Muitas vezes, quando estou sozinho, em silêncio, olho para o céu nocturno, penso na distância que nos separa até do planeta mais próximo, lembro-me de o meu avô me dizer que as estrelas que vemos agora já morreram há muito tempo (ou foi o meu avô ou vi isto num filme) e pergunto-me: “Meu Deus, porquê um Suíça-Suécia nos oitavos-de-final?” E Deus compadece-se de mim e responde-me: “Bruno, vê uma coisa, olhei para a minha criação e aborreci-me. Foi isso. Depois tinha duas hipóteses: um dilúvio global em que só uma família sobreviveria, os Kardashian, os Clinton ou a família da Luciana Abreu, ou um castigo menor como um Suíça-Suécia. Como já tinha experimentado o dilúvio…” Não respondo, mas fico a pensar que esta ideia de um Suíça-Suécia também não é propriamente nova. Em 2006, a Suíça também jogou contra uma equipa de amarelo nos oitavos-de-final do Mundial. Aí, enquanto a Suécia estava a ser eliminada pela Alemanha, a Ucrânia serviu na perfeição para o propósito entediante do jogo. Zero a zero no fim dos noventa minutos. Zero a zero no fim dos 120 minutos. Nos penáltis, a Suíça falhou os três a que teve direito. Seria pior desta vez? Como, meu Deus?

A meio do jogo pensei: “isto é um Xanax que dispensa receita médica”. E adormeci. Quando acordei, o dinossauro ainda estava ali. Voltei a adormecer, voltei a acordar e estava tudo na mesma. Porém, um adepto não perde logo a esperança e pensa, com todo o optimismo infundado de que é capaz, “isto precisa é de um golo”. Mas não. Precisa é do apito final. Porque quando um jogo como este precisa de um golo já sabemos que o golo é a única coisa que não vai acontecer. Há passes disparatados, remates que quase acertam na estação espacial russa, aquilo a que o comentador chama “descoordenação entre os jogadores suecos” mas que é apenas o estilo deles, cartões amarelos, lançamentos de linha lateral, etc. Tudo menos golos.

O grande momento da primeira parte acabou por ser uma intervenção jazzística de Luís Freitas Lobo, comentador da Sport TV, sobre a triangulação enquanto essência do futebol: “a tabela, a triangulação, a essência do futebol, é a coisa mais básica, a tabela, um-dois, recebe, vai embora, vou buscar, toca, dá outra vez”. Aí, como se Deus tivesse falado comigo através de Freitas Lobo, percebi para que serve um Suíça-Suécia nos oitavos-de-final e já nem o céu estrelado e o universo infinito me parecem tão misteriosos porque, afinal, “a tabela”, vocês sabem, “um-dois”, é isso mesmo, “recebe”, dá-lhe, “vai embora”, estou a sentir tudo, “vou buscar”, estás lá, meu irmão, “toca”, mágico, “dá outra vez”, say what?.

Mas nem tudo é horrível. Independentemente das equipas em confronto, existe um pathos, uma qualidade dramática inerente aos jogos a eliminar que os torna um tanto imunes à inépcia. Por muito mau que um jogo seja nunca é completamente insuportável porque a possibilidade de eliminação, por muito pouco que se reflicta na qualidade dos intervenientes, cria uma tensão própria, como uma banda sonora é capaz de, por si só, criar “suspense” sem o auxílio da imagem. Imagine-se alguém a ouvir a banda sonora de “Psico” sem estar a ver o filme e fica-se com uma ideia muito aproximada da experiência emocional de assistir a este Suécia-Suíça.

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Na segunda parte, apareceu o golo, naturalmente fortuito, resultado de um remate deficiente de Emil Forsberg que desviou num defesa suíço, Manuel Akanji, e entrou na baliza – há golos que são mesmo parecidos com o jogo onde acontecem (breve interrupção para dizer que Emil Forsberg é nome de dramaturgo nórdico “cujas personagens depressivas têm uma visão melancólica da existência”; quanto a Akanji, parece ter chegado agora de um romance de Chinua Achebe: “Ainda era de madrugada quando Akanji saiu da aldeia. Não tinha caminhado cem passos quando uma bola chutada pelo adversário lhe bateu no pé e traiu o guarda-redes.”)

No entanto, e como era de prever, o golo não soltou os artistas, não abriu os portões da genialidade, não instalou aquele género de caos que produz jogos interessantíssimos do ponto de vista do adepto neutral. O golo afundou ainda mais o jogo numa modorra de previsibilidade. Bolas cruzadas para a área sueca, bolas despachadas da área sueca, como numa fábrica de cruzamentos desfeitos. Numa tentativa de queimar tempo e ganhar um canto, Toivonen procurou acertar num jogador suíço que estava a dois ou três metros dele. A bola, farta de ser maltratada, desobedeceu às ordens do avançado e seguiu directamente para fora. O mínimo que se pode exigir à malícia é que seja servida por alguma habilidade. Aqui nem isso.

A Suécia defendia com competência, a Suíça atacava sem engenho e enquanto cada segundo tinha, para os suíços, o som de um passo a caminho do cadafalso, os suecos ouviam já os sinos celestiais. Para os adeptos do resto do mundo, era o zumbido quase inaudível e sem significado especial do tempo a passar. Na última jogada, um jogador sueco isolou-se e foi derrubado por um adversário. O árbitro marcou penálti, mostrou cartão vermelho ao defesa e, após indicação do VAR, assinalou livre à entrada da área e manteve o vermelho. Toivonen atirou uma bomba previsível que o guarda-redes suíço rechaçou protocolarmente e o árbitro apitou para o final da partida porque, como todos sabemos, não há mal que nunca acabe.

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A Inglaterra, a quem elogiei a alegria, escolheu para o jogo de hoje a abordagem cínica. Sobretudo a partir do golo de Harry Kane, os ingleses pegaram no manual de cinismo futebolístico e, entre simulações, perdas de tempo, substituições de minuto e meio e sururus para os quais os colombianos contribuíram com denodo, seguiram todos os passos. Outra equipa mais versada naquilo a que os britânicos chamam “dark arts” teria marcado um golo em contra-ataque no último minuto para arrumar a questão. A Inglaterra, que tem o hábito de cavar a própria sepultura, suicidar-se, enviar coroas de flores a si mesma e cantar no próprio funeral, sofreu um golo de canto nos descontos. Estava escrito algures que esta equipa tinha de ir a penáltis. E quando se pensava que a história se iria repetir pela milésima vez, não como farsa, mas como Inglaterra, Eric Dier caçou o mais antigo fantasma do futebol mundial e marcou o penálti decisivo como um alemão.