Ainda não há muito tempo pensava-se que Lisboa não era feita para esplanadas. O vento persistente e desagradável durante a tarde, que os meteorologistas só por maldade chamam brisa, parecia tornar impossível a utilização de espaços de lazer ao ar livre. Havia também a questão da chuva. Em Lisboa registam-se cerca de cem dias de chuva por ano, muito perto da média anual de dias de chuva em Londres. Aliando a chuva ao vento, a possibilidade de esplanadas parecia remota. Vivemos assim encafuados em espaços muitas vezes minúsculos para almoçar ou simplesmente tomar um café. Havia exceções, como o Jardim da Estrela ou o Jardim da Parada, onde passei parte da juventude, mas eram isso mesmo: exceções.

Foi precisa a pandemia para que surgissem pequenas esplanadas em muitos locais das cidades, prolongando os espaços de restauração para o exterior, e ocupando um pouco do espaço público. No início de maio de 2021 os jornais anunciavam que as autarquias, para proteger os munícipes, decidiam isentar os estabelecimentos de restauração de taxas de esplanadas e permitiam o aumento da capacidade dos espaços ao ar livre. Claro que consideravam esta decisão de “caracter excecional e temporário”. No Porto mais de uma centena de esplanadas foram autorizadas a expandir a sua área com taxas de ampliação superiores a 50% passando a permitir a ocupação de espaços de estacionamento.

Para responder ao impacto da pandemia, a Associação de Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal apela a que todos os municípios agilizem o licenciamento de esplanadas e pede a isenção de taxas até final de 2021. Em muitos casos é suspensa a coleta relativa aos espaços anteriormente licenciados. Vários autarcas financiam a adaptação dos espaços exteriores para permitir a sobrevivência financeira da restauração. As esplanadas reproduzem-se em muitas áreas urbanas e tornam-se cada vez mais aprazíveis. Os proprietários aprendem pouco a pouco a utilizar aquecedores para compensar o famoso “acentuado arrefecimento noturno”, e a colocar para-ventos laterais para aumentar o conforto dos clientes.

Ao fim de muitos meses termina o longo período da pandemia, com as sucessivas fases de confinamento e desconfinamento. As esplanadas estão muitas vezes no centro da discussão, ora vistas como locais de proteção, ora como centros de disseminação do vírus. Com o fim da pandemia a situação inverte-se. Em janeiro de 2023 a Câmara Municipal de Lisboa, decide continuar a isentar as esplanadas de taxas, mas deixa as Juntas de Freguesia poderem reclamar os lugares de estacionamento de volta o que estas rapidamente tomam em mão. Noutros municípios de país a situação é similar.

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Dois anos depois do início da pandemia muitos comerciantes começam a receber aviso de que as esplanadas deveriam voltar a dar lugar ao anterior propósito do espaço que ocupam: o parqueamento automóvel. As Juntas promovem também a possibilidade de especializar as taxas das esplanadas em função da zona da cidade, procurando assim maximizar o encaixe financeiro. Em Lisboa fala-se até na possibilidade de compensar financeiramente a EMEL para os espaços que esta deixa de explorar, assumindo-se que esta empresa municipal é a proprietária natural dos espaços públicos onde procura enfiar, muitas vezes a custo, mais lugares de estacionamento pago.

Com as enormes distâncias que separam hoje os locais de residência dos locais de trabalho e das creches ou escolas onde se consegue encontrar a custo um lugar para os filhos, as ruas das cidades são cada vez mais a garagem coletiva de quem não tem garagem, ou, nos casos em que os carros são pouco utilizados, um cemitério de chapa. Talvez tivesse havido um tempo em que as filas de automóveis eram bonitas, e pareciam um sinal de civilização e progresso. Esse tempo está cada vez mais para trás. O automóvel é hoje apenas uma necessidade de que muitos de nós não conseguem abdicar.

A explosão de esplanadas foi uma excelente iniciativa. Tornou-se possível porque o processo de licenciamento foi liberalizado e as taxas removidas ou suspensas, e isso animou as ruas e promoveu a economia de muitos pequenos empreendedores. Finda a pandemia, o monstro do licenciamento está cheio de fome: voltam os processos intermináveis, e as inevitáveis “taxas e taxinhas” de que as forças políticas tanto troçam quando estão na oposição, mas de que facilmente se esquecem, exatamente na altura em que essa memória era mais precisa.

Das sequelas do COVID há pelo menos uma que foi boa: termos percebido que as nossas cidades podem utilizar espaços exteriores e que uma esplanada aberta ao céu, apesar da brisa da tarde e dos dias de chuva, nos põe diante dos olhos uma das melhores salas de espetáculo do mundo: aquela que se estende para além da distância que a vista consegue alcançar.

Cada pequeno espaço de restauração encerra muitas vezes em si a vida de uma família ou o seu sustento. Muito melhor do que inventar mais um subsídio quando esta comunidade deixar de se poder sustentar é criar as condições para tornar expeditos os processos de autorização, aprender com a pandemia, deixar florescer a iniciativa e a diversidade dos que se esforçam muito para fazer o seu caminho, em vez de a esmagar com a máquina da burocracia, independentemente das justificações virtuosas de planeamento, arquitetura, ou ambientais com que hoje se vestem os novos impostos.

A sustentabilidade dos pequenos comerciantes é um dos pilares das sociedades democráticas e defendê-la é, em última análise, defender a democracia. Um pequeno negócio vale bem um estacionamento. Mais do que o vento que incomoda os passantes, é o vento da destruição dos empresários independentes que nos deve incomodar.