A propósito de uma notícia chegada do Brasil, a Lusa relembra-nos que, em 2020, na sequência da vandalização da estátua do padre António Vieira, no Largo Trindade Coelho, em Lisboa, Marcelo Rebelo de Sousa disse que tinha sido uma “coisa imbecil, verdadeiramente imbecil”. Suponho que, ainda que agora o não diga, por razões  diplomáticas, Marcelo pense exactamente o mesmo, ou pior — como eu penso —, da recente decisão do Município do Rio de Janeiro de aprovar uma lei que proíbe a prefeitura de “instalar ou manter estátuas, monumentos e placas de defensores da escravatura” e pessoas que tenham violado os “direitos humanos”. Em consequência dessa lei, e tendo a vereação, de acordo com um dos seus membros — a conhecida Monica Benicio, que foi também co-autora do projecto de lei e é viúva da ainda mais conhecida Marielle Franco —, considerado que António Vieira teria sido um defensor da escravatura, irá o seu busto ser removido da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, que o recebera por oferta da Câmara Municipal de Lisboa.

Nada disto é surpreendente. Nem a remoção da estátua, nem o nível de paleolítica ignorância que lhe está subjacente. Vieira não era um defensor da escravatura. Aliás, teve um papel importante e bem conhecido no combate à escravização dos índios. O que se passa é que a história é mais complexa do que o cérebro dos woke cariocas consegue encaixar. Apesar de ser contra a escravização dos índios brasileiros, Vieira admitia, ainda que a contra-gosto e com o coração apertado, a escravidão dos negros. Porquê? Por várias razões que davam para escrever uma dúzia de artigos, mas basicamente porque na época em que o padre jesuíta viveu esse duplo critério era comum e muitos homens da Igreja o defenderam e aplicaram — Bartolomeu de Las Casas, por exemplo. Para quem estiver interessado, esse duplo critério está muito bem explicado na obra clássica de David B. Davis, The Problem of Slavery in Western Culture, 1988. Resumindo muito, as coisas podem apresentar-se assim:

Desde princípios do século XVI que, para proteger os índios e obstar à sua escravização, religiosos como Alonzo de Zuazo, o já referido Bartolomeu de Las Casas, Manuel da Nóbrega e vários outros, recomendaram que, em alternativa, se importassem escravos africanos. De onde vinha e como se justificava esta dualidade de critérios? Ela era consequência de diferentes imagens a respeito dos mundos e práticas sociais de índios e africanos. Havia, nessa época, uma marcada tendência de viajantes e missionários europeus para encararem a América como uma espécie de Jardim do Éden onde o nativo teria uma inocência semelhante à de Adão e Eva. Ora, se assim era, como poderiam os cristãos escravizar esses povos, aparentemente ignorantes do pecado? Os negros eram vistos de uma forma completamente diferente. Alguns eram muçulmanos e tendencialmente associados ao inimigo mouro. Mas mesmo os que o não eram viviam num Velho Mundo que, melhor ou pior, já estivera exposto aos ensinamentos dos apóstolos, e que já conhecia o comércio, a agricultura e a escravidão. Não repugnava, portanto, a escravização dessa gente, ainda que ela criasse uma situação reconhecidamente infeliz e dolorosa.

Por essa e outras razões, a dualidade de critérios manteve-se e foi defendida durante séculos não apenas pelos apologistas da escravatura, mas por gente que, à falta de melhor solução, a tolerava. É isso que há que ter em mente quando se avalia e se julga o pensamento e a accção de um homem do século XVII como o padre António Vieira. Mas ter ideias elaboradas e bem alicerçadas em mente é pedir de mais aos woke, não vos parece? A sua incapacidade para pensar as coisas assim, de forma ponderada, matizada, informada, não deve surpreender-nos. Nem, aliás, as suas sucessivas fátuas ideológicas sobre certas estátuas. Nesses autênticos viveiros da idiotia woke que são os Estados Unidos, o Brasil, o Canadá e o Reino Unido, assiste-se com frequência a decisões e atitudes destas. Nos Estados Unidos, por exemplo, ainda não satisfeitos com a remoção da estátua equestre de Robert E. Lee, de Charlottesville, os woke arranjaram forma de a mandar derreter.

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Este é apenas um exemplo de episódios semelhantes ou equiparáveis que se passam nesse quadrilátero da imbecilidade onde há pessoas tão sensíveis e vulneráveis que se sentem ofendidas por estátuas de gente que viveu há centenas de anos, e que se acham no direito de as atacar, esconder ou destruir. Na base desse seu impulso agressivo, na génese dessa sua cruzada, está a convicção de que fazem parte do grupo mais iluminado que alguma vez pisou o chão da Terra, e que, no plano moral, estão vários níveis acima dos que viveram antes de nós. Todos os woke têm a ideia inculta, tacanha, de que são mais esclarecidos do que os seres humanos que os precederam.

É claro que, lá no Brasil, os brasileiros farão o que muito bem entenderem com a sua memórias e os seus monumentos. Quanto mais os woke locais prevalecerem mais irão fazer coisas “verdadeiramente imbecis”, como diria o Presidente Marcelo, e como se vê neste caso da lei carioca que leva à remoção do busto do padre Vieira, mas, no fundo, é lá com eles. Claro que a lei é manifestamente idiota. Proíbe monumentos a “violadores dos direitos humanos”, mas como toda a gente não-woke saberá, a noção de “direitos humanos” não é fixa, foi mudando ao longo das décadas e poderá continuar a mudar. A que hoje temos não é a de há duzentos anos e não será, provavelmente, a que teremos amanhã. O que significa que, para cumprir uma lei destas, as autoridades teriam de estar regularmente a demolir estátuas de pessoas que tivessem existido num passado em que os “direitos humanos” ainda não fossem o que são ou serão em cada presente. Se os woke conseguissem impor a sua visão das coisas para além das faculdades de ciências sociais e humanas, da perfeitura do Rio de Janeiro, das redacções de certos órgãos de comunicação social e de outros campos de concentração mental espalhados pelo Ocidente, o nosso espaço público converter-se-ia numa celebração constante desse presente — um enjoativo presentismo — e perder-se-ia completamente a espessura da História, isto é, a noção da variação ao longo do tempo. Mas, como escrevi acima a propósito da lei brasileira, é lá com eles.

Tudo fia mais fino, porém, quando vêm até nós brasileiros ou norte-americanos woke tentando impor-nos a sua visão míope da História e da complexidade das coisas humanas. Temos cá vários exemplos desses activistas a querer, através de canções, de exposições, de preleções, meter-nos a sua agenda pelos olhos dentro. Seria bom que, em defesa das nossas estátuas, dos nossos livros, da nossa memória nacional, da nossa sanidade mental, estivéssemos atentos à movimentação dessas pessoas, ao teor das suas mensagens e que tentássemos combatê-las para que a confusão entre problemáticas brasileiras e portuguesas, que são diferentes, não se infiltre no ensino das nossas crianças. Julgo saber que o governo do PS não o tem feito, e que até tem dado uma ajudinha a veicular muito treta woke para o sistema de ensino. Espero que o próximo governo, com um programa político diferente e com outras mãos ao leme da nau do Estado, tenha este perigo cultural em consideração e que queira e possa antepôr-lhe a adequada barreira. Senão, daqui por uns anos, os nossos filhos e netos estarão a deitar abaixo as estátuas do Marquês de Pombal e a não deixar pedra sobre pedra.