É por demais sabido que a ideia de uma Europa unida tem já vários séculos e que inclusivamente no século XVIII homens como Rosseau ou Kant desenvolveram ideias com vista à manutenção de uma paz perpétua no espaço europeu, para o efeito idealizando a criação de uma eventual confederação. Não obstante, o caminho para tal tem-se revelado como estando cheio de armadilhas e percalços que, não o tornando inviável, o tornaram pelo menos lento e extremamente exigente, carregado de avanços e recuos que obrigaram a desvios e, em alguns momentos, à sensação de que se havia chegado a um beco sem saída.

Analisando o discurso da presidente da Comissão Europeia no passado dia 14 de setembro, esta parece, no entanto, determinada como nunca a levar a bom porto esta magnifica empresa.

É para mim hoje claro que o projeto federalista da Europa, sendo exequível, levará décadas ou até séculos e diferentes gerações até ser concluído com sucesso. Recorde-se que depois de Kant ou Rosseau no século XVIII, a ideia de uma união política da Europa continuou a florescer durante o século XIX com o chamado concerto europeu, criado no Congresso de Viena, e onde França, Inglaterra, Áustria, Prússia e Rússia afirmavam a sua solidariedade política. Não tendo grande efeito a longo prazo, como comprova a história da primeira guerra mundial, permitiu, ainda assim, aprofundar o conceito de uma identidade cultural europeia.

No após primeira guerra mundial, torna-se cada vez mais clara a necessidade de unir os povos europeus, chegando mesmo o primeiro-ministro francês Aristides Briand a propor o memorando com o seu nome, em 1929, onde defendia a criação de um espaço federal europeu, ao estilo do sistema norte americano. No entanto, a grande depressão e os latentes nacionalismos ainda existentes e exacerbados por uma paz mal negociada desembocariam na segunda guerra mundial. Só após o seu términus, em 1945, e com as feridas causadas pelo conflito ainda bem visíveis, há finalmente condições e vontade para se avançar.

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O plano Marshall servirá de mote à criação da Organização Europeia de Cooperação Económica (OECE) em 1948, sendo na mesma altura criado o Benelux, uma convenção aduaneira entre a Bélgica, os Países Baixos e o Luxemburgo. Surge também neste período a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), a qual visa a solidariedade militar defensiva entre os seus membros.

Em 1950 é apresentado o Plano Schuman, baseado no plano apresentado em França por Jean Monnet, e que levaria à criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA), percursora do que vira a ser a comunidade Económica Europeia.

A história mostra-nos que a integração económica da União se revelou um sucesso, resultando num alargamento maciço de membros – são hoje 27 – culminando em 1999 com a integração monetária. Na componente política e de defesa, tudo se revelou, no entanto, substancialmente mais complexo, sendo sempre muito difícil gerir as vontades e expectativas políticas e de soberania de cada estado membro. O processo, não obstante, nunca parou, avançando paulatinamente, apesar de revezes como o chumbo da Comunidade Europeia de Defesa (CED) e consequentemente da Comunidade Política Europeia (ComPE) em 1954, ou posteriormente do Plano Fouchet protagonizado por De Gaulle.

O plano Schuman referia que o processo de integração seria gradual e evolutivo e que a Europa se faria através de realizações concretas e para começar através de uma solidariedade de facto. Ora, parece ser nesta palavras que a presidente da Comissão buscou inspiração para o seu discurso, começando por enaltecer a imediata e inesgotável solidariedade europeia para com o povo ucraniano, alvo de uma guerra ignóbil por parte de um agressor imperialista, povo esse que já demonstrou de forma inequívoca vontade de, também ele, fazer parte desta União Europeia, isto porque o seu povo encara também como sua a cultura e os valores da Europa, face à contraposição da cultura do país agressor, isto apesar (ou talvez não) das relações históricas existentes. Serão então estes valores e cultura europeia comuns que levarão a uma união dos povos dos países membros, na sua defesa, mesmo que essa defesa leve a dificuldades extraordinárias no seu conseguimento.

O caminho para uma maior integração, que tantas vezes pareceu estagnado, poderá, portanto, estar aqui mesmo, nas mãos de von der Leyen e através da solidariedade entre os povos e na defesa dos valores e da cultura europeia. Para o efeito retiro do seu discurso três exemplos, dos vários que poderia escolher.

O primeiro está no anúncio do reforço de meios aéreos europeus para o combate aos incêndios, o que significa um reforço do envolvimento direto da União num problema cada vez mais grave, que afeta principalmente os países do sul da Europa, mas que nos últimos anos também tem alastrado aos países do eixo central. A União Europeia assume assim a responsabilidade política de lidar com um problema cuja dimensão ultrapassa a capacidade individual de cada estado membro.

O segundo exemplo que retiro é, na minha opinião, tal como o terceiro que identificarei adiante, essencial para a afirmação da União como potência política de referência a nível internacional, e passa pela necessidade de criar a sua própria independência energética. O conflito na Ucrânia, além de toda a dor e destruição, trouxe também à tona a necessidade de as democracias não estarem dependentes de regimes que não valorizam, e inclusivamente atacam, os valores democráticos. O facto de a energia, como bem essencial que é, poder ser usada como arma contra a União, torna essencial o investimento que nos permita não estar dependentes de regimes nos quais não podemos confiar. A acrescer a isso, a necessidade de efetuar em passo acelerado a transição energética que nos permita combater e minimizar as alterações climáticas coloca também a nu a importância de não estar dependente na obtenção de matérias primas que estão na sua quase totalidade na posse de países cujos valores sociais e democráticos não são compagináveis com os nossos.

O terceiro exemplo apresentado, que vem nesta sequência, passa também pelo reforço da capacidade industrial da União, que, tal como na energia, na qual estávamos dependentes da Rússia, aqui apresenta ainda dependência da China, outro estado de cariz totalitário e cujos valores democráticos e de direitos humanos não atingem os mínimos europeus. São dados como exemplos, no discurso da presidente da Comissão Europeia, os investimentos já realizados na produção de baterias e mais recentemente na construção de uma giga fábrica de microprocessadores, investimentos estes que visam inverter a total dependência hoje existente do regime chinês.

Passará pois por aqui o caminho para a construção da União, caminho cheio de pedras e armadilhas, mas que tem sido construído com êxito ao longo das últimas décadas, encontrando nas dificuldades forças para continuar. Uma das últimas dificuldades terá sido o BREXIT, com o abandono por parte da Inglaterra do projeto europeu. Mas não será esta uma enorme oportunidade? Não foi afinal sempre a Inglaterra o principal opositor ao projeto federalista europeu?

Os sucessivos tratados de Amesterdão, Nice ou Lisboa já prepararam o terreno através não só da simplificação do processo decisório, mas também do processo legislativo. É verdade que não existe ainda uma constituição europeia formal, embora na prática muitos dos tratados assinados já materialmente a tenham criado. Por outro lado, foi também criado e difundido o conceito de cidadania europeia, bem como a importante carta que suporta os seus direitos fundamentais.

Será, portanto, a nossa geração ou as gerações futuras a ter o poder de decidir se pretendem ou não, concretizar definitivamente o projeto sonhado por diversos intelectuais há séculos atrás, e para isso, muito contribuirá a noção social e cultural comum, bem como a existência, mais uma vez, de uma liderança com uma visão clara do que pretende para o futuro da Europa, e com uma determinação inabalável para o concretizar, será Ursula von der Leyen a leoa da Europa?