Tem planos para o fim-de-semana? Cancele-os e apareça hoje, sábado, na manifestação “Casa Para Viver”, que decorre em Lisboa. Quer dizer, se os seus planos consistiam em ficar em casa isso significa que é proprietário ou inquilino de uma, logo participar na manifestação seria redundante. Por definição, julgo que o certame (gosto da palavra, que soa a noticiário regional de 1989) se destina a gente sem um tecto, um abrigo, quatro paredes caiadas, um salário ou um subsídio que permita arrendar um T3 no Chiado. Ou seja, a gente que não tem nada excepto ideias.
Ideias e um “site”. A organização da “Casa Para Viver” tem um “site” com textos carregadinhos de queixas e de soluções. Alguns dos textos dizem respeito a manifestações anteriores, todas grandiosas e, pelos vistos, inúteis, já que nenhuma impediu a necessidade da seguinte. A manifestação de hoje também tem um texto, estilo proclamação, que em geral repete as reivindicações e as dificuldades na sintaxe dos textos precedentes.
Os autores da redacção constatam que as casas estão caras e exigem que fiquem baratas. Até aqui, tudo claro. Turvo é o processo para chegar lá. O leigo, burguês e heteropatriarca confortavelmente instalado na moradia geminada que comprou com os rendimentos dos seus serviços ao “sistema”, era capaz de sugerir que bastaria favorecer a construção de habitação, de modo a aumentar a oferta e reduzir os preços. Certo? Errado. A rapaziada do “Casa Para Viver”, que, cito, “não se deixa enganar”, explica que o incentivo às construções, por exemplo através de benefícios fiscais, vai fazer com que os promotores privados tenham – e treme-me a mão ao escrever a palavra – lucro. E isso é que não pode acontecer. Estes mártires preferem continuar ao relento, ou numa subcave partilhada no Cacém, do que perceber que a cáfila dos empreiteiros anda a acumular riqueza. Além disso, avisam que, de qualquer modo, só se ergueriam edifícios destinados a milionários ou a turistas, duas espécies inesgotáveis em Portugal.
Outro lugar-comum, vulgo facto, que sai arrasado é a influência da liberalização das rendas na descida das mesmas. Nem por sombras, garantem os resistentes do “Casa Para Viver”, que, convém recordar, não se deixam enganar. Embora a realidade pareça discordar, a realidade é burra e a coisa funciona ao contrário: é fundamental controlar as rendas, e controlá-las imenso, a ponto de não se mexerem nem idealmente existirem.
Em suma, os militantes do “Casa Para Viver” não toleram a “especulação imobiliária e rentista”. E esquecia-me de acrescentar: também não toleram os negócios do chamado “alojamento” local, no fundo uma conspiração de agiotas que usam os respectivos imóveis conforme lhes apetece em vez de os disponibilizarem de borla, ou quase, a quem precisa. O governo PS ainda se esforçara por destruir os agiotas e aproximar-nos dos valores morais de Caracas. Infelizmente, o actual governo desviou-nos do rumo.
Contas feitas, mas na perspectiva dos que acham a matemática convencional um instrumento de manipulação do privilégio branco, o remédio para a crise habitacional passa pelo Estado. Acima de tudo, não pode passar pelo mercado, que isto não é o Texas. Isto é, ou deveria ser, a Venezuela. Para os activistas do “Casa Para Viver”, é simples: o Estado constrói e “dá” casas, regula as rendas, expropria o que calhar, acaba com os lucros e institui a obrigatoriedade do prejuízo, que cai em cima dos vilões, leia-se dos construtores, dos senhorios e dos restantes contribuintes. E os nossos heróis instalam-se, a preços módicos ou nulos, na tipologia e na toponímia que entenderem. Eles e os estrangeiros, desde que sejam estrangeiros suficientemente indigentes para não conseguirem aceder a um apartamento pelos processos convencionais e, vá lá, um bocado “fascistas”. Os combatentes do “Casa Para Viver” reservam a xenofobia para os estrangeiros com bizarrias como emprego e contas bancárias, daquelas que facilitam a aquisição de residências. Se têm dinheiro, que voltem para o país deles. Se não têm, estão literalmente em vossa casa – e com jeitinho na nossa. Já vos disse que os guerreiros do “Casa Para Viver” não se deixam enganar?
O que eu não disse foi a identidade dos organizadores do “Casa Para Viver”. E não vou dizer. São dezenas e dezenas de “comités”, “movimentos”, “núcleos” e “colectivos”, alguns com mais de um membro associado. Deixo somente uns tantos nomes, cujo prestígio merece destaque: Abolir Jatos; Associação ForçAfricana; Braga Fora do Armário; Climáximo; Colectivo de Solidariedade Mumia Abu Jamal; Coletivo Mulheres Negras; Comissão Organizadora da marcha LGBTQIAP+; GRUPO EducAR — Plataforma de Educadores Antirracistas; Comité de Solidariedade com a Palestina; Feminismos Sobre Rodas; Headbangers Antifascistas; Iniciativa Cigana; INMUNE – Instituto da Mulher Negra em Portugal; Núcleo Antifascista de Bragança; Queer Tropical; Solidários: Trabalhadores Atacados Não Podem Ficar Isolados; ILGA.
É curiosa a quantidade de agremiações que protestam contra a falta de habitação embora a designação oficial sugira tratarem de temas raciais, climatéricos, sexuais, etc. É possível – mera hipótese – que uma refugiada climática negra, “trans”, marxista, “metaleira” e anti-semita se depare com obstáculos acrescidos para arranjar casa. A boa notícia é que os valentes do “Casa Para Viver” prometem não sair da rua enquanto não lhes resolverem o problema. E iam para onde? De uma maneira ou de outra, julgo que o problema está resolvido.