Não sei bem qual a expectativa, mas sei, era só um concerto com lugar marcado e portanto sentado e umas horas de música, nada mais. A ideia era essa, pelo menos – sentar-me ali, no Pavilhão Atlântico, uma cadeira depois da outra, os numerados como em cemitérios modernos, fileiras de gente ainda viva, cada um com o seu lugar reservado, gente a pagar para estar ali mas sem por isso entender como é estar num concerto.

Porque um concerto não é um lugar onde vamos para estar e para ver, cantar e aplaudir. Não, um concerto é um lugar  de passagem, como a fila para a caixa ou para o comboio. Com a diferença de ninguém estar realmente ali. E eu, sossegadamente sentado com o pequeno desejo de me deixar levar pela música e nada mais, acabei por me ver num vaivém entre levantar e sentar, encostado e empurrado como uma magra árvore numa tempestade de gente sem raízes.

Levantei-me pela primeira vez quando o casal à minha direita chegou atrasado com a delicadeza de dois bois numa loja de loiça. Pediram desculpa com aqueles sorrisos de quem não vê ninguém e os pés, aqueles pés, a soterrar os meus como se fossem parte do chão.E eu ali, sorrindo para as cordas do palco como se fosse cego, e voltando a sentar-me, ainda com a esperança da música para me resgatar, para me tirar da minha própria cadeira e, se possível, do mundo.

Mas nem um minuto depois, uma mão no ombro. Ela queria ir buscar uma bebida, um refrigerante, qualquer coisa e eu forçado, mais uma vez, a ficar de pé.

O concerto mal começara e, ao meu lado, já o fluxo dos corpos ia e vinha, como se as cadeiras fossem portas de entrada para um lugar onde nunca chegamos a habitar. Fosse para ir buscar a bebida ou para ir despejar a bebida, tudo era pretexto para não estar ali. E eu, a querer apenas ouvir música, parecia mais o porteiro de um velho prédio, de pé, uma vez, duas vezes, três vezes, a interromper a mim mesmo num concerto ainda hoje por ouvir. Porque ninguém ouve ou quer ouvir, é isso e somos todos surdos e moucos. E as pessoas não vão para ouvir música, vão à procura de sentir alguma coisa no meio do ruído. Há uma senhora de olhos fixos no telemóvel e os phones no ouvido com aquele sorriso ausente de quem fala para alguém, e ao lado dela, um jovem a gravar tudo no telemóvel. Tudo. Com o braço levantado num juramento para quem o segue, para a sua igreja particular nas redes a despejar emojis e comentários igualmente distantes da acção no palco, igualmente ausentes e lá de casa não vêm palmas.

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A cada acorde o público ergue-se com uma fome de imagem e as mãos não são mãos, mas telemóveis, o olhar vazio a flutuar num lago digital onde a música é o pano de fundo nem por isso capaz de preencher tanta vida vazia. E, ao meu lado, alguém atende uma chamada. A meio da música, sem hesitar, o som polifónico nem sequer estava desligado, para quê e para quem e o telemóvel colado ao ouvido, a voz projetada como se estivesse numa sala de estar, ignorando o palco, ignorando o músico e os espectadores, ignorando-me, ignorando tudo. A cada vez levantado sentia-me mais invisível, mais apagado. À minha frente, duas raparigas levantam-se para fazer um vídeo. Uma põe-se de costas para o palco, a cara feita num sorriso falso e nauseante mais o bico de pato e o V de vitória mas qual vitória se ninguém ganhou nada, eu pelo menos, o braço esticado, o telemóvel em ângulo para de modo a tapar o palco, teoricamente o propósito desta noite, os não ganhei e pelo meio perdi horas de vida e todos fingem um gozo e um entusiasmo como se o prazer de estar num concerto tivesse sido reduzido a um punhado de segundos online. E lá vão elas de novo,  o braço esticado, o telemóvel em ângulo para de modo a tapar o palco, teoricamente o propósito desta noite. Teoricamente.

Ao lado, um jovem faz um directo, perdão, um “live” (depois do concerto fui ver no “doutor guugêle”) e não se diz “Instagram” mas só “insta” ou “gram” e já ninguém sabe falar e as sílabas são para comer. Mas, dizia eu, ao meu lado um jovem faz um “live” enquanto canta, não, enquanto grita cada verso e cada frase como se fosse o único presente. E ninguém ao meu redor consegue estar quatro minutos a ouvir uma música, um tempo sem fim quando urge confirmar a própria existência, capturar a própria existência como quem prende um pássaro numa gaiola para depois poder dizer ter um pássaro e ser um pássaro para mostrar nas redes e se alguém o viu, reconheceu, gostou, confirmou, validou e as endorfinas injectadas nas veias como se não houvesse amanhã. E não há e o músico ao longe pequenino no palco imenso destas vidas ao sabor da corrente.

E eu, ali, feito prisioneiro de mim mesmo, canso-me. Canso-me de me levantar e sentar, de ouvir a música cortada pelo burburinho de gente sem atenção numa sociedade com a capacidade de concentração de uma criança de 4 anos e perdão a todas as crianças de 4 anos as quais, estou certo, são capazes de muito mais.

O concerto termina, mas não termina, pois não ficou a música, mas o ruído, os risos, os alertas dos telemóveis, as vozes sempre mais alto, a sucessão de flashes cegos e enquanto me levanto para sair, percebo não ter ido a um concerto mas a uma sala cheia de desconhecidos à procura de subir ao palco.

E saio, desço as escadas, ainda com o eco distante das canções por ouvir como uma sombra magoada. Atravesso a noite de Lisboa, sinto o frio e, por um instante, o silêncio. Sorrio, porque no fundo, ao sair dali, fui resgatado pela mesma música de sempre – a de estar só.