1. O regime da tributação simplificada dos trabalhadores independentes e dos pequenos empresários foi introduzido pela reforma fiscal de 2001, quando eu era Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, sendo ministro das Finanças Joaquim Pina Moura e primeiro-ministro António Guterres. Conheço por isso particularmente bem as circunstâncias que levaram à adopção desse modelo. Portugal foi, de resto, um dos últimos países da União Europeia a perfilhar uma solução desta natureza.

2. À época, a legislação fiscal portuguesa padecia de insuficiências gravíssimas, que propiciavam escandalosas situações de evasão e fraude fiscal, gerando ainda gritantes situações de ineficiência e iniquidade fiscal. O movimento reformador então encetado dirigia-se a quatro domínios: a tributação do rendimento, a justiça tributária, a tributação do património e a eco-fiscalidade.

3. Apesar da minha passagem pela Secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais ter sido fugaz, a verdade é que, nesse período, se logrou reformar profundamente o IRS e o IRC, aprovar o actual Regime Geral das Infracções Tributárias, introduzir importantes correcções na Lei Geral Tributária e no Código de Processo e Procedimento Tributário, deixar pronto o ante-projecto do Código do IMI – que veio a ser aprovado pelo Governo seguinte – e bem assim a revisão do Código do Imposto de Selo (com a extinção do decrépito imposto sobre sucessões e doações).

4. Em matéria de IRS, os principais objectivos foram os seguintes: garantir uma efectiva tributação unitária do rendimento (equidade horizontal), alargar a base tributável (de forma a cobrir os rendimentos que escapavam pelas omissões e pelos “buracos” da lei), simplificar os procedimentos de apuramento da matéria colectável, assegurar a progressividade da tributação (equidade vertical), personalizar as deduções fiscais e racionalizar os benefícios. Isto era completado com medidas de combate à evasão e fraude fiscal, tendo-se introduzido mecanismos de inversão do ónus da prova (perante a existência de sinais exteriores de riqueza), permitindo-se a derrogação do sigilo bancário (em casos justificados) e sancionando-se adequadamente os prevaricadores (através de um novo regime sancionatório).

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5. O figurino adoptado permaneceu no essencial, embora sujeito a inúmeras alterações e apesar de ter sido derrogado nalguns pontos importantes (como, por exemplo, aconteceu com a tributação das mais-valias provenientes dos valores mobiliários, que só veio a ser reintroduzida anos mais tarde).

6. Foi neste contexto, com uma visão de conjunto dos caminhos a trilhar, que se inseriu o regime de tributação simplificada então criado.

7. Não foi fácil impor essa solução, porque muitos entendiam que só através da aplicação de indicadores de base técnico-científica, consoante os diversos sectores da actividade económica, é que seria justo e eficiente adoptar regimes simplificados de natureza “forfetária” (i.e., em que se presumissem proveitos e/ou despesas). Como é evidente, eu também era sensível a essa argumentação, porque reconhecia a diversidade de situações e admitia que o ideal seria estabelecer diferentes soluções “forfetárias” consoante a natureza das actividades, tendo em conta as especificidades de cada uma delas. Mas também sabia da enorme dificuldade em encontrar consensos na definição desses critérios técnico-científicos, que há anos vinham a ser estudados sem se chegar a lado nenhum. Era para mim claro que, se tivéssemos de aguardar por tais indicadores, nunca mais teríamos tributação simplificada, assim deixando à mercê de um sistema injusto centenas de milhares de contribuintes, muitos deles penalizados porque lhes saía a “fava” de inspecções ou outras acções tributárias contundentes, mas deixando outros à margem dele, porque a Administração Fiscal nem sabia da sua existência.

8. Foi assim que o Governo adoptou um regime de tributação simplificada, pelo qual se estabeleceu que os contribuintes que auferissem um montante anual líquido de rendimentos inferior a determinado valor (actualmente €200.000) teriam – a não ser que optassem pela contabilidade organizada – a determinação do seu rendimento tributável obtida através de aplicação de determinados coeficientes (actualmente 0,15 para as vendas de mercadorias e produtos, bem como às prestações de serviços de restauração e hotelaria, e 0,75 para os rendimentos da generalidade das actividades profissionais independentes).

Ao mesmo tempo, previa-se ainda que, à medida que fossem aprovados os indicadores de base técnico-científica para os diferentes sectores da actividade económica, seriam estes que passariam a ser aplicados aos contribuintes dessas áreas. Tais indicadores nunca vieram a ser aprovados, como, aliás, não era difícil de prever. Mas o regime da tributação simplificada foi um enorme sucesso, trazendo para dentro do sistema milhares de contribuintes, simplificando a vida fiscal, gerando eficiência na arrecadação de receitas e introduzindo justiça fiscal. Sem prejuízo de, como tudo, merecer “afinações” fundamentadas e actualizações justificadas.

9. Este regime vigorou até hoje (nem a troika o desfigurou), mas agora chegou a proposta de orçamento em discussão, a qual, mantendo a tributação simplificada para contribuintes com rendimentos até cerca de €16.000, para os restantes passou a fazer depender a dedução em causa da apresentação de documentação de despesas relacionadas com a actividade. Ou seja, para todos estes outros, acabou pura e simplesmente a tributação simplificada, passando a existir uma espécie de contabilidade simplificada.

10. “Ninguém entende que um contribuinte possa ter acesso a uma dedução automática sem prestar contas”, justifica Mário Centeno. Essa afirmação significa que o ministro não percebeu que a tributação simplificada serve precisamente para estabelecer deduções com base em presunções, que se julga ser razoável praticar em nome de determinados objectivos da política fiscal. E esconde o verdadeiro móbil: arrecadar mais receita fiscal.

11. A existência de deduções automáticas é seguramente geradora de injustiças relativas. Haverá quem deduza o que não gastou, enquanto outros são penalizados por despesas que efectivamente tiveram. E certamente se perderá receita em relação àqueles que beneficiaram do sistema mais do que, em abstracto, se justificaria.

12. Com a alternativa adoptada, porém, perde-se muito mais: i) sujeitam-se milhares de contribuintes a uma fiscalização inoperante, muitas vezes arbitrária, relativamente ao que são, ou não, despesas da actividade; ii) sobrecarregam-se os contribuintes com obrigações contabilísticas desnecessárias; iii) aumenta-se a carga fiscal em relação aos trabalhadores mais expostos a situações de insegurança e precariedade.

13. Alguns exemplos ajudam a compreender melhor o problema. O secretário de Estado Mendonça Mendes terá dito que, em relação a um trabalhador que trabalhe em casa, admitir-se-á que “uma despesa de supermercado possa ser apresentada”; terá dito ainda: “Se um advogado comprar um fato caro numa loja da Av. da Liberdade, pode apresentar essa despesa? Se na sociedade onde está tem de ir arranjadinho, então aquela é uma despesa relacionada com a actividade profissional”. Ora, como é bom de ver, estes exemplos demonstram a inoperância da solução, porque todos os trabalhadores independentes podem trabalhar em casa (e frequentemente fazem-no) e todos eles (não só os advogados) precisam de ter um fatinho melhor para certas ocasiões.

14. Por outro lado, como é que se faz quando se tratar da aquisição de um imóvel ou de uma viatura? Passa a vigorar o regime de amortizações aplicável aos que têm contabilidade organizada? Ou tais despesas não são dedutíveis?

15. Reconheço que o Governo também tem em mente a adopção de medidas destinadas a minorar a penalização feita a estes contribuintes (designadamente alargando-lhes o mínimo de existência). E não tenho dúvidas que não deixará de introduzir variadíssimas alterações ao regime agora proposto, com vista a corrigi-lo e a melhorá-lo, as quais darão lugar a dezenas de interpretações divergentes, com a habitual controvérsia jurídica, que ajudará a entupir, ainda mais, os tribunais tributários e a aumentar exponencialmente as penhoras aos mais incautos.

16. Mas o mal estará feito. Acaba-se com a tributação simplificada em relação a muitos milhares de contribuintes, talvez com algum ganho imediato de receita, mas com a desprotecção de vastos sectores da classe média, onerando a sua vida profissional com encargos desnecessários e, numa quantificação ainda difícil de fazer, agravando a carga fiscal a que estão sujeitos.

17. Eu apoio a actual maioria. Mas preocupa-me a falta de rumo e, nalgumas áreas, a sua incapacidade de ter um verdadeiro programa de acção. Com objectivos estratégicos claros.

18. Na área fiscal gostaria que se pensasse para além da receita do orçamento de cada ano. Que se entendesse que um sistema fiscal iníquo gera desconfiança e repúdio. A prazo, contribui para a ineficiência do sistema económico, gerará menos receita e comprometerá um desenvolvimento sustentável.

Advogado, antigo secretário de Estado das Finanças