O título é obviamente uma referência e uma modesta homenagem ao “best seller” do israelita Yuval Noah Harari: Uma breve história da humanidade – Sapiens. Mas já lá vamos.

Se a coqueluche do mercado audiovisual fossem as telenovelas, Portugal estaria na linha da frente de produção, encomendas e presença nas grandes plataformas de distribuição globais (Netflix, HBO, Amazon Prime…). Acho que hoje já ninguém duvida disso, depois dos prémios internacionais conquistados e do elevado nível de produção no género em nosso país, só superado pela gigante brasileira Rede Globo e talvez pela mexicana Televisa. O grande problema é que o formato estrela mundial são as séries…

Vem isto a propósito daquilo que foi discutido, na última quinta-feira, no CCB em Lisboa, durante o 6º Encontro de Produtores promovido e muito bem organizado pela APIT (Associação de Produtores Independentes de Televisão).

Ouvimos produtores, e até agentes políticos, clamar que Portugal vive neste momento – pasme-se! – a sua “era de ouro na ficção televisiva”. Assim, com todas as letras. Menos mal que anotamos também divergências entre os próprios pares: produtores e políticos.

Estou com os que reconhecem existir ainda um longo caminho a percorrer. Acredito no voluntarismo, mas há que saber onde estamos, de onde viemos, quem somos e o conteúdo que temos à frente.

Segundo Yuval Harari, “a força das civilizações está na sua capacidade de criar ficções”. Tracemos um paralelo e consideremos por hipótese que as séries são uma categoria da ficção que pertencem a civilizações mais avançadas do que a das novelas. Sabe-se também que os humanos surgiram há milhões de anos, mas que nós, os homo sapiens, aparecemos há cerca de 200 mil anos. Durante a maior parte desse tempo, convivemos com os nossos irmãos neandertais, erectus etc. Mas foi o Sapiens quem conquistou o mundo graças à sua linguagem, mas sobretudo àquela capacidade única de fazer ficção, ou seja, imaginar situações, criar e acreditar em coisas que nunca existiram.

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Ora, certamente já perceberam onde quero chegar. Nós, portugueses, seríamos os neandertais de uma savana altamente agressiva dominada pelos sapiens americanos e de outros paragens, algumas aqui mesmo ao lado. Dados para reflexão:

  • 70% das séries consumidas no Netflix são de origem americana.
  • Em França, o Netflix já é o 5º “broadcaster” (com séries francesas à mistura).
  • O Netflix inaugurou um Centro de Produção Europeu em Madrid.
  • O Netflix vai investir 20 mil milhões de euros em 2020 em conteúdos (gráfico).

Fonte: CEPI (European Audiovisual Production)

Já inúmeros países do mundo beneficiam desse “festim” audiovisual. Mas quando irá Portugal tornar-se também um predador nesse ecossistema tão rico e cheio de oportunidades? Quando é que uma plataforma de streaming vai investir em conteúdos originais locais?

Segundo o próprio secretário de Estado do Cinema, Audiovisual e Média, Nuno Artur Silva, no seu discurso de fecho do Encontro, “será um longo caminho convencer o Netflix a fazer ficção portuguesa”. Para o secretário de Estado, não somos encarados como “players” desse campeonato. Em contraposição até com Leis, Diretivas e Obrigações que forcem as grandes plataformas a cumprir quotas locais, o Secretário aponta um caminho:  a co-produção. Cada vez mais em voga no mercado, Artur Silva dá o exemplo dos escandinavos, que sempre se juntaram para produzir séries de excelência. “Temos que encontrar a nossa Escandinávia”, conclui.

E porque não somos vistos como sapiens nessa imensa savana de bilhões? Os motivos são dos mais variados. Mas vamos considerar o mais trivial, embora não menos importante: na sua generalidade, as séries americanas, sobretudo, mas também as de outros países são melhores do que as nossas. Ponto.

Fonte: Observer

How Much Does It Cost to Fight in the Streaming Wars?

Olhemos para os nossos “hermanos” de savana Ibérica, os homo espanholis, um exemplo frequentemente citado e que não foi ignorado durante o Encontro de quinta-feira passada. Enchemos a boca para dizer que a série espanhola “A Casa de Papel” chegou lá! Onde queremos. Onde almejamos. Se os espanhóis conseguiram, porque é que nós não, tão perto que estamos geograficamente… Ora, voltamos ao título: convivemos todos geograficamente, mas uns são os sapiens novelensis e outros os serienses.

Coincidentemente, iniciei meu percurso profissional em televisão em Espanha, onde tive a oportunidade de assistir ao nascimento de uma escola de dramaturgia, sobretudo de escrita, com “Médico de Família”, “Jornalistas”, “7 Vidas”, “Os Serrano”… Há 25 anos. 1995. A grande precursora dessa longa caminhada civilizacional no mundo das séries em Espanha terá sido “Farmácia de Guardia”, formato que estreou nos idos de 1991 e transformou-se num acontecimento social e sucesso de audiência. Esse mesmo grupo de Produtores, Guionistas, Diretores, Realizadores são os que agora produziram fenómenos globais como “A Casa de Papel”, “Vis-a-Vis”, “Elite”… Perspectivemos. Os “nuestros hermanos” estão a produzir séries de forma sustentada há quase três décadas… autênticos seriensis.

Precisamos de muito mais do que voluntarismo. É preciso tempo. É preciso fazer. Investir. É preciso caminhar, fracassar, vencer, morrer e matar na savana.

Acredito que a única forma de o conseguirmos será a través do apoio e do investimento das FTA em formatos mais elaborados como o são as séries.  Leia-se também onerosos!

A RTP1 vem dando sinais mais consistentes dessa aposta. SIC e TVI definitivamente não abandonarão as novelas, mas é importante que sintam o apelo e o conforto dos espectadores. Mas sobretudo que encontrem formas de financiamento que lhes permitam correr o risco de atravessar esse território hostil.

Guionistas, produtores, realizadores, canais. Todos precisamos de uma política verdadeiramente sustentável de forma a conseguirmos dar o tal passo civilizacional para semear o gene do homo serienses entre nós, os homo novelensis, que sem dúvida alguma ainda dominaremos durante muito anos a terra portucalis.