É nestes penosos dias de descanso que damos o devido valor a um Marrocos-Irão ou a um Japão-Senegal. A experiência dos mundiais passados já nos devia ter ensinado, mas ninguém está preparado para passar de uma dose diária de quatro jogos para um deserto de futebol em que o espectador a sofrer de síndrome de abstinência procura uns restinhos de produto nos canais de informação, consola-se com uma gravação automática, atenua os sintomas com um resumo alargado e até a visão do rosto de Nuno Luz em direto da Rússia, a falar sabe Deus do quê, é recebida como um bálsamo.

Nos estádios os adeptos não pouparam as equipas que optaram por pactos de não-agressão, como foi o caso da França contra a Dinamarca e da Bélgica contra a Inglaterra. Pior foram os minutos finais do Polónia-Japão onde ambas as seleções concertaram esforços para que nada acontecesse. Mas, em comparação com o verdadeiro nada do dia descanso, até o nada que não aconteceu nos últimos minutos daquele jogo nos parece palpitar de emoções. Antes os dez minutos do purgatório nipónico-polaco do que vinte e quatro horas de inferno estático e árido. Para mitigar o sofrimento dos milhões de adeptos por todo o mundo, a FIFA podia oferecer-lhes um miminho, um Itália-Holanda, por exemplo, um jogo entre seleções femininas, entre árbitros, jornalistas, um joguinho do campeonato do mundo de padres, qualquer coisa menos este vazio atroz, esta prolongada interrupção da emissão por motivos alheios à RTP. É como estar um dia inteiro a ouvir as Quatro Estações de Vivaldi e, de cinco em cinco minutos, escutar uma voz mecânica que deveria sossegar-nos e só nos enerva mais: “Sr. Vieira, muito obrigado pelo tempo que aguardou. Informamos que terá ainda de aguardar quinze horas até que possamos satisfazer o seu pedido. Entretanto, Tchaikovsky.”

Ainda por cima, ontem foi um dia duro. Duas das seleções mais alegres do Mundial, a Colômbia e o Senegal, enfrentaram-se e, no fim, só os cafeteros seguiram em frente. É coisa para partir o coração até da estátua de D. José, se é que já não foi partido. Os tristes e os tácticos que me perdoem, mas no futebol o que é fundamental é a alegria. Anos de auto-didactismo ensinaram-me o básico do bloco baixo e da pressão alta, conhecimentos que uso com parcimónia em conversas com aqueles amigos tão sábios como um powerpoint numa formação de treinadores. Porém, confesso que muitas vezes não percebo em que esquema joga cada equipa, quais os princípios de jogo, as variantes tácticas. Caramba, às vezes nem tenho a certeza de quantos jogadores estão em campo. Mas, depois, há um passe como o de Coutinho para Paulinho – um passezão entre inhos –, um passe como o de Banega para Messi, e o meu cérebro tacticamente analfabeto alegra-se e principia a falar línguas. No futebol sou pentecostal: recebo a doutrina através das emoções. Se não me faz rir, não presta.

Ontem, Uribe, jogador colombiano, fez um passe de trinta metros para um colega no lado esquerdo. Assim que lhe chegou ao pé, a bola desmaiou, num abandono feliz. E eu, sozinho em casa, sorri como um danado, como alguém a quem acabaram de contar um segredo. Esses dois movimentos, o passe e a recepção, como pergunta e resposta, princípio e fim de uma conversa, valeram pelo jogo todo. Pelo menos, para mim, que não peço tesouros. Como espectador-garimpeiro, satisfaço-me com uma pepita ou duas por jogo. Hoje, neste dia de provação, longo e difícil, foi nessas pepitas amealhadas ao longo destas duas semanas que pensei: a sintonia Isco-Iniesta, a trivela de Quaresma, Modric a distribuir jogo com a rapidez de um croupier a distribuir cartas, um livre criado em laboratório pelos ingleses, a intimidade entre Hazard e a bola, a despedida de Salah com direito a chapéu, o golo da vida de Felipe Baloy.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR