A Professora Doutora Mafalda Miranda Barbosa, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, com o  título “Um decisão pró-vida importantíssima do Tribunal da Relação de Lisboa”, publicou na Revista de Direito da Responsabilidade, dando conta disso na sua página do Facebook, o seguinte sumário de um acórdão recente: “O Tribunal da Relação de Lisboa veio considerar que, ‘ainda que se entenda que o nascituro concebido, ex vi artigo 66º CC, não tem personalidade jurídica plena, ele é, face ao artigo 70º CC, um ser humano, uma criança em gestação, ou seja, um bem jurídico autónomo e, como tal, tem direito ao desenvolvimento geral da sua personalidade física e moral e a não ser ofendido ou ameaçado na sua vida ou saúde. Estando em causa a tutela do bem jurídico da vida intra-uterina, sendo este bem distinto dos bens jurídicos da afectividade e espiritualidade dos pais para com os filhos, o dano da supressão do direito da vida do filho nascituro é um dano direta e autonomamente indemnizável, ex vi artigo 496º CC’“.

Pode parecer algo bizarra, para os leigos nestas matérias, a distinção entre ser humano e personalidade jurídica, na medida em que é intuitivo que a cada pessoa, nascida ou por nascer, deveria corresponder automaticamente o reconhecimento jurídico da inerente personalidade. No ordenamento jurídico português, embora muitos o defendam, a questão continua controversa e, por isso, a afirmação, pela 8ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa, a 14-11-2019, de que o nascituro é “um ser humano, uma criança em gestação”, abre promissoras perspectivas na defesa do direito à vida desde o momento da concepção.

Os professores Mafalda Miranda Barbosa e Pedro Pais de Vasconcelos, entre outros, têm vindo a defender o que este último expressou em termos inequívocos: o embrião é “um ser humano vivo, com toda a dignidade da pessoa humana. Não é uma coisa. Não é uma víscera da mãe”. Esta é, também, a posição assumida pelo histórico acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que, a 3-4-2014, declarou que “o nascituro não é uma simples massa orgânica, nem uma parte do organismo da mãe, ou, na clássica expressão latina, ‘portio viscerum matris’, mas um ser humano, com dignidade de pessoa humana”. Resta agora retirar desta declaração, que mais não é do que uma mera constatação de facto, as inevitáveis consequências jurídicas, ao nível da proteção da vida deste sui generisser humano” e da sua “dignidade de pessoa humana”, bem como da criminalização de quem atente contra a sua vida ou dignidade.

O direito é, sobretudo, razão ou, no modo de dizer escolástico, recta ratio: uma relação, ou proporção, apreendida pela inteligência humana em função do que as coisas são. Neste sentido, o direito não nasce propriamente do Estado, nem da vontade popular, mas das próprias coisas ou, se se quiser, da sua natureza, pressupondo, para ser verdadeiro direito, uma intenção de validade que se colhe numa concreta axiologia, a remeter-nos para o conceito de pessoa. O ordenamento jurídico não cria, portanto, a realidade, nem pode negar o quadro ético em que se baseia: não faria sentido outorgar personalidade jurídica a uma árvore, nem a negar a um ser humano.

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A personalidade e dignidade humanas não são benesses de um Estado omnipotente, nem dádivas de um generoso regime político, mas exigências decorrentes do sentido ético do direito que o queira ser. Assim sendo, o reconhecimento da personalidade humana do embrião é meio caminho andado para o reconhecimento da sua personalidade jurídica e, portanto, da sua inerente indisponibilidade. Se o ser gerado no ventre materno é alguém, e não uma coisa, nem a pessoa a que pertence esse ventre, nem quem com ela concebeu esse novo ser, podem ser tidos como seus proprietários, nem decidir arbitrariamente o seu destino. O dono de uma coisa pode, com efeito, proceder à sua venda ou destruição, mas um pai ou uma mãe não têm esse poder sobre um filho, porque mesmo sendo ‘deles’, na medida em que o geraram, não é sua propriedade, nem de ninguém, porque não é algo, mas alguém.

O reconhecimento do carácter humano do nascituro não é da competência do legislador, nem dos tribunais, mas da ciência. De modo análogo, o jurista faz decorrer os efeitos jurídicos decorrentes da morte, mas a verificação do óbito, na medida em que é um acto clínico, só pode ser atestada cientificamente por um médico. Também a natureza do ser gerado por um homem e uma mulher não pode ser definida pelo legislador, mas pela Biologia. Ora, do ponto de vista genético, não há qualquer dúvida de que o embrião é, desde o momento da concepção, um ser humano. Não é uma pessoa em potência, como se nada fosse ainda, mas é uma realidade individual que, por ser de natureza racional, só pode ser uma pessoa humana. Também não é parte do corpo dos seus progenitores, embora deles proceda: tem já vida própria, com características que podem até não coincidir com a de seus pais. Sendo um ser humano, o direito não lhe pode negar o estatuto de pessoa.

É verdade que alguns juristas recorreram amiúde a uma terminologia acientífica, para justificar o não reconhecimento da personalidade do embrião, sem lograr determinar a natureza desse estranho ser que, gerado por dois seres humanos e por isso da sua mesma espécie, não seria, contudo, uma pessoa, pelo menos juridicamente. Algo semelhante aconteceu com os defensores da escravatura, que consideravam os escravos como seres infra-humanos e, portanto, ‘coisas’ susceptíveis de compra e venda.

A definição do embrião, qualquer que seja o seu estado de evolução, como ser humano, anula quaisquer eufemismos jurídicos que, na realidade, apenas servem para impedir o reconhecimento da verdadeira dignidade humana dos entes que, gerados por um homem e uma mulher, só podem ser humanos. Que não se lhes possa ainda reconhecer o exercício dos direitos que são inerentes a essa condição – também a criança recém-nascida, embora dotada de personalidade jurídica, ainda não pode casar, votar, etc. – não pode servir de desculpa para a sua arbitrária eliminação.

Como muito bem diz a Professora Miranda Barbosa, esta declaração do Tribunal da Relação de Lisboa é importantíssima “para se argumentar que não existe um direito ao aborto (algo que já começa a ser invocado por muitos) (…). Há muitos anos que a doutrina civilística – independentemente da controversa questão da personalidade jurídica ou não do nascituro (que muitos reconhecem) – sustenta, quase unanimemente, que o embrião tem direitos de personalidade e que estes não ficam dependentes do seu nascimento (ao contrário dos direitos de natureza patrimonial que também lhe são reconhecidos). Os tribunais vinham-no afirmando timidamente, mas nunca, como neste caso, a propósito do direito à vida. Daí a importância da sentença”.

Afirma ainda a ilustre docente da Universidade de Coimbra: “o direito civil não chega para proteger aquele ser humano – aquela pessoa – ainda não nascida. Porque, nas situações em que é a mãe que lhe dá a morte, a sanção típica do direito civil – o pagamento de uma indemnização (mesmo descontando os casos em que possa ser exigida pelo pai, como o Prof. Pais de Vasconcelos e eu já defendemos por escrito) – não chega para o proteger. Daí que, contra o que digam, o direito penal seja eficaz e tenha de o ser. Daí a importância da criminalização”.

Não se trata, certamente, de ignorar as causas que podem legitimamente excluir a culpabilidade de quem pratica o aborto, mas por via de excepção e não de regra, da mesma forma como já acontece em casos análogos. Que alguém possa apropriar-se indevidamente de um bem comestível alheio, sem que cometa nenhum crime, explica-se num contexto muito específico de estado de necessidade, como também pode acontecer que uma interrupção voluntária da gravidez ocorra sem culpa, mas uma tal excepção não pode ser pretexto para a automática impunidade de quem, consciente e voluntariamente, pratica um aborto.

O nascituro, mesmo não tendo ainda unanimemente reconhecida a sua personalidade jurídica, é já, como agora o Tribunal da Relação de Lisboa explicitamente reconheceu, “um ser humano, uma criança em gestação, ou seja, um bem jurídico autónomo e, como tal, tem direito ao desenvolvimento geral da sua personalidade física e moral e a não ser ofendido ou ameaçado na sua vida ou saúde.”