uma pequena e sombria cave.

Nesse quase final dos anos cinquenta, quando alçapão e cave passaram para mim, outros personagens, felizmente vivíssimos, continuavam porém a selar a casa, com a sua originalidade ou o seu talento. Como por exemplo o poeta Ruy Cinnati ou o escritor Ruben A, que nesse tempo era simplesmente o “Rubinho”, quando, vindo do Porto onde vivia, punha com graça incomparável o seu pé em animados serões dançantes. Ou Sophia de Mello Breyner, poetisa e prima direita de minha mãe. E a quem por isso as minhas irmãs e eu tínhamos sido apresentadas com um cuidado especial, tanto mais que era impossível desligar a poesia escrita por Sophia da memória deixada por ela no Campo Grande, onde, com 17, 18 anos, vivera durante uma temporada e ali se inspirara e escrevera. Deixando-se envolver pelo grande jardim e ouvindo-lhe o sussurro por entre buxos e sombras, canteiros e o lago redondos, com peixes vermelhos: “Agora vou-lhes ler estes poemas da Tia Xixa que foram escritos neste jardim, quando ela aqui vivia, ouçam meninas…”. E nós ouvíamos.

“Atravessei o jardim solitário sem lua/ correndo ao vento pelos caminhos fora/ para tentar como outrora /unir a minha alma à tua /ó grande noite solitária e sonhadora(…)”. Ouvíamos entre o pasmo e a estranheza, mas de quem era aquela voz que nos falava de coisas tão próximas e que era afinal uma tia, de carne e osso? E tanta gente mais foi passando por ali… antes e depois de Paiva Couceiro ou de Sophia.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Durante o Estado Novo vinham salazaristas, já aqui o escrevi. O meu pai conhecia bem Salazar, tendo aliás muito jovem sido seu secretário em S. Bento. Vinham ministros e deputados amigos, alguns ouvidos com interesse, pela sua inteligência, ou pela informação de que dispunham, e embaixadores com boas histórias. Também podiam vir Amália Rodrigues, que lá cantou uma vez, como bem antes de Couceiro cantara também a “Severa” – Maria Severa Onofriana, de sua graça — pela mão do Conde de Vimioso, que a ela se rendeu nesta casa, dando-lhe prestigio e fama. Mas havia também aqueles reis já sem coroa que em Portugal procuraram um porto de abrigo chamado exílio e vinham jantar ou cear ao Campo Grande.

Mas, viesse quem viesse, as convicções eram fortes, havia alguns temas sagrados e nenhum interdito. Nada nos foi deturpado, nenhuma escolha nos foi imposta, nenhum amigo nos foi vetado. Vinha gente de todo lado, e no meu tempo e com a minha mania do teatro, vinham actores, encenadores, cantantes e pianistas para quem alugávamos pianos.

Dada esta circulação de ar e de ideias, mal disparou o PREC o nosso “Campo Grande” e as várias famílias que cá moram assumiram-se muito naturalmente como poiso de revolucionários e de contra-revolucionários. Em igual grau, com igual peso, estatura e estatuto. Conselheiros da Revolução, ministros, militares influentes do “25 de Abril de 1974” de um lado; militares de alta patente, civis, personagens de peso, que hostilizavam a revolução, do outro (e também disso já aqui deixei nota). Uns entravam para uma casa, outros para a outra, cruzando-se não poucas vezes no pátio E assim vivíamos, era o que nos era natural. Nunca soubemos viver de outra maneira.

2. O “avó Thomaz” foi um desses personagens. Na verdade Thomaz Mello Breyner era meu bisavô, mas dizíamos o “avô” Thomaz por ser o que sempre ouvimos cá em casa à nossa mãe e à nossa tia, suas netas. O meu bisavô era de facto extraordinário.

Crescemos a ouvir falar dele, a recordar as suas histórias e feitos, aprendendo sobretudo a saber porque devíamos considerá-lo. Mas era tudo tão real nessas evocações que por pouco não lhe punham um lugar ao nosso lado, à mesa do Campo Grande. Quando morreu, na sua casa de S. João dos Bem Casados, onde vivia com a mulher e onde nasceram muitos dos seus nove filhos, a sua viúva Sophia, (filha do Conde Burnay, outro imenso personagem) mudou-se para casa de uma das suas filhas, no caso a filha Tereza Josefa, casada com Eduardo Pinto da Cunha, e minha avó. Ou seja, mudou-se para o nosso Campo Grande e lembro-me de mim, muito pequena, de mão dada com a minha mãe, escada acima: “Vamos dar um beijo á tua bisavó Sophia”. Ainda hoje, disto mesmo também se recordam muitos dos seus bisnetos, meus primos: metiam-se num eléctrico com as mães, apeavam-se na paragem do Campo Grande, entravam no jardim da casa e subiam para “visitar a bisavó Sophia”.

3. Thomaz Mello Breyner, (1866-1933 ) 4.º Conde de Mafra, foi um grande homem. Em pequeno, a Rainha Dona Maria Pia mandava buscá-lo para brincar com seus filhos, em Lisboa, em Mafra ou em Cascais. Cresceu ao lado do Rei D. Carlos e de seu irmão D. Afonso, de quem foi íntimo amigo e porventura o mais permanente. Estudou medicina, ensinou, foi um precursor na sua área, deixando marca na Ciência — que o premiou — graças a um labor ininterrupto até ao fim da vida. Foi de forma inteligente e persistente, útil à medicina, à sociedade portuguesa onde pontificou, à comunidade. Cultivado, melómano, viajado, requisitado, filantropo com pobres, excluídos e abandonados, era um homem de espírito e de dons. Médico da Corte, dirigiu o hospital do Desterro (que em 2002 lhe prestou bela homenagem, onde estive) e, embora tendo consultório, onde com frequência não cobrava as consultas, o hospital foi-lhe porém sempre uma paixão quase avassaladora.

Um incansável servidor público, um monárquico que honrou a Coroa, um atento pai de família, um homem do mundo recebendo em casa os grandes literatos ou os melhores músicos e artistas que vinham a Lisboa. Apesar de tudo isto, que é muito e deixou marca no seu tempo, o que mais distinguiu porém Thomaz de Mello Breyner foi a sua escrita, que nos chegou através de Memórias e Diários. Escreveu todos os dias da sua vida, muito e quase compulsivamente. No leito de morte pediu a Sophia Burnay, sua mulher, que escrevesse o que, já sem “anima”, ele lhe ia ditando em voz sumida. Este “ter de escrever” — indiscutivelmente o traço mais marcante da sua invulgaríssima personalidade – levou-o, com um fôlego admirável, a pintar com as palavras um dos mais impressivos frescos lidos em português sobre quase meio século de vida portuguesa. Redigia velozmente e sem intermediários, com um verbo ágil e preciso, uma inesgotável curiosidade pela vida e uma lucidez aguda quanto à natureza humana. Amando escrever, propôs-se sobretudo “contar” e fê-lo a partir do melhor posto de observação que é o “vivido”: Thomaz Mello Breyner sorvia e absorvia o seu quotidiano, o qual, desde a sua tenra idade, foi rico, diverso, acidentado e polifónico. O monárquico, o homem de família, o médico, o investigador, o professor, o conferencista internacional, o deputado, o amigo, todos enfim num só, radiografaram como poucos, as últimas décadas da Monarquia, toda a República, a ditadura militar, o advento de Salazar, o início do Estado Novo.

4. E de repente — sorte nossa, nunca será demais repeti-lo — houve alguém que lendo e relendo tudo isto escreveu – finalmente! — a biografia que tardava. A iniciativa coube à Imprensa Nacional e Margarida Magalhães Ramalho foi a historiadora escolhida para esta nobre empreitada (já aliás premiada). O melhor do seu trabalho de estudiosa foi porém o modo como tão bem foi desenrolando o fio do já escrito por Thomaz Mello Breyner, alternando-o com o seu próprio olhar de historiadora sobre o homem, a personagem, a época. Melhor dizendo, as épocas: tão diversas elas foram na sua natureza, ideologia e objectivos, ao contrário dos portugueses – sempre iguais a si próprios. O livro chama-se simplesmente Thomaz Mello Breyner — Relatos de Uma Época, a chancela é da Imprensa Nacional e vão por mim: leiam-no. É um grande livro, de um grande homem com uma grande vida.