A cerimónia de inauguração dos Jogos Olímpicos é, desde há muito, dos mais vistos e apreciados espetáculos do mundo. Os seus organizadores procuram nela transmitir um reflexo do que de melhor tem para dar a nação que acolhe os Jogos, o melhor da sua história, da sua cultura e da sua arte (e não olham, para tal, a despesas). A mensagem que nela perpassa há de ser sempre conforme ao espírito olímpico de unidade e fraternidade universais e, por isso, acima dos confrontos políticos e ideológicos e de acordo com o princípio de neutralidade decorrente do artigo 50.º da Carta Olímpica.

É certo, porém, que nem sempre os dirigentes políticos interessados em propagar uma sua agenda ideológica respeitam esse espírito e esse princípio. O caso extremo a esse respeito foi o das Olimpíadas realizadas em Berlim em 1936, no auge da ascensão do regime nacional socialista alemão, transformadas em instrumento de propaganda deste, completamente oposto ao universalismo do espírito olímpico.

A cerimónia de inauguração dos Jogos Olímpicos de Paris pretendeu também mostrar o que de melhor tem para dar a cultura francesa de ontem e de hoje e celebrar a inclusão própria do olimpismo na linha dos valores da liberdade, da igualdade e da fraternidade proclamados pela revolução francesa.

Uma cena que parodiava (reproduzia de forma grotesca) a Última Ceia de Jesus Cristo e os apóstolos, com pessoas travestidas (”drag queens”) em poses sexualmente provocantes, chocou e indignou milhões de pessoas em todo o mundo. A Eucaristia, de várias formas celebrada pelos cristãos como renovação dessa Última Ceia, representa o que para eles é mais sagrado, porque nela se renova a expressão máxima do amor de Deus que entrega a vida do seu Filho pela redenção da humanidade (para eles a raiz mais sólida da fraternidade universal que está também na base do espírito olímpico). Afinal, em nome da proclamada tolerância e inclusão, era gravemente ofendida no que tem de mais precioso a maior comunidade religiosa do mundo, assim vítima de intolerância e exclusão.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

É verdade que o diretor artístico da cerimónia se apressou a dizer que a sua fonte de inspiração não era, como todos até então pensavam, o célebre afresco de Leonardo da Vinci que representa a Última Ceia, mas uma outra pintura do holandês Von Bijert que representa o festim dos deuses pagãos no Olimpo. É pouco crível, porém, que nem sequer lhe tivesse passado pela cabeça que a cena seria interpretada por qualquer pessoa como alusão à Última Ceia, que quase todos, cristãos e não cristãos, bem conhecem, e não a esse quadro, que muito poucos conhecerão. Por outro lado, também vários peritos vieram dizer que esse quadro era, também ele, uma paródia da Última Ceia, uma sua versão pagã, diferente da forma como noutras obras esse festim dos deuses é representado. E alguns protagonistas da cena afirmaram, antes de se multiplicarem as críticas, que, na verdade, se tratava de uma paródia da Última Ceia.

Uma primeira reação veio da conferência episcopal francesa, que considerou deploráveis, porque gravemente ofensivos, o escárnio e a troça desse evento tão valioso e sagrado para os cristãos. Esse comunicado nada tem de extremista ou agressivo (ao contrário de outras reações), não deixa de sublinhar outros aspetos da cerimónia marcados pela emoção e pela beleza, e não deixa de salientar o voto de que os Jogos venham a decorer de harmonia com o espírito olímpico.

Desde então, sucedem-se de dia para dia as reações de indignação de cristãos de todo o mundo (as Olimpíadas são talvez o evento de maior alcance universal) e de várias denominações: católicos, ortodoxos, coptas, anglicanos, evangélicos, todas as comunidades representadas no Conselho Mundial das Igrejas. Vieram também de representantes do Islão, como os da influente Universidade Al Azhar, que se solidarizaram com os cristãos e relembraram que para eles Jesus é especialmente venerado como profeta. O comunicado da conferência episcopal francesa já tinha agradecido as manifestações de solidariedade recebidas de representantes de outras comunidades religiosas.

Como habitualmente, invoca-se, em resposta a essas reações, o respeito absoluto pela liberdade de expressão. Mas esse respeito não é invocado, e bem, para aceitar o insulto racista, por exemplo. Muitas ordens jurídicas liberais reconhecem o respeito pelos sentimentos religiosos como limite à liberdade de expressão. O Código Penal português pune, no seu artigo 252., b), o ultraje (no sentido de escárnio ou vilipêndio) a ato de culto religioso. Não se trata da crítica a uma qualquer religião no plano das ideias, que é livre porque a ela se pode responder também nesse plano do debate de ideias. Trata-se de um insulto gratuito, a que não pode ser dada resposta nesse plano. Por isso, tem sido contestada a proposta do atual governo espanhol de descriminalizar os crimes de ofensa aos sentimentos religiosos. A jurisprudência francesa tem seguido a distinção entre a ofensa a uma pessoa por causa da sua religião, que configura um crime, da ofensa à religião ou aos sentimentos religiosos, que estará coberta pela liberdade de expressão. Mas esquece essa perspetiva que um crente de uma qualquer religião pode razoavelmente sentir como mais ofensivo o insulto de uma figura, símbolo ou ato de culto dessa religião do que um insulto à sua própria pessoa (a qual não adora ou venera).

De qualquer modo, há que salientar que as críticas, de um modo geral, não têm colocado a questão nesse plano: não têm advogado a proibição ou criminalização de cenas como a que está em causa. Essas críticas têm salientado, antes e sobretudo, a contradição e incoerência dessa cena considerada ofensiva (independentemente das intenções de quem a concebeu) por tantos milhões de pessoas numa cerimónia em que se deveria exaltar o espírito olímpico de unidade e fraternidade universais.

Mas não foi apenas essa cena da paródia da Última Ceia a motivar críticas da cerimónia da abertura dos Jogos Olímpicos na perspetiva da sua contradição com o espírito olímpico e o princípio de neutralidade ideológica consignado na Carta Olímpica. Vários aspetos dessa cerimónia denotam um propósito claro de imposição de uma ideologia que está longe de ser consensual, nem na Europa, nem, ainda menos, noutras áreas culturais: a ideologia do género. Esta é hoje, pelo contrário, talvez a mais fraturante das opções ideológicas, que o Papa Bento XVI qualificou como revolução antropológica. Como por muitos foi afirmado, a mensagem da cerimónia, que deveria ser um instrumento de união, serviu para dividir, para fraturar.

Assim, e nessa linha da ideologia do género, foi apresentado como ilustração do amor romântico que se queria enaltecer, uma relação triangular bissexual composta por dois homens e uma mulher. Não é difícil ligar este exemplo à referência do diretor artístico da cerimónia ao “direito de amar quem queremos”. Mas uma coisa é respeitar a liberdade de quem opta por esse tipo de relações, outra é enaltecê-las como modelo equiparável ao da família como núcleo estrutural de uma qualquer sociedade. Essa é, certamente, uma opção ideológica que está longe de ser consensual.

Cenas próprias dos chamados “desfiles de orgulho gay” e com figuras caracterizadas pela ambiguidade sexual sucediam-se de forma recorrente. A ponto de a cronista espanhola Rosa Martinez afirmar que «não sobrava espaço para homens masculinos e mulheres femininas». E também houve quem salientasse que não honra a dignidade das pessoas com atração pelo mesmo sexo ou com perturbação da identidade de género representá-las essas imagens grotescas, de mau gosto e excessivamente sexualizadas.

Outra mensagem ideologicamente fraturante que foi claramente veiculado pela cerimónia foi a da exaltação da legalização do aborto como pretensa conquista civilizacional, homenageando quem para ela contribuiu por causa desse contributo e não por outro motivo. Também aqui reconhecemos a agenda ideológica de Emmanuel Macron, que promoveu a inclusão desse pretenso direito (que será, verdadeiramente, o direito a eliminar uma vida humana inocente) na Constituição francesa e pretende a sua inclusão na Carta Europeias dos Direitos Fundamentais. Uma contradição naquele que muitos gostam de definir como o “pays des droits de l´Homme”.

Uma outra mensagem controversa e nada conforme ao espírito olímpico foi a transmitida através da evocação da decapitação da rainha Maria Antonieta como episódio histórico digno de destaque. Não foi certamente a mais adequada essa evocação de aspetos tenebrosos da revolução francesa que, com o recurso a várias formas de violência política, marcaram, sobretudo, o período que veio a ser designado como o do Terror, além do mais porque nestes dias se procura por todos os meios afastar o perigo da ocorrência de atentados terroristas durante os Jogos.

Por tudo isto, as críticas à cerimónia não se limitaram à cena da paródia da Última Ceia. Alargam-se ao que o antigo ministro espanhol Jaime Mayor Oreja qualificou como uma estratégia deliberada de imposição de um novo modelo cultural, de uma Europa que renega as raízes cristãs da sua cultura.

As críticas não vieram apenas, ao contrário do que se tem dito, de setores ultra-conservadores ou de extrema direita. Não foi essa, seguramente, a postura dos bispos franceses. Políticos que não se identifiquem com esses setores deverão, porém, ter em conta o risco de serem eles a monopolizar as reações contra essa imposição ideológica, como se essa imposição fosse a única alternativa à extrema direita e ela fosse expressão do europeísmo de que Emmanuel Macron pretende ser arauto contra os extremismos (sendo, porém, ela também uma forma de extremismo).

Na verdade, se é este modelo cultural que a França quer apresentar ao mundo, muitos o rejeitarão como expressão de decadência. O bispo espanhol José Ignacio Munilla afirmou, a propósito, que o islamismo fundamentalista há de esfregar as mãos de contente ao assistir a este suicido cultural da Europa, que cria um vazio que ele se propõe preencher. O mesmo poderia dizer-se da propaganda do governo russo. Se queremos combater esses dois perigos, tal como o perigo do “nacionalismo de exclusão”, há que evitar esse suicídio e esse vazio.

Não me parece que se deva ignorar ou reagir com indiferença a esta realidade. O bispo norte-americano Robert Barron tem salientado, a propósito desta polémica, que a misericórdia e o amor ao inimigo implicam a recusa de qualquer forma de vingança, mas não a indiferença e passividade perante o mal.

Também tem sido deturpada a recente afirmação do Papa Francisco, no seu discurso a um grupo de humoristas, de que podemos rir de Deus. Disse ele que pode rir-se de Deus como se brinca com as pessoas que amamos. O amor a Deus e ao próximo é a chave da questão, que afasta qualquer blasfémia ou ofensa aos sentimentos religiosos dos crentes. Estas nunca poderão ser expressão de amor; pelo contrário.

Mas também me parece importante não limitar a ação dos cristãos neste contexto a uma ação negativa de simples crítica. Não foi essa, como disse acima, a postura dos bispos franceses. No comunicado onde criticam a cena da paródia da Última Ceia, sem deixar de reconhecer aspetos positivos da cerimónia em causa, recordam um projeto que vem mobilizando os católicos franceses desde há três anos, “Holy Games – L´Évangile c´est sport”, e que pretende «partilhar o fervor desportivo e popular em torno dos Jogos de Paris». No portal de apresentação desse projeto  encontramos um apelo aos jovens, para que estes «possam iluminar com a sua alegria e a sua fé este acontecimento desportivo de grande amplitude», porque o mundo precisa dessa luz. O apelo é o de viver os Jogos «no espírito das JMJ», apelo que é ilustrado com uma bela fotografia de um dos encontros do parque Eduardo VII realizados faz agora um ano. Assim, com uma mensagem positiva de alegria, a que também se referiu o bispo Emmanuel Gobilliard, delegado da conferência episcopal francesa para o acompanhamento dos Jogos de Paris, numa entrevista pode ser preenchido aquele vazio cultural que a cerimónia de abertura desses Jogos evidenciou.