Não me lembro de outras eleições como estas. Mal foram comunicadas as primeiras sondagens à boca das urnas, todas as expectativas foram invertidas: o PS estava muito próximo da maioria absoluta que acabou por obter. E quando digo “todas as expectativas” quero mesmo dizer “todas as expectativas”: as dos votantes, sem distinção de partidos, e as dos votados, também sem distinção dos partidos. Claro que em muita gente havia o desejo que o PS obtivesse maioria absoluta. Mas o desejo é apenas um ingrediente de uma expectativa. Para que a expectativa se forme é necessário que contemos, além do desejo, com várias condições que apontem para a verosimilhança da sua satisfação. E ninguém contava que tantas condições se reunissem assim, conjuntamente conspirando para a maioria absoluta.
Não foram apenas as sondagens produzidas nas últimas semanas que erraram, o que acontece frequentemente. Foi, mais geralmente, a percepção que cada um de nós, independentemente das preferências partidárias, tinha do país que se revelou profundamente inadequada. Inadequada a um tal grau que as expectativas por essa percepção engendradas foram frustradas logo às primeiras notícias. E isso, repito, tanto para aqueles para quem a maioria absoluta do PS foi uma dádiva dos céus como para aqueles para os quais foi um duche gelado. Resumindo. A surpresa não deve ter sido muito menor para António Costa do que para Rui Rio.
O que é particularmente interessante em tudo isto é mesmo a dimensão da inadequação da percepção comum à realidade. Não sou “cientista político” e nem sequer sou dotado de grande imaginação para conceber “cenários”. De facto, perco imediatamente o pé quando me pedem para os imaginar. Não é só ficar paralisado pelo medo de errar: é que me falta por inteiro a capacidade para os ver à minha frente e para os ponderar. Mas gostava a sério que os inúmeros “cientistas políticos” que para aí andam, que são muito entendidos nestas coisas, nos explicassem como uma tão grande inadequação entre a percepção colectiva da realidade política e a realidade política propriamente dita pode ter tido lugar.
Porque as explicações que nos foram oferecidas ficam muito longe de nos satisfazer no capítulo. Elas, no fundo, colocam-se ao nível daquilo que qualquer pessoa minimamente atenta ao que se passava podia, sem dificuldade, conceber. Por exemplo, que o PSD, tendo laborado, sob Rio, no erro – um entre muitos – de se apresentar como um partido de centro-esquerda, tenha afastado de si um grande número de eleitores potenciais. Isso explica, sem dúvida, a derrota do PSD, que era verosímil, por mais que a sua vitória tenha parecido, a certa altura, igualmente possível. E o mesmo se pode dizer do “voto útil” à esquerda. Tal ajuda a perceber a vitória do PS e a derrota do PSD, não a sua escala e a conquista da maioria absoluta por parte do PS. Esta era, à partida, declaradamente inverosímil. Para todos, repito mais uma vez.
Como não é lícito invocar nestas matérias o puro acaso, é preciso buscar uma razão qualquer que dê satisfatoriamente conta da inadequação entre a percepção comum e a realidade. O que convida a uma certa especulação. Uma especulação sobre as vítimas do costume: os portugueses. Como os portugueses, com as suas singularidades todas, são muito parecidos com os outros povos, é preciso cuidado com estas coisas. Não tenho conhecimento de qualquer característica nacional que nos incline fatalmente para uma irracionalidade que frustre sistematicamente qualquer previsão racional sobre o nosso comportamento político. Deve, portanto, haver alguma racionalidade oculta na realidade que escapou à nossa percepção e que frustrou as nossas expectativas.
“Racionalidade” significa aqui, modestamente, a boa consequência lógica de um acto por relação a um desejo. Ora, conhecido o acto – o voto na maioria absoluta do PS -, é preciso perguntar qual o desejo. E receio bem que a natureza desse desejo seja, no fundo, simples de explicar. É, banalmente, o desejo que nada mude, porque toda a mudança é vista como inevitavelmente mudança para o pior. A maioria dos portugueses não quer mudar nada. A mudança inspira medo a uma sociedade frágil e insegura que não confia na sua própria força. Não é uma explicação muito sofisticada, eu sei, mas, na sua banalidade, é verosímil. E, à sua maneira, dá conta de um comportamento que apresenta alguma racionalidade. Se eu me sinto frágil e inseguro, quero tudo menos meter-me em aventuras para as quais não julgo ter forças suficientes.
É claro que caberia ao PSD persuadir os portugueses que a mudança é desejável e que os portugueses teriam força para a levar a cabo. Mas Rui Rio foi feito para tudo menos para isso. Em tudo o que ele disse e fez não havia a mínima indicação nesse sentido. Mesmo ficando-nos pelos vários debates, digam-me onde é que ele exprimiu, com um mínimo de convicção, qualquer desejo de mudança? Prometeu apenas que faria melhor do que Costa – e provavelmente faria. Mas o “melhor” era aqui uma continuação do mesmo. Eram uns ajustes aqui, uns consertos ali. Porquê correr o risco, o pavoroso risco, de mudar? Nada do que disse inspirava o ânimo para a mudança, sobretudo num país que parece radicalmente avesso a ela. Jogou no mesmo e teve a desagradável surpresa de recolher o mesmo na dose forte da maioria absoluta do PS.
Estou obviamente a especular ao oferecer esta explicação um pouco selvagem para a radical inadequação entre as expectativas maciças da percepção comum e a realidade que se veio a verificar, inadequação essa que foi o facto mais singular destas eleições. O que eu gostaria mesmo era de ter uma explicação a sério dos muitos politólogos que por aí há. Por isso, o que escrevi antes sobre o medo de mudar como factor determinante oculto deste comportamento eleitoral, mais do que uma tentativa de explicação, deve ser entendido como uma pergunta que lhes é dirigida: como é que nos conseguimos colectivamente enganar tanto?