Em 18 de junho de 1972, o jornal Washington Post noticiava na primeira página um assalto à sede do Partido Democrata, no Complexo Watergate, em Washington. Cinco pessoas foram detidas quando tentavam fotografar documentos e instalar aparelhos de escuta no escritório do Partido Democrata. O caso foi controlado pela máquina de comunicação da Casa Branca e não evitou a reeleição de Nixon. Mas dois anos depois teve novos desenvolvimentos levando à demissão do Presidente dos EUA, depois daquele jornal ter publicado mais de 400 artigos sobre o assunto, que provavam o seu envolvimento.
As mais significativas dessas notícias vieram de uma fonte anónima, a que chamaram “garganta funda”, mas o Washington Post sempre fazia a verificação dos factos por fontes alternativas e através de documentos que investigava. Nessas mais de 400 notícias, uma não correspondia à verdade. Terá tido origem numa fonte diferente que “enganou” os jornalistas (até hoje especula-se se não terá sido o próprio gabinete de Nixon a fazê-la chegar ao jornal para o desacreditar). Esse foi o momento em que Nixon e a sua poderosa equipa de comunicação, saltaram para os microfones, demonstrando que o Washington Post não tinha razão, ao demonstrar que aquele pormenor era falso e, a partir daí, pondo em causa todo o trabalho e investigação, assim pressionando a direção do jornal a parar as investigações.
E quase conseguiu, pois, de repente, um pormenor sem grande importância que parecia ser falso, desacreditava toda a investigação e virava a opinião pública contra o jornal e aos seguidores do partido republicado, dava um argumentário válido para a sua defesa. Embora, as outras 399 notícias, todas de extrema gravidade, fossem verdadeiras.
Em 2004, uma jornalista da CBS publicou no famoso “60 minutes” uma reportagem que demonstrava como o Presidente George W. Bush tinha escapado a parte do serviço militar, forjado presenças e voos na Guarda Nacional e se tinha aproveitado de cunhas para ser promovido. A história baseava-se em vários factos e testemunhos credíveis e em vários documentos. Um desses documentos foi posto em causa por bloggers que afirmaram que não poderia ser autêntico, já que usava caracteres e um espaçamento de linhas que, em 1970, não estavam disponíveis em máquinas de escrever, sugerindo que teria sido feito no word, inexistente em 1970. A equipa da CBS demorou algum tempo a provar que, realmente, já existiam máquinas de escrever em 1970 capazes de escrever daquela forma e que elas existiam na guarda nacional.
Contudo, quando o conseguiu demonstrar, era tarde demais, uma vez que estava já instalada uma contra campanha em defesa de Bush, acusando a jornalista de ter manipulado as provas e de ser democrata e foi a própria CBS, pressionada pela Casa Branca, a instaurar um procedimento de arbitragem interna para apurar os factos e escrutinar a equipa de jornalistas. As decisões foram adiadas para depois das eleições e George W. Bush foi reeleito, perante o descrédito do programa de televisão que então era apresentado por Dan Rather, curiosamente um dos protagonistas da investigação do Watergate.
Antes das eleições, Dan Rather foi obrigado a pedir desculpa no programa, por não poder provar que o documento era verdadeiro. Após as eleições, foi dispensado e a jornalista foi despedida, apesar de ter ganho para a CBS um dos mais importantes prémios de jornalismo por outra peça incómoda para Bush.
Na sua declaração final à comissão paritária que a destituiu, a jornalista afirmou que o processo que levou ao seu despedimento nada teve a ver com a procura da verdade ou com o essencial: tinha ou não o Presidente dos Estados Unidos falseado declarações e processos e faltado às suas obrigações na Guarda Nacional? Tudo se tinha transformado numa gritaria sobre um papel e sobre os caracteres e assinaturas. E sobre o essencial da sua reportagem deixou de se discutir e escrutinar.
Em 2016, depois de ter sido despedida da FOX News, uma jornalista veio a acusar Roger Ailes, o diretor e criador da estação mais vista nos EUA, de assédio sexual, supostamente cometido muitos anos antes. A acusação surgiu após a estação ter publicado várias peças nada simpáticas para Donald Trump, então candidato presidencial e amigo pessoal do dono da estação, Robert Murdock. A partir das acusações de assédio que foram lançadas pela jornalista após o despedimento, e que impulsionaram o movimento “Me Too”, Murdock despediu Ailes e a FOX News transformou-se num dos mais importantes instrumentos de campanha de Donald Trump, eleito Presidente dos EUA. Nunca ficou clara o que era a causa e o efeito. Se o despedimento da jornalista foi a causa da denúncia e logo a destituição de Ailes, ou se foi a necessidade de afastar Ailes que provou as denúncias.
Há dois meses, o primeiro-ministro português garantiu-nos que tudo correria bem no processo de vacinação e que o Governo tomaria sempre as medidas necessárias para proteger os portugueses. Dias depois, nomeou uma comissão para tratar da vacinação e aliviou as medidas de proteção da saúde pública no Natal, recusando-se a tomar atempadamente medidas que há muito toda a Europa tinha já tomado.
Dois meses depois, verifica-se que em Portugal o plano de vacinação é uma anedota, que há centenas de pessoas vacinadas sem estarem nos grupos definidos e que a generalização da fraude resulta da inexistência de um sistema credível de distribuição e da completa inexistência de mecanismos de controlo, o que é confessado pelo coordenador do processo. Em janeiro, morreram 5.500 portugueses com COVID, o que nos torna no país do Mundo que encabeça a lista dos horrores da pandemia em 2021, quando todos já tiveram um ano de aprendizagem. E houve mais de 300 mil infectados só no mês, o que é sensivelmente tanto quanto nos 10 meses anteriores, ou seja, desde o início da pandemia.
O que se discute na praça pública é se a sobra de 11 vacinas devia ou não ter sido dada numa pastelaria e se foi a estirpe inglesa que fechou as escolas.
Em vez disso, devíamos estar a discutir por que razão Portugal não está há um mês a vacinar a faixa etária que representa 85% das 5.500 mortes por COVID e se a proliferação da variante inglesa de forma descontrolada em Portugal é ou não responsabilidade do primeiro-ministro e restante Governo, que sabendo e avisado dos riscos desde Dezembro, procedeu contra conselho científico.
No primeiro caso, procura-se dirimir culpas reduzindo o assunto a um caso, que nem sequer é o mais importante e pouco nos diz sobre o descalabro do processo de vacinação. O que está em causa não é o INEM ter descido à pastelaria para administrar 11 sobras, o problema é ter pedido a mais e ter vacinado assessores, contabilistas e as senhoras da limpeza e o Ministério da Saúde não ter forma de saber a quem se destinavam e, sabendo, não ter qualquer mecanismo de controlo. Pior é o caso do INEM ter réplicas conhecidas em todo o país.
No segundo caso, procura confundir-se a causa com o efeito, invertendo-as. A proliferação descontrolada da variante inglesa não é o motivo do recuo do Governo. A recusa do Governo em tomar medidas atempadas é o motivo da proliferação descontrolada da variante, agravado por Portugal não fazer a sequenciação do RNA em níveis aceitáveis e recomendados e ter, desde o início da pandemia, uma política laxista quanto à entrada em Portugal de voos e passageiros.
Num e noutro caso, os erros medem-se em centenas ou milhares de mortos. Demitir quem, mesmo cometendo erros, apenas foi um elo intermédio de um sistema corrupto não resolverá nenhum problema nem chamará à justiça os verdadeiros culpados. Inverter a causa das coisas e deturpar a verdade é apenas outra parte da técnica conhecida e aplicada nos casos a que aludi no início deste texto.
Nos EUA, como em Portugal, os truques são sempre os mesmos e vêm nos livros: discutir a parte e o pormenor ou mesmo o que não existe ou não interessa, distraindo do essencial, desacreditando fontes e ameaçar a sua sustentabilidade financeira, pessoal ou familiar, para, no fim, oferecer a cabeça de um “cordeirinho” de voz mansa e sobreviver. Contam, para isso, com a corrente de acólitos acríticos e dependentes.
E tudo isso pode mudar a história de um país, neste caso, como nos outros, escrita com o sangue, suor e lágrimas de muitos cidadãos inocentes.