A lenda clássica “O Flautista de Hamelin”, recuperada da idade média pelos irmãos Jacob e Wilhelm Grimm, que a deram à estampa em 1816, igualmente referida por outros autores, como Goethe no seu “Fausto”, ou Robert Browning no seu poema infantil “The Pied Piper of Hamelin”, não deixa de me vir à cabeça quando penso no que o líder do Chega vai dizendo, ou melhor, a música hipnótica que vai tocando para os mais crédulos e incautos habitantes desta nossa terra. Recordemos que a lenda retrata folcloricamente um acontecimento em 1284, na cidade de Hamelin, na Baixa Saxónia, no país a que hoje chamamos Alemanha. Nesse ano, um misterioso músico, um flautista, chegou à cidade, prometendo livrá-la dos ratos que a infestavam.

E logo surge o primeiro paralelismo com o líder do Chega: este promete limpar Portugal, contra o sistema, livrar o nosso país dos corruptos e dos bandidos à solta. Prometendo fazê-lo com a sua música, como quem afasta os ratos em direção ao rio Weser, este “nosso” flautista e contador de histórias, que nesta costa atlântica afastaria os bandidos, corruptos, pessoas de mal, enfim os ratos, até ao mar para, afogando-os, livrar o país desta rataria!

Continuando a história: com sua música encantadora, o “Flautista de Hamelin” da lenda conseguiu mesmo atrair os roedores para longe, livrando a cidade daquela praga. Mas, quando os habitantes se recusaram a pagar o preço impossível pela sua ajuda, o flautista retornou para levar embora algo muito mais valioso: as crianças.

Aqui chegados, não podemos deixar de pensar se esta história não servirá como uma luva, como uma fortíssima metáfora para os perigos de seguir cegamente líderes carismáticos que prometem soluções fáceis, mas cujas agendas falsamente messiânicas escondem consequências sombrias.

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No contexto político português contemporâneo, o “Flautista de Hamelin” tem um nome e um rosto: André Ventura, líder do partido Chega. Este, com sua retórica inflamada e populista, tem atraído bons eleitores com promessas vazias mas discursos cheios de ódio disfarçados de patriotismo.

O Partido Chega, que afinal é de um só homem, o “nosso” flautista que traz consigo alguns aprendizes de músicos saltimbancos, tornou-se uma presença perturbadora na paisagem social e política portuguesa, manipulando habilmente o medo e a frustração de muitos cidadãos, com uma música que lhes soa bem, com as suas mensagens simplistas e divisivas. Os seus apoiantes são atraídos pela promessa de uma voz forte e direta, uma voz que faz tremer os opositores e os bandidos, uma voz que partindo dos problemas reais das pessoas, utilizando as suas zangas e frustrações, fá-las acreditar que irá “limpar” o país de todos os males, de todos os corruptos ou imigrantes parasitas, bandidos ou minorias étnicas que vivem do trabalho honesto dos seus ouvintes. Uma voz heroica que faz calar qualquer pessoa que se atreva a desafiar a sua visão estreita do que é ser português. Ou mesmo calar qualquer outro português que queira falar e explicar os seus pontos de vista. Aí, o “nosso” flautista troca logo a sua suave flauta de bisel por uma poderosa gaita de foles, capaz de um chorrilho de sons fantásticos por cima do tom monocórdico e contínuo do sopro que a faz tocar, o som melancólico da demagogia. Com ela, a histérica gaita de foles, cala, interrompe e perturba o discurso dos outros. Nada se pode ou se deve ouvir por cima da música do nosso flautista. É dele o som mais alto, a nota mais estridente, o argumento mais fácil e histriónico.

Do fundo do medo de muitos, do desgosto de alguns, das frustrações de outros, das esperanças defraudadas dos restantes, tal como o flautista da lenda, André Ventura não está interessado no bem-estar genuíno do povo português. A sua música encantadora é, na verdade, uma cacofonia de preconceitos e intolerância, destinada a criar divisões e semear o ódio entre os cidadãos. Ele usa a frustração legítima das pessoas como combustível para seus próprios objetivos políticos, manipulando as suas emoções em vez de oferecer soluções reais para os desafios que enfrentamos como sociedade. Com a sua música, os primeiros a afogarem-se nas águas do seu engano, serão aqueles que ele atraiu. Ele próprio o explicou numa tese que apresentou na Irlanda, na Universidade de Cork.

Ao adotar uma postura de confronto constante e permanente desrespeito pelas pessoas e pelas instituições democráticas, metendo-as todos no mesmo saco, Ventura e o seu Chega representam uma ameaça ao tecido da própria democracia em Portugal. A sua retórica incendiária e suas propostas draconianas minam os valores fundamentais de liberdade, igualdade e justiça que os portugueses tanto festejaram e outros tanto lutaram para defender. Mas a memória é curta e a música, para muitos, é bonita!

É particularmente preocupante ver o crescimento do apoio ao Chega entre os mais jovens. Aqueles que já só se lembram de governantes socialistas ou de quem os teve que substituir, ainda que brevemente, para salvar o país da ruína onde os primeiros o haviam colocado. Os jovens que muitas vezes se predispõem à susceptibilidade, à manipulação e à sedução das mensagens que lhes soam como uma trombeta de afronta, ao canto da sereia que lhes parasita os sentimentos de justiça, da vontade de lutar, do idealismo e da revolta que todos os jovens têm e os mais velhos já tiveram. Porque já foram jovens. Mas que, se escutarmos bem, se separarmos os sons nas pistas de uma mesa de mistura, logo se perceberão como são simplistas e oportunistas os sons daquela cacofonia de ódio, divisionismo e desrespeito. Mas o flautista, esse não é simplista. É inteligente, tem memória e usa-as com empatia espertalhona. Recorda-se bem dos seus próprios zigue-zagues de jovem à procura de um futuro, ora de joelho no chão, ora de punho no ar, como uma barata tonta com cada novidade que lhe surgia pela frente. Já quis, fez e disse ser isto ou aqueloutro. Até que descobriu o poder da música que alimenta o radicalismo nacional como fonte de atração nova para aqueles de quem poderia fazer os ratos da sua história. Viu outros flautistas fazerem o mesmo numa Europa desapontada, nuns Estados Unidos extremados pelo divisionismo partidário e num Brasil sem escolhas credíveis. Percebeu que tinha que falar a linguagem de quem estivesse disposto a ouvir ou maduro para atrair. Através das redes sociais e de uma presença mediática cuidadosa e inteligentemente cultivada, Ventura e os seus seguidores têm conseguido capturar a atenção e a lealdade de uma geração que merecia bem melhor. Que merecia ser inspirada por líderes verdadeiramente comprometidos com a construção de um futuro justo e inclusivo. E participar dessa construção. Mas que por ter sido enganada pela música de uns, tocada a partir de uma pauta com clave de esquerda, se deixa agora levar por este fantástico “Flautista de Hamelin” que toca numa pauta de todas as claves, mas chama-lhes de direita!

Mas a culpa, talvez, é de todos nós, que deixámos entrar este flautista na nossa vida ao som urrante de “vergonha, basta, chega”, acompanhado pela suavidade cínica de uma flauta. Deixámos de ser capazes de cativar e alertar os desiludidos para a necessidade de permanecer vigilantes e resistir ao canto sedutor deste “Flautista de Hamelin” moderno. Deixámos de saber fazer o aviso que os nossos avós nos faziam para nos cuidarmos perante os vendedores de banha da cobra. Gritemos, pois, agora! Talvez ainda possamos ir a tempo. A tempo de lembrar àqueles que desencantados com os músicos de uma esquerda cacofónica que tomou conta da orquestra dando várias vezes cabo dela e do país, que as soluções contrárias e mais simples, como as tocadas pelo “Flautista de Hamelin”, nunca poderão ser eficazes em face dos desafios complexos e multifacetados com que o nosso futuro próximo se confronta já.

Lembremos os nossos concidadãos, atraídos de forma hipnótica pela flauta deste vigarista de Hamelin, que nunca as aventuras mal pensadas e de paixões de ocasião foram venturosas. D. Sebastião soube-o, no fim. Os alemães souberam-no, no fim. Os russos e os chineses continuam a aprendê-lo. Os Britânicos arrependeram-se, já tarde. Devemos ser capazes de descartar este som falso do flautista, para, com o rigor das regras de um Estado de Direito, nos unirmos em torno dos valores humanistas, de solidariedade, compaixão e respeito mútuo, com a liberdade de deixar as pessoas terem iniciativa própria. Iniciativa capaz de gerar uma vida melhor porque mais atenta e mais eficaz. Devemos rejeitar qualquer tentativa de nos dividir com base em diferenças artificiais e preconceitos infundados. Venham eles de vozes nos extremos da nossa esquerda ou de vozes nos extremos da nossa direita. Mas temos também que rejeitar qualquer música sem qualidade, uma música de feira de bugigangas. De afastar qualquer música enganadora que nos apareça pela frente, seja ela de um “Flautista de Hamelin”, seja ela dos manipuladores da orquestra do Estado à esquerda ou da cobra aprisionada num cesto para onde se entra, mas não se sai sem dor, mágoa e desgosto… excepto ao som de uma flauta!

Ensinou-me a minha velha Avó paterna, senhora de imensa cultura, polímata de raros predicados, leitora compulsiva e dona de um conhecimento enciclopédico e experimentado, que “no meio está a virtude”. “In medio virtus”, lembrava constantemente. É por isso que recuso fanfarrões de uma esquerda barulhenta e dissonante como uma orquestra sem ensaios. É por isso também, que recuso deixar-me encantar por um “Flautista de Hamelin”. É por isso que me assegura e me dá conforto o centro. Onde está a virtude que, como a sorte, dá muito trabalho! Por isso milito num Partido Social Democrata que em Portugal soube aliar o liberalismo da economia à preocupação da justiça social. Da iniciativa privada, à regulamentação eficaz que lhe evite abusos. De quem sabe que deve ter contas certas para servir os portugueses e não portugueses para servirem as contas certas, que esta última é a que fez o último aprendiz de feiticeiro a quem as coisas correram mal! É por isso que me sinto confortável a apoiar uma Aliança Democrática, onde reconheço a importância de um debate político robusto ainda que com diversidade de opiniões. Onde reconheço a ponderação e a preparação esclarecida na procura de soluções, em vez do improviso. Onde reconheço a capacidade de nos conduzir numa sociedade democrática saudável porque feita a pensar nas pessoas e no que queremos para o futuro. O de amanhã, mas também o de depois de amanhã.

Por isto, não nos podemos deixar atrair pela música do “Flautista de Hamelin”, escancarando assim as portas ao discurso do ódio e da intolerância, para que encontre abrigo nas nossas instituições políticas, nos nossos serviços públicos e nas nossas forças de segurança. Devemos chamar os que foram encantados por este “Flautista de Hamelin”, trazendo-os de volta à participação política virtuosa e não a que nos conduzirá ao afogamento inevitável. Temos que gritar por cima do som da flauta do vendedor da feira das ilusões, para denunciar e resistir a qualquer tentativa de minar os princípios democráticos que tanto valorizamos. Temos que clamar que o nosso sistema imperfeito, contra o qual toca a sua flauta o músico dos enganos, é bem melhor do que a falta de sistema que ele propõe ao som da sua flauta.

Portanto, diante do desafio representado pelo partido Chega e o seu líder, André Ventura, devemos permanecer firmes na nossa convicção de que a verdadeira força de uma nação reside na sua capacidade de celebrar a sua história, proteger a diversidade, garantir a igualdade de oportunidades para todos os seus cidadãos e de construir um futuro baseado no respeito, na dignidade e na justiça para todos, na procura contínua da melhoria do seu sistema e não na sua destruição. Somente assim poderemos proteger-nos do perigo representado pelo “Flautista de Hamelin” moderno e garantir um futuro de esperança e progresso para as gerações vindouras.

Mas, os mais atentos terão reparado que a história não acaba com o afogamento dos ratos! Acaba sim com o roubo das crianças! Ora isso já está a acontecer, quando um em cada três dos nossos jovens se põe a milhas de um país que lhes tem sido ingrato. E dos dois que ficam, um tem vontade de ir ao engano atrás deste vendedor de sonhos impossíveis, um “Flautista de Hamelin”.

É o que acontece nos tempos de hoje, quando o “Flautista de Hamelin” foi acalentado pelos próprios donos do Estado e das políticas que o dominam, com que a esquerda tentava tocar o seu aparelho como uma orquestra desgovernada e a quem dava jeito não deixar esquecer um flautista que se dissesse de direita para distrair os desiludidos e dividir os adversários. Como sempre, porque incapazes de aprender, repetindo sempre o mesmo erro à espera de resultados diferentes, saiu-lhes imbecilmente o tiro pela culatra!

Não quero nem uma orquestra desgovernada à minha esquerda, nem um “Flautista de Hamelin” barato e ordinário que se diz à minha direita, mas não é de lado nenhum. Quero que comecemos a ensaiar já uma virtuosa sinfonia a Portugal.