No fragmento 364, escreve Alceu: “Penía é um mal ingovernável e, juntamente com a sua irmã, Amechanía, derruba.” Que mal será esse que aos homens retira o chão e o amor? Como se viverá, aliás, sem amor? Cheio de pedras e sem sentir, como na ilha de Lemnos.

Durante muito tempo, ninguém na ilha se apaixonou; ninguém queria voltar a fazê-lo, porque amar verdadeiramente exige muito esforço. Afrodite enfureceu-se com os habitantes, pois, afogados em afazeres, esqueceram-na e privaram-na do culto. Tudo na ilha se reduzia ao hábito, ao trabalho: o tempo de Lemnos, de onde o afecto fora banido, era um tempo sem surpresas, nada a descobrir, nada a esperar.

Em vez de tentarem recuperar o amor perdido, as mulheres de Lemnos preferiram renunciar-lhe para sempre e matar, com as suas próprias mãos, os homens que tinham amado ou poderiam ter amado. Pensavam, sem amor, viver seguras – a cada dia que passava, contudo, a sua insegurança aumentava; é o que se alcança quando se varre as ameaças para debaixo do tapete. As mulheres de Lemnos viviam no meio da solidão e, sobretudo, no meio do terror de que alguém descobrisse o seu crime.

Quando o Argo aportou à ilha, as mulheres, armadas, acorreram à praia para ver quem seriam aqueles forasteiros e quais as suas intenções; qualquer homem lhes fazia lembrar o grave crime que tinham cometido, recordando-lhes simultaneamente a possibilidade de se salvarem de uma existência de isolamento e privação.

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Sem de nada suspeitarem, os Argonautas enviaram um mensageiro para comunicar o desejo de passar uma única noite em Lemnos antes de retomarem o caminho. Entretanto, na cidade, as mulheres reuniam-se sob orientação da sua rainha, a doce mas endurecida Hipsípile. Nervosa e susceptível, a rainha propôs às mulheres que enviassem ofertas aos Argonautas – comida, vinho doce – para mantê-los fora das muralhas. Entrando, descobririam o que tinham feito e, pior ainda, talvez as mulheres de Lemnos achassem impossível ignorar a oportunidade de, amando, voltar a viver o que a fortuna lhes oferecera.

Hipsípile propôs-lhes, por isso, fingirem ser felizes para esconderem a sua verdadeira infelicidade; disfarçarem aquela ruga na testa com o esforço de um sorriso, quando aquilo de que precisariam era chorar a sua dor e lamentar o seu erro; fingirem que não se passava nada em vez de mudar tudo.

A assembleia deliberou, contudo, comunicar aos argonautas que entrassem na cidade sem medo e que a rainha receberia com gosto o comandante.

O capitão dos Argonautas e a rainha de Lemnos estavam prestes a encontrar-se pela primeira vez. Tinham em comum a mesma solidão, a mesma necessidade de amar e de ser amado. Jasão, inconsciente, dirigiu-se para a cidade “como uma estrela brilhante”, aquela lua cheia à qual nenhum homem e nenhuma mulher consegue negar um olhar de espanto nas noites de verão.

Sentada no seu trono, as faces de Hipsípile ficaram da cor da romã quando o viu. Foi, porém, com “palavras estudadas” que se lhe dirigiu: preferiu, por vergonha, mentir. Dizer quase a verdade; aquele “quase” com que espantamos a sinceridade, movidos por não sei que recato ou temor, acabando por falar de nós, não com apaixonado rigor, mas com “estudada” imprecisão: falou-lhe da solidão e da tristeza das mulheres da ilha, mas também de maridos emigrados para cultivar “os nevados e férteis campos da Trácia” e dos filhos que os tinham seguido.

Ofereceu-lhe o trono de Lemnos. Mas ele acabara de partir, a remotíssima Cólquida e o velo de ouro esperavam-no, não podia aceitar o trono e ocupar um lugar que não lhe pertencia; navegava pelo trono de Iolco. Consolou, contudo, a rainha com um gesto, mais capaz de lhe aliviar a tristeza do que as palavras: deu-lhe a mão. Uma carícia. A primeira na vida de Hipsípile, aquela em que o espaço e o tempo se confundem com a luz. Os argonautas já não partiram e toda a ilha se transformou num frenesim contínuo de bailes e banquetes. E, entre cânticos e sacrifícios, Afrodite, a deusa do amor, foi, acima de qualquer outra divindade, propiciada. Apenas um, Hércules, permaneceu prudentemente no navio.

Os dias passaram, enfim fecundos, enfim felizes. O vento voltara a ser favorável, mas os Argonautas adiavam a partida. Naquela ilha, os argonautas tinham interrompido a navegação dois dias apenas após a heroica partida, seduzidos pela falsa segurança da monotonia. Flutuavam, como o Argo, esquecido no porto. E para sempre ali teriam permanecido, na companhia daquelas mulheres apaixonadas, se Hércules não os tivesse sacudido. E foi com as suas palavras sarcásticas e duras censuras que os nautas despertaram do seu torpor.

Hipsípile despediu-se de Jasão, manifestando um desejo dirigido ao céu – o de voltar a amar um homem e ser mãe.

Jasão embarcou primeiro, os companheiros rapidamente o seguiram e cada um tomou o seu lugar nos bancos. O mar não tem caminhos nem direcções, apenas limiares. E a tarefa de decidir para onde ir recai exclusivamente sobre cada um.

Em terra podemo-nos consentir o luxo de anos a fingir que não compreendemos, quando, na realidade, o que pretendemos é não compreender: podemos manter longe a memória de quem não tivemos coragem de amar ou de quem perdemos; podemos repelir a ideia de tudo o que poderia ter sido e não foi porque não quisemos. As pessoas não acontecem, procuram-se, e é então que se deixam encontrar.

Podes apoucar uma paixão, brincar contigo para não seres forçado a acreditar verdadeiramente nela, e chamar-te “ingénuo” quando ousas fazê-lo. Podes enganar-te todas as manhãs, ao espelho; baralhar as cartas da realidade e da irrealidade, do que terminou e também do que já começou, ainda que não o desejasses, ainda que não o esperasses. O teu trabalho, as tuas viagens, as tuas lágrimas, tudo para ti não é “nada de especial” quando as partilhas, para não seres obrigado a levar-te a sério e depois fazeres com que te levem a sério.

As leis da física são diferentes das da vida: a reação de um corpo humano na água é, sem fazer absolutamente nada, boiar; saber nadar não importa. O princípio de Arquimedes, infelizmente, não se aplica à existência: boiar durante anos – décadas até – balançando em certezas inseguras, em falsas convicções, em triviais jogos de palavras, significa ser infeliz, impotente; aí, saber nadar importa. Muito.

Tranquilos, em terra firme, podemo-nos baixar, se não nos sentirmos à altura das nossas paixões, escondendo-nos, em vez de nos erguermos, abrindo as mãos e o olhar quando a vida nos chama pelo nome. No mar, não. A escolha não pode ser adiada como um qualquer incómodo, algo trivial. Não podemos responder: “acontece” e encolher os ombros. A tristeza, a incompletude, não desaparecerão amanhã, como te disseram quando te mostraste frágil: “Amanhã tudo passará, vais ver”; sim, claro, mas o que interessa é o que fica.

Alceu chamava Ἀμηχανία (Amêchanía) a essa impotência que paralisa qualquer impulso de vida e que impede aquele fulgor que a todos se concede e de todos se exige: ser herói. Personificada, a impotência tem como irmã uma das situações humanas mais dolorosas, a falta, a pobreza: Πενία (Penía).

Dois mil anos depois, dou por mim a pensar: onde colocámos a bitola daquilo que pedimos da vida? E, sobretudo, o que estamos dispostos a procurar? Zarpar de seguranças finitas, despedirmo-nos delas, voltando o olhar para a surpresa infinita que é viver, é o gesto mais antigo e libertador de quem está plenamente vivo. Para compreender, conhecer, o homem ou a mulher em que te tornaste; para finalmente saberes saudar com sinceridade o tanto que ficou por dizer. E então amanhecerá sobre Lemnos, será hora de zarpar.

Vamos?