Há tempos e momentos em que a vida parece transformar-se numa procissão de defuntos: para mim este final de Quaresma tem sido assim, com memórias e efemérides de mortos queridos e a morte de amigos. Entre o Além e o Aquém, o Céu e a Terra, ficamos perplexos, sentimo-nos vencidos pela saudade e pelo desgosto, relembrando a história dos que já partiram e sofrendo com o vazio que deixam os que agora partem. E a Fé, ao contrário do que pensam os que não a têm, não apaga nem anula a dor, a saudade e a falta que todos nos fazem. Ajuda a suportá-las, dá-nos um horizonte de esperança mas não apaga nem anula coisa nenhuma.
Neste Sábado, 24 de Março, ao romper do dia, morreu o Victor Ribeiro. Horas antes, cerca da meia-noite, tinha recebido os Sacramentos, os primeiros e os últimos, e assim morreu na paz de Cristo. Na véspera, dia 23 de Março, ao princípio da tarde, num acto de justiça e num gesto de extrema atenção, o Presidente da República esteve no quarto da Fundação Champalimaud onde ele, ainda consciente, agonizava, para lhe entregar a Comenda da Ordem do Infante.
A agonia de pessoas muito próximas e muito queridas é uma experiência muito dolorosa para os que partem e para os que ficam. E não é por acreditarmos que há Vida para além desta vida que sofremos ou tememos menos estas separações.
O Victor Ribeiro – de seu nome completo Victor Manuel Tavares Ribeiro – era um herói português. Mas como outros heróis que ficaram do lado errado da História foi um herói esquecido. Até porque, como os verdadeiros heróis, ou como os que além da coragem têm a humildade que só vem com a grandeza humana, falava pouco de si e não andava a vangloriar-se do que fazia ou do que tinha feito. E fazia e fez muito.
Conheci-o em Luanda, em 1974, no último Verão do Império. Viera com o José Pedro Caçorino Dias para contactar ex-combatentes na tentativa de organizar uma oposição ao que se temia que viesse de arrasto com o 25 de Abril e que alguns de nós já adivinhávamos: uma descolonização de “salve-se-quem-puder”, uma deriva esquerdista totalitária, uma derrocada do Estado e do Exército, o fim de quinhentos anos de um Portugal grande e a desgraça de muitos portugueses, sobretudo dos portugueses de África.
Eu estava em Luanda com o Nuno Cardoso da Silva e com o Alfredo Aparício, que tinha servido com o Victor na 2ª companhia de Comandos de Jaime Neves. O Nuno e eu tínhamos ido para lá com o general Silvino Silvério Marques, que aceitara in extremis a missão impossível de tentar salvar Angola da catástrofe.
Conhecemo-nos assim, o Victor e eu, vai fazer este Verão 44 anos. Foram dias agitados, esses dias do Abandono em que nos cruzámos e em que, naquela euforia das situações de excepção, de perigo iminente e imprevisto, fizemos planos e armámos conspirações contra toda e qualquer racionalidade e probabilidade. Fizemo-lo entre as boutades do Cyrano – “Não se combate na esperança do sucesso” e “c’est bien plus beau lorsque c’est inutile” – embora, no fundo, achássemos que podíamos perfeitamente vir a ter sucesso e que era útil o nosso esbracejar contra o que parecia inevitável. Uns por lá, outros por cá, propúnhamo-nos combater todos os perigos e inimigos que estavam à porta da cidade ou já lá dentro.
O Victor veio para cá. Nós, os de lá, não tivemos muita sorte. No fim de Julho, o MFA de Angola impôs ao general Spínola, ao mesmo Spínola que tinha mandado Silvino Silvério Marques para Angola, a saída do Governador para Lisboa. Em princípios de Outubro, com mandados de captura e o Rosa Coutinho atrás de nós, o Aparício a Zezinha e eu atravessámos Angola para sair pela fronteira do então Sudoeste Africano, hoje Namíbia. Fizemos mais de dois mil quilómetros de estrada à boleia do José Penha Rodrigues e do Miguel Corte-Real, todos já desaparecidos. Nessa fuga para a liberdade, ajudaram-nos o Francisco Falcão Machado, que era então capitão miliciano e comandava a companhia que fazia a segurança da ponte e da barragem de Cambambe, e o António Luís Alves, o “Mister Banana”, um verdadeiro “português das áfricas”, proprietário de uma serração entre Angola e o Sudoeste, onde pernoitámos antes de atravessarmos a salto a fronteira, de madrugada.
Ao contrário de nós, o Victor teve sucesso na organização da resistência metropolitana. Tinha nascido em Lisboa em 1941 e passara a infância e a primeira adolescência no então Congo Belga. Depois, voltara à capital e frequentara a Academia Militar e a Faculdade de Ciências. Quando chegou o tempo do serviço militar, ofereceu-se para os Comandos, fez o curso no CIC – Centro de Instrução de Comandos –, criado pelo Tenente-Coronel Santos e Castro, foi promovido a Alferes da 2ª Companhia e andou em operações em Cabinda e no saliente do Cazombo. Em Maio de 1966 a 2ª Companhia foi transferida para Moçambique, para o Lumbo, onde os Comandos tinham base e de onde partiam para operações nas zonas mais quentes do Norte.
Quando acabou a comissão, foi desmobilizado e entrou para piloto da TAP. Tinha sido promovido a Tenente por distinção e ganhara uma Cruz de Guerra e uma medalha de Valor Militar.
O Victor foi o grande dinamizador da organização da Associação de Comandos. E, no Verão Quente de 1975, foi o elemento-chave na mobilização de antigos camaradas para as companhias de convocados que iriam ser a ponta de lança da operação do 25 de Novembro. E foi ele, na manhã de 26, na Chaimite de Jaime Neves, que rebentou com os portões da Polícia Militar na Calçada da Ajuda. Era difícil que não me inspirasse nele quando escrevi Novembro e que não lhe desse a ler o manuscrito para as descrições de operações de combate.
Depois do meu regresso do exílio, em 1978, colaborei com ele e com muitos dos nossos amigos de 74-75 na fundação do Movimento 10 de Junho e na campanha para a construção do Monumento aos Combatentes do Ultramar. Encontrávamo-nos todos os anos nessas andanças. Depois, quando ele se reformou da TAP, desafiei-o para uma aventura em África, em tudo diferente daquelas em que tínhamos estado envolvidos mas também espinhosa ainda que com um outro tipo de espinhos. Aí, em Moçambique, o Victor deu o seu melhor, esforçadamente, até que a doença o atacou nos finais do ano passado.
Era um combatente e um resistente. Soube que ele tinha piorado mas não medíamos a rapidez, a cavalgada do mal, nas últimas semanas e dias. Quando o fui ver, encontrei um lutador na sua última batalha.
Ali, no leito de onde já não sairia vivo, lembrou-me um mártir, um gladiador, um santo ou um pecador, um desses corpos fortes que dão vida a almas também fortes, como os pintados pelos irmãos Carracci. Aquela cara, agora com os olhos encovados e os ossos salientes, era a de alguém que se batera toda a vida e que conservava, mesmo nas margens da agonia, um espírito resistente e combatente: o mesmo que o levara a nomadizar na guerra, dias e dias, nas matas de Cabinda ou nas montanhas de Maniamba-Amaramba, ou o que o levaria, anos depois, em Moçambique, a defender-se a murro de um bandido que lhe apontava uma automática e que, por milagre, acabou por atingi-lo só de raspão.
Lembro-me dele sempre assim, a reagir prontamente, puro e duro, discreto, sem contemplações, sem medo. Numa tarde de sábado, em Maputo, depois de um almoço no Costa do Sol fomos – o Victor, um outro antigo Comando e eu – passear pela praia. Eu ia um pouco à frente, o Victor seguia atrás de mim e o nosso amigo fechava a marcha. Eis senão quando, ouve-se lá atrás um burburinho: um bando de seis ou sete adolescentes locais, grandes, assanhados e com facas, tinha assaltado o nosso amigo para lhe roubar o telemóvel. Quando olhei para trás, o Victor já estava em cima deles. E perante a coragem e a determinação do “Comandante” – e apesar das facas, da superioridade numérica e dos anos que tinham a menos que nós –, desataram a fugir com o Victor (e nós) atrás deles. Três sexagenários ao sol da tarde, praia fora, atrás de um bando de jovens assaltantes, numa insólita perseguição.
O Victor não tinha medo de nada. Nem da morte, como se viu.
Que Deus receba na sua Paz este seu filho que combateu o bom combate e que nos deixou um exemplo de confiança, de generosidade, de coragem, de tenacidade. E, no limiar, de Fé.