A expressão “uma comédia de enganos” é de Shakespeare, mas aplica-se totalmente aos dias que acabamos de viver.

Ontem, o juiz responsável pelo processo, pomposamente chamado “Influencer”, reconheceu que nele não constam crimes de corrupção e enviou todos os arguidos para casa. Logo ali, à porta do tribunal, um dos advogados, muito batido na barra, explicou que  o processo acabava morto em três dias.

Entretanto, uma maioria absoluta tinha sido  atirada pela janela. O Primeiro-Ministro pediu a demissão. O Presidente da República anunciou a dissolução do Parlamento e explicou que iria convocar eleições antecipadas para 10 de Março. Mas – há sempre um mas -, para bem dos portugueses, só dissolveria o Parlamento depois do Orçamento aprovado. Estranha situação esta.

Eis senão quando, no PS, deram por morto o seu líder e os candidatos a substitutos nem esperaram para ver o que acontecia no processo. Deitaram foguetes, fizeram a festa e apressaram-se a aparecer alegremente com fantásticas propostas para o País. Como se não estivessem no Governo, sacaram das bandeiras e propagandas eleitorais, entre alegres beijos e abraços de jubilosa esperança, que a rei morto suceda rei posto. Ainda a procissão nem saiu para o adro e já estão nestes preparos.

Muita Comunicação Social, de tão excitada que estava com tamanhos crimes e criminosos tão ilustres, cheia de transcrições de escutas e de especialistas em corrupção, mostrou tudo o que havia do maior interesse para Portugal e que servisse para denegrir aqueles energúmenos corruptos ao som da multidão desejosa de justiça. Foi-nos mesmo mostrado o senhor ministro Galamba, às sete da manhã a passear o seu cão, além, evidentemente, das campainhas do prédio onde reside.

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Mas os factos na origem de todas estas decisões são falsos. Todos estes  actos da maior gravidade para o País  assentam em pressupostos falsos.

Senão vejamos. Tudo parte de um comunicado do Gabinete de Imprensa da Procuradoria-Geral da República, escrito sabe-se lá por quem e não assinado. Segue-se uma ida a Belém da Procuradora, antecedida por uma constatação dias antes do senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça de que grassava a corrupção por aí, nos corredores da política.

Um desastre, uma calamidade, um disparate pegado de consequências impensáveis.

Com a polícia a fazer buscas em todo o lado, incluindo na sua residência oficial, o Primeiro-Ministro anuncia ao País a sua demissão e justifica-a pelo facto de estar a ser alvo de um “processo-crime”.

O Presidente aceita a demissão, falando em processo e anuncia a dissolução da Assembleia da República.

Constata-se, afinal, três dias depois, que as razões invocadas pelo Presidente da República para anunciar a dissolução do Parlamento não existem, não se verificam. Não há processo-crime, nem mesmo acusação de crime de corrupção.

Os pressupostos dos actos gravíssimos para o País (demissão do Governo e convocação de eleições) assentavam evidentemente na acusação, necessariamente fundamentada de corrupção. Percebiam-se as decisões e o seu fundamento. Mas, afinal, três dias depois, verifica-se não ser o caso e de corrupção tudo se transforma em “tráfico de influências”.

Tráfico de influências é uma prática que todo o português conhece desde a fundação da Pátria. É assim e sempre foi. A literatura está cheia de relatos magníficos de cunhas, ou simples palavrinhas a Lisboa, ou aos senhores presidentes de Câmara, sem o maior relevo ou importância e sem vestígios  de corrupção. Apenas um jeitinho que lembre papéis esquecidos nas prateleiras do poder, ou morosidades burocráticas que dão cabo da vida e do tempo dos portugueses.

Convém  sublinhar que, no respeita ao tráfico de influências, é muito difícil estabelecer a fronteira entre o lícito e o ilícito e não há legislação ou regulamentação que consiga traçar com evidência uma fronteira. Não há nem haverá nunca.

Caíram, assim, os pressupostos que estiveram na origem das decisões solenemente tomadas  e anunciadas. Mas, agora que os arguidos foram para casa, o que vai acontecer ao País? Tudo isto é uma catástrofe. Uma irresponsabilidade!

Temos as mais graves decisões políticas a acontecer (desde sempre e não por acaso na gíria política se chama “bomba atómica” ao poder presidencial de dissolução da Assembleia e convocação de eleições) em função de pressupostos que não se verificam. Não há acusação de crimes de corrupção.

Mas, foi por isso que o Primeiro-Ministro pediu a demissão que o Presidente da República aceitou, convocando eleições.

No entanto, nada está consumado, mas apenas anunciado. Estamos, aliás, numa situação estranha de duvidosa constitucionalidade: uma demissão aceite, mas não consumada e uma dissolução anunciada, mas igualmente não concretizada. Tudo em nome da necessidade de aprovação prévia do Orçamento de Estado e sabe-se lá de que mais.

O País foi, assim, levado a assistir a um patético cenário, uma peça de um teatro cheia de estranhas cenas nunca vistas. O Governo sai, mas fica. Para já. Os ministros não vão ao Parlamento, porque já não são ministros de plena legitimidade, mas devem ir defender o Orçamento na qualidade de ministros de um Governo de gestão que ainda não o é.

O ministro João Galamba, por exemplo, foi ao Parlamento defender o orçamento do seu ministério, da sua competência, mas foi duramente criticado por toda a gente, apesar da legitimidade e obrigação que tinha de ir à Assembleia da República. Finalmente demitiu-se, para alívio geral, dum Governo demissionário, tendo a sua demissão sido aceite pelo Presidente. Já os outros ministros, ficaram num governo demitido, mas ainda não demitido, logo sem o estatuto constitucional de Governo de gestão…

Como se não bastasse esta confusão institucional (e não é demais repeti-lo), os pressupostos de tudo isto são falsos.

A confusão vai alastrar à economia. Vai ser difícil fazer esquecer o que aconteceu aos empresários (assim como ao presidente da Câmara de Sines) que passaram três dias nos calabouços de uma cadeia, vendo a sua vida desfeita. Calculo que lamentem a esta hora terem tido a triste ideia de investir em Portugal, em vez de emigrarem, como era de bom senso. Mas, o que lhes aconteceu nestes dias, será certamente apreendido por outros que não vão cometer o mesmo erro e investir em Portugal, correndo os mesmos riscos.

António Costa e a sua maioria vão borda fora não por crime de corrupção, mas por sabe-se lá o quê. Mas a corrupção saiu na Imprensa de todo o mundo e, agora, não há maneira fácil de toda essa imprensa publicar que, afinal, António Costa não é o segundo Primeiro-Ministro português a sair pelo motivo de corrupção (como ele próprio contribuiu para que assim escrevessem a notícia), mas é o primeiro a sair por razões inexistentes num processo que morreu ali.

Tudo isto é uma catástrofe para Portugal. O País já está paralisado e assim vai ficar quatro ou cinco meses. Em campanha eleitoral, sem decisões essenciais de governo, sem investimento, com prazos dos fundos europeus a correr, sem solução para o SNS, para o ensino, sem resolução do aeroporto, dos comboios, com custos económicos, financeiros, de credibilidade sem igual nos anos recentes e diminuído em todas as participações em organismos comunitários ou extra-comunitários.

Só uma decisão do Presidente da República poderia travar esta catástrofe. O Presidente reconhecer que, afinal, o pretexto para a dissolução é falso e que aceitou a demissão do Primeiro-Ministro em razão de um processo com falsos fundamentos. E, já que arranjou este tempo constitucionalmente estranho de colocar a democracia e a Constituição da República em banho-maria, nada o impede de voltar atrás na sua decisão. Mas, para isso, era necessário que, por uma vez, Marcelo Rebelo de Sousa tivesse a coragem de colocar o interesse nacional acima dos seus interesses pessoais.

Teria assim a grandeza de pôr um termo a esta notável “comédia de enganos” a que o País assiste atónito.