Num tempo em que quase o mundo inteiro era analfabeto, eram as Igrejas os livros que as pessoas podiam ler. A religião não era apenas a fonte do saber, era o próprio saber. Christopher Frayling explica isto em “Strange Landscape—a journey through the Middle Ages”. O peregrino chegava, por exemplo, à abadia de Vézelay, em França, construída entre o Século XI e XII, e “podia ler este espaço como um livro tridimensional: as paredes eram as capas, as esculturas gravadas e os relevos e os detalhes eram o texto. O propósito principal da arte—toda a arte—era reproduzir, através de meios humanos, as regras e estruturas por trás da ordem do universo, uma ordem onde cada imagem reflectia, ou referia, uma outra imagem numa infinita parede de espelhos com Deus ao centro.”

Num mundo que não sabia ler, o cristianismo era a melhor alfabetização. As coisas eram caóticas e a fé dava a pouca ordem que podia existir. Frayling explica, por isso, que competia à arte medieval revelar luz. Só quando os artistas veiculavam o splendor veritatis, atingiam o seu objectivo. Lá está: se é de claridade que se procurava, então o ambiente era de escuridão—vivia-se às escuras. A ironia é que uma das vantagens das trevas geralmente associadas à chamada Idade Média era o destaque com que sobressaía o luminoso.

À medida que o mundo se foi iluminando sem precisar de Deus como o critério organizador, como a Idade Média precisava, dissiparam-se as trevas. Não foi por acaso que a palavra alemã Aufklärung anunciou uma nova dispensação de claridade, ou Iluminismo, como geralmente lhe chamamos. Deixem o sol entrar, se faz favor, pediu a História e, alegadamente, assim aconteceu.

Os três parágrafos anteriores simplificam bastante o passar dos tempos. Mas captam, creio, a condição irónica de quem hoje, crendo no velho princípio unificador de Deus, não o tem em consenso mas em contra-senso. Se o mundo se iluminou sem Deus, crer nele virá pintado de preto. Os crentes não contrastam hoje com as trevas, contrastam com a luz—não lhes cabe anunciar a chegada do sol que já todos tomam como seu, mas a chegada da noite que ninguém quer atravessar. Torna-se, portanto, contraditório os cristãos continuarem a querer ser luminosos numa época já excessivamente clara.

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Guardar a fé é absurdo diante da autonomia que conquistámos da figura de Deus. Precisar de Deus? Então não conquistámos a condição de não precisarmos de mais ninguém excepto nós próprios?! Não por acaso, a religião passou a ser vista como um obscurantismo, uma paixão pouco saudável com um estado de coisas por iluminar. Quem abrirá a janela a esta gente que se fechou no capítulo errado da História?

Os crentes que enfatizam a luz levam, por isso, areia para a praia. É também por isso que todos os misticismos contemporâneos, mais do que trazerem algo de novo, insistem no repetitivo. Não há nada de propriamente particular num misticismo cristão quando qualquer ateu se pode especializar em iluminações intelectuais progressivas. É neste sentido que vale a pena notar que o mundo não precisa de mais luz mas de mais trevas—abracemos, portanto, o paradoxo. A nossa cegueira é a que vem do excesso de exposição solar. O contraste artístico está agora no escuro. Ao invés de iluminar, cabe aos artistas com Deus obscurecer.

Confundir é preciso porque as pessoas andam demasiado esclarecidas, tomadas de claridade. É preciso encontrar uma redentora pinga de obscuridade nestas alvuras totais. E é preciso dilatar esse milímetro mínimo de escuridão. É necessário que a alma tocada por Deus toque todos os outros com o breu. É o momento da arte dos cristãos ser hoje o oposto da velha catedral, feita livro para os analfabetos. A catedral era um exemplo de canalização da luz quando a vida era escura, mas numa iluminada o assunto inverte-se. As novas edificações cristãs precisam de estragar a inteligência instantaneamente adquirida pela maioria dos cidadãos.

Se num mundo de pecado original os cristãos levavam as pessoas das trevas para luz, hoje, em que somos todos originalmente santos, os cristãos precisam de levar as pessoas da luz para as trevas. Cabe ao cristianismo ser o novo espaço anti-catedral. O problema agora não é as pessoas não saberem ler; é lerem demais. Se a nossa forma actual é a da informação, deformar é a ética mais elevada. É tempo de nos devolvermos ao privilégio do obscuro.