Na aldeia dos meus avós não havia médico. O único que lá prestava serviço limitava-se a marcar consultas uma vez por mês na antiga Casa do Povo. Já neste século, o médico chegava depois da hora do almoço, estacionava o seu Audi no meio da praça, abria a bagageira e ia para o gabinete, num gesto que eu abominava. Nos dias que antecediam a consulta matavam-se frangos, patos, galinhas. Escolhiam-se os ovos mais frescos. Colhiam-se as couves mais tenras e as melhores melancias. No regresso das hortas, ao fim da manhã, juntava-se tudo em sacos, geleiras, bilhas de barro. E eu era solicitado para o serviço sempre que por ali estava de férias. Almoçava-se à pressa. Depois as mulheres punham um lenço que não estivesse roto dos ramos na cabeça, vestiam uma camisa e uma saia lavadas. Uma bata limpa, às vezes. Os homens, aconselhados pelas mulheres, vestiam uma camisa lavada e calçavam uns sapatos limpos, deixando as botas encardidas em casa. Desciam as ruas, carregados de sacos, que iam depositando no carro do senhor doutor, de bagageira já aberta. E lá iam, de boina na mão, cumprimentar o médico, agradecer a generosidade e pedir a receita. O médico, homem de trato fácil, não precisava de fazer nada por isto. O senhor doutor dedicava-lhes um tempo da sua vida atarefada de homem de ciências, de licenciado por Coimbra ou por Lisboa, e isso bastava para a gratidão dos humildes.

O médico, o padre e o juiz eram figuras intocáveis e inquestionáveis a quem se devia sempre agradecer a atenção – às vezes a sua própria existência bastava para justificar a gratidão. Um primo do meu avô que miraculosamente se fez juiz às vezes dava conselhos a pedido, gratuitamente. E as pessoas agradeciam-lhe com um prato de loiça inteira (daqueles não cosidos com arame ou de esmalte) cheio de figos cobertos por um lencinho de linho, porque não tinham dinheiro para lhe pagar.

Habituei-me ali a observar a gente que se curva, que agradece com tudo o que tem ao que vem de fora, ao que julga ser mais que ela, e talvez tenha aprendido ali a revoltar-me com essa condição de quem se agacha a quem julga que está acima seja do que for.

Lembrei-me disto durante as férias, quando regressei à cada vez mais deserta aldeia dos meus avós, um clássico dos meus verões. Outro dos clássicos estivais são as notícias: com o calor chegam os incêndios e o país mediático descobre o outro país que tinha deixado esquecido desde os incêndios do ano anterior. Entre uns e outros, ao longo do ano, só se regressa a ele se por lá eventualmente se der alguma desgraça, uma ponte que cai, um grande desastre rodoviário, um homicídio, um prisioneiro em fuga.

É uma espécie de país estratosférico, este que só sai do centro de Lisboa para nos dar notícia de casos, de crimes e de escândalos, e que sabe muito pouco sobre si próprio. O país alegadamente informado, alegadamente culto, alegadamente cosmopolita, alegadamente tudo, não sabe o que se passa para lá das pontes sobre o Tejo, ou para lá daquele terminal de autocarros do Campo Grande onde, por mais obras que lá façam, permanece uma espécie de purgatório social. Começa-se por boa parte do jornalismo, passa-se pelo comentariado, pelo imenso desfile de aspirantes a yuppies fora de tempo espalhados pela cidade, e também na política, actividade transformada em nobre arte de tirar imbecis da irrelevância, e onde, mesmo aqueles que chegam a Lisboa vindos de outras paragens, depressa se esforçam por perder sotaques, por frequentar os restaurantes dignos das «elites», até por ganhar um certo tipo de maneirismos e hábitos pessoais e sociais que parecem levá-los a acreditar que subiram um qualquer degrau na vida. E acaba, inevitavelmente, nos lirismos que só uma cloaca como a da corte lisboeta podia produzir: estúpidos promovidos por decreto social a inteligentes; criminosos elevados a intelectuais; crápulas convertidos em heróis, há de tudo um pouco, com a bênção do famigerado nacional-porreirismo das elites e a indiferença ou constrangimento submisso do resto.

Não é uma novidade, de resto, como recentemente também lembrou João Miguel Tavares: «uma elite de vistas curtíssimas», essencialmente extractiva, em sistema de cúpula fechada. E que, em bom rigor, se comporta de forma semelhante aos velhos da minha aldeia quando recebiam a visita do médico, deslumbrada e submissa com os seus superiores, atávica e simplória quando com eles comparada. Com o país em estado progressivo e já longo de divergência económica com a Europa, com o elevador social estagnado, mas com um mundo (ainda) aberto e livre pela frente, é natural que uma geração inteira se tenha cansado da estagnação, por um lado, e da parolice das elites, por outro, e se tenha virado para outras paragens, onde pode demonstrar capacidades, ser reconhecido por isso, ganhar dinheiro, fazer a sua vida, crescer social e economicamente. Em Portugal isso só muito raramente é possível. Nós gerámos, de facto, uma elite: formámo-la nas universidades, demos-lhe cuidados de saúde, abrimos-lhe as portas da Europa. Foi a geração que nasceu na década de 1980, e essa elite, em boa parte, emigrou. Talvez, arrisco dizer, porque a corte não estava disponível para perder o lugar e ser substituída. E, sobretudo, porque as luminárias que por cá ficaram – algumas delas a ocupar lugares de decisão e de opinião há décadas – conseguiram pegar num país que podia ter sido outra coisa e tornaram-no aquilo que é há séculos demais. O país precisa que a sua emigração regresse se quiser ser diferente. E esta emigração não terá grande interesse em voltar, se achar que pode voltar ao mesmo. Que isto não seja um tema nacional explica bem o estado a que chegámos.

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