A França foi o laboratório da moderna política europeia. Com Luís XIV, criou e experimentou o despotismo iluminado, que outros soberanos continentais – de Frederico da Prússia a Dom José I – iriam implantar. No século XVIII, com os Philosophes e a Enciclopédia, foi também a pátria da contestação à sociedade política tradicional, assente no trono e no altar. E com a experiência vertiginosa da Revolução, seria, entre 1789 e 1815, um borbulhante tubo de ensaio de ideias e regimes políticos.

O pioneirismo político francês

Se Bossuet teorizou o absolutismo real sob o patrocínio divino, Montesquieu glosou o liberalismo moderado e conservador inglês, que os enciclopedistas traduziriam em versão híper-individualista e pré-revolucionária. Depois libertinos cínicos, como Laclos, fizeram a desconstrução elegante da sociedade tradicional e libertinos desesperados, como Sade, trouxeram a essa desconstrução contornos apocalíticos de promiscuidade e perversão.

É também em França que, com Rivarol e Joseph de Maistre, nascem as teorias da contra-revolução e, com Chateaubriand, o romantismo conservador. Fora ainda ali que, no curso de Revolução, com Gracchus Babeuf e a “Conspiração dos Iguais”, aparecera um igualitarismo revolucionário que o próprio Marx reconheceria como precursor.

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No século XIX, com a luta política a passar, com facilidade, do Parlamento para a rua ou para a guerra civil, repetindo a monarquia legitimista, a monarquia liberal, várias repúblicas e até um segundo Império, a França, na sua instabilidade governativa, continuou a ser um manancial de ideias e constituições, à direita e à esquerda, de ultramontanos a anarquistas radicais, de positivistas progressistas a românticos reacionários, de Comte a Baudelaire. Tudo isto sob um pano de fundo de grandes ficcionistas – Stendahl, Balzac, Flaubert, Maupassant, Zola.

No final do século XIX, na douceur de vivre do Paris da República dos Duques e das grandes exposições universais, onde reinava a belíssima Elizabeth de Greffulhe (que inspiraria a Oriane de Guermantes de Proust), eram, outra vez, pensadores franceses que criavam os novos antagonismos: Maurice Barrès lançava as bases do nacionalismo identitário e patriota, que Charles Maurras e a Action Française transformariam num movimento orgânico que teria réplicas e seguidores em toda a Europa latina.

Zeev Sternhell, um historiador israelita de esquerda que em tempos entrevistei com o Nuno Rogeiro para o Futuro Presente, defendia, precisamente, a tese das raízes francesas do fascismo, que filiava numa ideologia “anti-Lumières”, nada e criada em França, com antepassados tão diferentes como o anarquista Proudhon, os nacionalistas Barrés e Maurras, o caudilho Boulanger e o filósofo da violência Georges Sorel.

Assim, no fim do século XIX, um quarto de século antes de Mussolini fundar os Fascii di Combattimento em Milão, nascia em França uma “direita revolucionária”. O facto de a Itália e de a Alemanha, duas nações rivais ou inimigas da França, serem os lugares do triunfo do fascismo, em 1922, e da sua variante nacional-socialista, em 1933, criou condições adversas para que a direita revolucionária francesa se afirmasse, condições que se agravariam com a Guerra, a Derrota, o Armistício, o governo de Vichy e a Colaboração.

Aí, na zona ocupada, floresceu toda uma geração de escritores “malditos” de grande talento, um curioso “fascismo dos escritores”, com Drieu de la Rochelle, Robert Brasillach, Lucien Rébatet, Louis Ferdinand Céline.

Vichy e a colaboração tanto dividiram a direita como a esquerda: o Partido Comunista só passaria para a Resistência depois da invasão da União Soviética pela Alemanha. No Verão de 1940, por indicação da Internacional Comunista e por mediação da embaixada soviética em Paris, houve contactos com o representante de Hitler na capital francesa, Otto Abetz, para que o jornal L’Humanité, do PCF, voltasse a ser publicado. Mas em Agosto, por ordem de Dimitrov, do Comintern, as controversas negociações foram suspensas.

Em 1940, a direita dividiu-se entre os que seguiam De Gaulle e a Resistência, os que seguiam Pétain e Vichy, e os mais radicais, que defendiam a colaboração com os alemães. Depois da guerra, da Ocupação e da Libertação, as guerras coloniais – da Indochina e da Argélia, mas, sobretudo a da Argélia – voltavam a definir e dividir as direitas. De Gaulle, chamado pelo movimento militar e civil do 13 de Maio de 58 para salvar a Argélia francesa, ia ser o grande artífice da negociação com o FLN e da independência, criando uma fractura na direita de que o antigaullismo de Jean-Marie Le Pen é, ainda hoje, um símbolo vivo.

Uma distopia iliberal?

Estas histórias da História das direitas francesas podem ajudar a entender a presente situação pré-eleitoral. Ao contrário do que, aparentemente, se passa em Portugal, em França, o eixo da política deslocou-se flagrantemente para a direita. Tanto que Emannuel Macron, o candidato que se prepara para recolher o voto útil da esquerda na segunda volta, se situa claramente à direita do Dr. Rui Rio, o candidato que se prepara para encabeçar uma suposta frente de direita doméstica, embora se afirme um homem de centro-esquerda (ou uma espécie de “católico não-crente” da direita).

Faltam 4 meses para as eleições francesas; e, entre a evolução da pandemia, com as acesas polémicas que levanta, e as tensões multiculturais de um país que se debate com uma imigração não-integrada, onde surgem núcleos agressivos, muita coisa pode ainda passar-se. De qualquer forma, numa sondagem publicada na revista Marianne, com base num questionário feito entre 27 e 31 de Dezembro de 2021, o conjunto das direitas à direita de Macron somaria 44, 5% dos votos (Valérie Pécresse, a candidata dos Republicanos, teria 15%; Eric Zemmour também 15%; e Marine Le Pen 14,5%). À esquerda, Mélanchon teria 13%, o “verde” Jadot 4% e a socialista Christiane Taubira 4,5%. O Presidente Macron recolheria, numa primeira volta, 23% dos votos.

O principal apoio de Macron parece estar entre os votantes mais velhos e o eleitorado dito “burguês”. Marine Le Pen, que há muito liderava o voto da direita, perde significativamente entre as classes médias e médias-altas para Zemmour, que reúne também apoios entre os eleitores conservadores. Os núcleos de apoio de Le Pen são, sociologicamente, empregados e operários e, politicamente, os eurocépticos. Mélanchon recruta sobretudo entre a chamada “esquerda cultural” – académicos, jornalistas e funcionários públicos.

A direita tem, assim, três candidatos quase a par: Marine Le Pen, que representa uma linha identitária popular e logo o “discurso de ódio”, procurou moderar-se nas eleições regionais e não lhe correu bem; Zemmour, o judeu francês da Argélia, “pied-noir” mas, ainda assim, profusamente apelidado de “nazifascista e xenófobo”, surge como o intelectual que desce ao terreno com um programa nacional identitário, apelando para os riscos de decadência da França; Valérie Pécresse, da direita conservadora, acusada pelas outras direitas de ambiguidade, é, claramente, a mais moderada dos três – o que, no entanto, não a impediria de ser considerada por comentadores portugueses como uma espécie de Salazar de saias.

Isto quer dizer que, enquanto o eixo da política francesa se deslocou para a direita, o eixo da política portuguesa, não só continua enviesado à esquerda, como se vem reverencialmente inclinando para melhor acolher a angélica extrema-esquerda “com provas dadas em democracia”.

No entanto, não deixa de ser também visível a ligeira flexão para a direita do eixo do mal (o eixo que separa o aceitável do inaceitável e que outrora segregava o PSD de Pedro Passos Coelho e do CDS de Paulo Portas), para isolar em cerca sanitária o recém-chegado “nazi-fascismo” do Chega de André Ventura. Afinal, sendo a França, historicamente, um país de pioneirismo ideológico e institucional, o mais natural é que Portugal se vá, lentamente, arrastando atrás…

…Ou talvez não. O que seria da nossa “democracia exemplar” e do nosso clima, tão propício à prática do “socialismo”, se, numa distopia iliberal, estes ventos de França galgassem os Pirenéus e passassem a Meseta, ainda antes de 24 de Março, “o dia em que o tempo da democracia supera o tempo da ditadura”, ensombrando os trabalhos da comissão para as cinquentenárias comemorações de Abril?