Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
O mar universal e a saudade.
Fernando Pessoa, “Prece”, Mensagem

O Almirante Nuno Gonçalo Vieira Matias (Porto de Mós, 9/7/1939 – Lisboa, 13/6/2020), português dos quatro costados, marinheiro dos de antanho, militar distinto e emérito combatente do bom combate, privou-nos do seu convívio no pretérito dia 13 de Junho. Meteu “proa ao mar” para a derradeira viagem onde, estou certo, descansará em paz nos braços de Neptuno. A sua memória, porém, merece ser preservada pois marcou muito positivamente a sua passagem pela vida terrena.

Conheci o Almirante Matias já tarde na minha vida, quando ele se despedia da sua longa carreira na Armada Nacional, como seu Chefe de Estado-Maior, cargo que exerceu entre 1997 e 2002. Na altura tomou uma decisão de rara coragem num chefe militar, ao mandar regressar a portos a quase totalidade dos navios, por falta de condições para o adequado funcionamento da Marinha, em consequência das recorrentes malfeitorias de que a Instituição Militar tem sido alvo por parte dos políticos do regime político vigente (no caso, o Governo de António Guterres). Na altura enviei-lhe um cartão a apreciar e a agradecer-lhe o gesto, em nome de uma organização patriótica de intervenção cívica, de que era presidente da direcção. A missiva, como é de boa educação teve resposta, sendo de realçar o facto de não nos conhecermos e do Movimento a que pertencia não caber propriamente no âmbito do que se entende por “politicamente correcto”.

Quando a Comissão Promotora para a evocação dos antigos combatentes do Ultramar (creio que em 1997) foi solicitar apoio das chefias militares para tal cerimónia, junto ao respectivo monumento, sito perto da Torre de Belém – monumento sagrado da Pátria que uns poucos negregados arrotaram de suas fezes querer agora, demolir – o Almirante Matias foi o único chefe militar que teve discernimento e coragem para apoiar a iniciativa, não se acobardando com a incrível oposição movida contra tal comemoração por parte da Presidência da República (e não só). Mais tarde, Vieira Matias viria a integrar ele próprio a Comissão Promotora.

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Já antes, aquando dos graves acontecimentos ocorridos na antiga Província da Guiné portuguesa, em 1999, deu mais uma prova da sua capacidade de comando e liderança, como chefe militar, ao mandar aprontar parte da esquadra – no próprio Dia de Portugal – de modo a estar pronta a zarpar para aquele território, caso assim determinassem os interesses nacionais, o que não foi aproveitado no imediato pelo poder político, o que veio a acarretar problemas e erros, que poderiam ter tido consequências graves.

Esta capacidade de comando e liderança – ou seja aquilo que mais importância tem na vida militar, nomeadamente para os oficiais – foi sempre timbre do Almirante Matias, o que se evidenciou nas duas comissões que realizou em África, nas operações que decorriam para a defesa da soberania nacional e da protecção dos bens, património e população portuguesa, entre 1961 e 1975 (e no Estado da Índia entre 1954-1961); a primeira em Angola, para onde embarcou voluntariamente em 1961, na Fragata Vasco da Gama, após ter terminado o curso na Escola Naval – é nos momentos de crise que se distinguem os grandes homens – e depois no teatro de operações da Guiné, onde comandou o Destacamento de Fuzileiros nº 13, entre 1968 e 1970. Especialidade (fuzileiro) que tirou e juntou à de “artilheiro”. Comandou mais tarde a Fragata João Belo. Pode-se ainda dizer que o Almirante Matias, na sua carreira militar, exerceu cargos em toda a estrutura da Marinha, desde o Estado-Maior ao ensino; do comando operacional à logística, autoridade marítima, passando pelos Fuzileiros. Frequentou cursos no estrangeiro e foi Comandante Naval, o que incluía o cargo de Comandante-em-Chefe da Área Ibero-Atlântica, da OTAN.

Vieira Matias foi bafejado por uma carreira rica e equilibrada, tanto em tempo de paz, de crise e de guerra, dando sempre boa conta de si no cumprimento das muitas missões para que foi nomeado. As 16 condecorações nacionais, onde se destaca a Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo e 10 estrangeiras com que foi agraciado, são uma prova disso mesmo.

O Almirante Matias tinha, porém, uma paixão que, julgo, ultrapassava qualquer outra e espero não estar a cometer nenhuma injustiça – era o Mar. Vieira Matias não se limitava a ser marinheiro e a poder ser um dos nomeados por Pessoa, que estavam “atados ao leme” por vontade de El Rei D. João II! Ele estava impregnado de Mar, creio até que em vez de sangue, lhe corria nas veias água do oceano! Mas não tinha do mar uma visão egoísta ou de usufruto próprio. Ele sabia – e hoje pouca gente sabe – da importância do mar para Portugal e como o mar fez Portugal. E foi um paladino defensor da extensão do mar português através do alargamento da Plataforma Continental.

Alicerçado no estudo, na convicção e na fé – o Almirante Matias era um Homem de Fé – tinha uma ideia estratégica e geopolítica do que o mar representa e devia representar para Portugal. Imbuído deste fervor, que era simultaneamente racional e emotivo – lutou por essa ideia, não só quando marinheiro militar em funções, mas sobretudo depois de abandonar o serviço activo e se ter tornado académico em várias instituições e prestado relevantes serviços noutras, desde a Academia de Marinha à Academia das Ciências, passando pela Academia Portuguesa da História, a Liga dos Combatentes, a Sociedade Histórica para a Independência de Portugal.

Vieira Matias muito contribuiu para que Portugal – que atravessa uma das fases mais sombrias da sua História – começasse novamente a olhar para o mar com os olhos que nunca devia ter deixado de ter. Mas o caminho a trilhar em termos de vontade, meios e realizações é longo e cheio de correntes e ventos adversos.

A sua paixão pelo mar está ligada indissoluvelmente ao seu amor por Portugal, o que fez dele um patriota termo que, infelizmente, é hoje abjurado por cidadãos portugueses pouco dignos desse nome. Aprendeu a sê-lo por ter nascido perto de Aljubarrota, terra que deu o nome a um dos mais famosos combates da nossa História e que sempre denominava de “Batalha Real”.

Vieira Matias era, tanto quanto o meu conhecimento da vida e dos homens alcança, um aristocrata do espírito. Bom comunicador e de lhaneza de trato. Possuía um porte fidalgo, foi um cavalheiro dos mares. Dele se pode dizer que tinha um “bom ar”, frase que melhor se sente do que se explica. Gostava da vida e viveu-a bem e intensamente. Por isso lutou estoicamente com a doença, como bom combatente que era, e sempre a encarou como uma “emboscada do inimigo”.

Devo-lhe muitas atenções, que apenas pude ir retribuindo com camaradagem, amizade e consideração leais. Devo-lhe, especialmente, ter sido minha testemunha num nefando processo de que fui alvo, onde mais uma vez, demonstrou a sua verticalidade de carácter, coragem e portuguesismo.

Costumava dizer “que quem não conseguia estar a horas, chegava cinco minutos mais cedo”. Deixou-nos na sua hora. Para mim, seus familiares, camaradas e amigos serão sempre cinco minutos antes do que devia.

Em respeitosa continência, estou no cesto da gávea até ver desaparecer o horizonte.