A propósito do comportamento, que parece bipolar ou, pelo menos, a diferentes velocidades e sentidos, do clero português após a divulgação do relatório sobre os abusos sexuais da Igreja Católica em Portugal, forço-me a escrever sobre o tema, em jeito de carta-aberta a esta minha Igreja, com o coração nas mãos e o desgosto a cicatrizar-me a alma. Na extensão circunscrita deste texto, não cabe um tratado, nem pelo tamanho, nem pela oportunidade e menos ainda pela capacidade teológica. Mas sempre caberá um punhado de perguntas, uma mão cheia de considerações e um reflexo do intolerável peso da culpa e da vergonha, que não alheias, mas próprias, porque são as da Igreja de que cada um de nós, cristãos católicos, fazemos parte.

A história da Igreja está cheia de contradições com a vida e os ensinamentos de Jesus, o Cristo. Porque, sendo fundada por Cristo, é gerida por homens. E muitos desses homens, como os homens de qualquer parte que se tornam ou se julgam grandes e importantes, não conseguem deixar de cair na tentação e na mesma armadilha em que, no tempo da vida terrena de Jesus, haviam caído os fariseus!

Conta o evangelista, que a milenar tradição eclesiástica identifica com o apóstolo S. Mateus, o cobrador de impostos arrependido da sua anterior ambição desmesurada sobre o património dos sujeitos passivos, que Jesus terá desancado nos fariseus e nos doutores da Lei. Por diversas vezes! De cegos a hipócritas, de serpentes a raça de víboras, entre outros epítetos, Jesus aponta-lhes um chorrilho de adjectivos nada simpáticos, os quais, as mais das vezes, julgamos ainda ver em homens que nos circundam e, ainda que pela mesma cegueira e hipocrisia, a menos das vezes, só por vezes, em nós próprios!

Se revisitarmos o Capítulo 23 do Evangelho de S. Mateus leremos (nos versículos 27 e 28), entre o tal cardápio de atributos com que Jesus presenteou os alvos rabínicos e religiosos: «Ai de vós, doutores da Lei e fariseus hipócritas, porque sois semelhantes a sepulcros caiados: formosos por fora, mas, por dentro, cheios de ossos de mortos e de toda a espécie de imundície! Assim também vós: por fora pareceis justos aos olhos dos outros, mas por dentro estais cheios de hipocrisia e de iniquidade». Ou ainda o Capítulo 12 onde, no versículo 34, Mateus cita a seguinte pergunta que Jesus faz aos fariseus: «Raça de víboras! Como podeis falar de coisas boas, se sois maus?».

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E, em tudo isto e no mais que diz Cristo, nestas e noutras passagens, deste ou dos outros Evangelhos, conseguimos vislumbrar aqueles que, no poder civil, são os incompetentes corruptos que tantas vezes ocupam desmerecidamente os lugares públicos esquecendo-se do nobre exercício do governo da polis que as leis e as constituições prescrevem e aqueles que, nas Igrejas, se aproveitam do sacerdócio para o carreirismo clerical ou para alibi dos seus crimes e pecados, esquecendo-se que eram os pastores e pescadores de homens que Jesus procurou.

Pois que, como o próprio Jesus vaticinou, não será verdade que na Igreja de que todos nós, os fiéis, somos parte, nunca deixámos de manter uma corte de fariseus? E não seremos fariseus quando escondemos o próprio Cristo por detrás dos formalismos em vez de o mostrarmos à luz da fé e da prática? Não será de farisaísmo que tantas vezes tem falado também o Papa Francisco quando aponta os males do clericalismo? Não será também desta corte de fariseus que Jesus falou quando avisou que sobre eles cairá «todo o sangue inocente que tem sido derramado sobre a terra, desde o sangue do justo Abel até ao sangue de Zacarias, filho de Baraquias, que matastes entre o santuário e o altar»? Não faremos nós o papel maligno de tentar destruir a própria Igreja quando a transformamos num reduto de farisaísmo e morada de víboras?

Quando homens desta minha Igreja, leigos ou clero, sucumbem ao natural mas primitivo instinto de a procurar salvar através da ocultação da imundície que alguns produzem, dos crimes que uns quantos cometem, dos pecados que todos experienciamos, não estaremos a ser como os fariseus de quem falava Jesus? Não estaremos a «alargar as filactérias e a alongar as orlas dos nossos mantos»? Não nos estaremos a exaltar esperando não ser humilhados? Não estaremos a querer «filtrar os mosquitos dos outros enquanto engolimos um camelo»? Não estaremos a querer «limpar o exterior do copo e do prato, quando por dentro estão cheios de rapina e de iniquidade»? Não estaremos a querer «pagar o dízimo da hortelã, do funcho e do cominho enquanto desprezamos o mais importante da Lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade!»?

É que, justificarmo-nos com desculpas, explicações ou expedientes é fugir à fidelidade à própria Lei que pregamos. É fugir à justiça da misericórdia de Deus! É fugir ao amor fraternal que Jesus ensinou e que devemos às vítimas. Como Zaqueu, também um cobrador de impostos, não devemos quatro vezes mais às nossas vítimas do que aquilo que lhes tirámos? Não às quatrocentas, mil ou às três mil ou quatro ou dez ou às cem mil, mas a cada uma delas! A cada filho com nome próprio, deste Deus grande e único e não de um qualquer deus menor! A cada um até que sejam todos. Como ao rebanho de ovelhas do bom pastor! Até chegarmos à última ovelha em falta, não podemos descansar!

Explicações, justificações, alegações de rigor jurídico não são mais que expedientes dilatórios e desculpas cruéis. Querermo-nos desculpar com elas é um novo acto de agressão a cada uma das vítimas! É um crime continuado! É um punhal frio cravado na carne e na alma de quem espera conforto, amor e perdão. De quem queria continuar a ter esperança, fé e amor! Desculparmo-nos e esquivarmo-nos assim, não será como rasgar publicamente as vestes, ou sentarmo-nos vaidosa e ruidosamente nos primeiros lugares, ao invés de rezarmos na última fila e darmos com a mão direita sem que o saiba a mão esquerda?

Até haverá argumentos que têm sido ditos pela boca e pela pena de bispos, presbíteros e leigos que são formalmente correctos: a comissão que elaborou o relatório foi pedida pela própria Igreja; uma indemnização não repara o mal feito; ninguém pode ser condenado antes de ser julgado; a mera acusação pode por em causa o bom nome de um inocente; o pedido de perdão a Deus tem sempre que ser feito; a extrapolação a partir de meras alegações é abusiva, etc., etc.! Mas a verdade dessas afirmações não pode ser feita isolando-as do mal causado, ao arrepio da dor das vítimas, na frieza da argumentação legal, escolástica ou doutrinal. Não pode ser feita como faria um hipócrita doutor da Lei, um fariseu. Só pode ser feita na imitação de Cristo: pelos olhos do seu amor puro, verdadeiro e incondicional. Não foi assim que Ele nos ensinou? Não é assim que pregamos? E se o pregamos e não fazemos, não estaremos a ser como os fariseus e os doutores da Lei?

A explicação não pode ser dada, alegando ser verdade que há abusos noutros lados: na família, nas escolas e instituições do Estado, na rua e nos locais privados, nos clubes desportivos, nos ginásios e sabemos lá onde mais. Mas é igualmente verdade que se há uma realidade onde esperamos que os abusos não possam jamais existir é na Igreja que todos nós, crentes, formamos e que confiamos aos nossos religiosos, aos nossos sacerdotes, aos nossos bispos e, através deles, aos nossos catequistas, cuidadores e a todos e cada um de nós. Um caso na Igreja tem uma gravidade acrescida, porque ao abuso de alguém no exercício de um poder, se junta a quebra de uma confiança acima daquela que se concede aos homens: a confiança naqueles que falam em nome da confiança de Deus. Um único caso na Igreja é motivo de escândalo insuportável!

Pergunto, pois, aos meus irmãos cristãos, católicos, leigos, religiosos, sacerdotes e bispos: porque confundimos o perdão que temos que pedir a Deus, na certeza do nosso arrependimento e no propósito de não voltar a repetir, com a falta de amor cristão que devemos às nossas vítimas? Às vítimas de alguns de nós? E, se nada dissermos, às vítimas de todos nós. Desde quando o perdão pedido a Deus nos livra da justiça e do amor ao próximo? Da reparação devida a quem ofendemos? E do pedido de perdão, verdadeiro, reparador e completo, também ao ofendido?

Não disse Jesus, «dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus»? Não significa isto também que pelo pedido sincero do perdão se obtém a misericórdia de Deus e que pelo processo legal, civil e criminal, se cumpre a lei de César? E, ainda que os crimes tenham prescrito, não é da lei de César, portanto dos homens, que lhes sobrevivam as obrigações naturais (os deveres de ordem moral e social, cujo cumprimento não seja já judicialmente exigível, mas que ainda assim correspondem a um dever de justiça)? E não disse Jesus ao bom ladrão, crucificado ao seu lado, que pelo perdão que obteve pelo arrependimento logo estaria com ele no paraíso? E, no entanto, Jesus, podendo, não livrou o bom ladrão do castigo de César e não o fez descer intocado da cruz onde estava. Nem se deixou tentar, descendo Ele próprio da cruz onde não merecia estar! E se Jesus não se livrou da cruz, que não merecia, porque tentamos livrar nós da lei de César os homens a quem a lei prevê punir? Somos nós juízes dos homens ou rebanho de Deus?

Claro que há um procedimento canónico. Pois que siga. Claro que há também um procedimento da lei dos Estados. Pois que siga, também. E, a Deus, deixemos aquilo que é de Deus. E aos nossos sacerdotes, deixemos aquilo que é a missão que lhes foi confiada pelo próprio Senhor Jesus. Inclui-se o perdão, mas não se inclui a subtração à justiça dos homens! Até mesmo quando esta é injusta, como bem experimentou Jesus na cruz.

Não nos submetermos voluntariamente ao silêncio dos verdadeiramente arrependidos, em vez de vociferarmos com legalismos e dialética, não será fazermos de doutores da Lei? Ao ajudarmos a esconder a imundície, fazendo da nossa Igreja um sepulcro de criminosos, não é sermos como os fariseus? Ao não afastarmos cautelarmente os pastores suspeitos do rebanho vulnerável, não é duvidar da verdade e do amor reparador de Deus e fazermos como as serpentes, raça de víboras? Não se entregou Jesus à justiça dos homens, ainda que o seu Reino não fosse deste mundo e não fosse ele culpado de nada? Não se calou também Cristo perante as perguntas de Pilatos?

Oremos, pois, para que, como Igreja, tentemos imitar a Cristo. Supliquemos pelo perdão, reparação e recuperação das vítimas. Rezemos, então, pelos nossos sacerdotes, catequistas, chefes de escuteiros, educadores de infância, enfermeiros, médicos, pais e mães, irmãos, tios e todos os que não souberam honrar a santidade e a inocência daqueles que vitimizaram. Mas não lhes viremos as costas, ignorando o seu sofrimento e a sua súplica, negando-lhes as nossas obrigações de cristãos e substituindo-as com desculpas e justificações.

Lembremo-nos de pobre, imperfeito e valente S. Pedro: escolhido para primeiro Papa e, ainda assim, tendo negado Jesus três vezes, a Ele regressou e se entregou. Lembremo-lo ainda quando, fugindo de Roma e da perseguição que Nero movia aos Cristãos, viu Jesus a caminhar em sentido contrário, em direção a Roma, e perguntando a Jesus, «aonde vais, Senhor» (“quo vadis, Domini”), Ele lhe respondeu «vou a Roma para ser crucificado novamente». E São Pedro lá voltou para trás, para Roma. E foi crucificado por crimes de que não era culpado. E de cabeça para baixo, por não se achar digno de morrer como o seu e nosso Senhor. Regressemos também todos nós, Igreja, ao caminho que Jesus nos propõe. E, porque é necessário, regressemos a Roma!