Faltam poucos dias e Fátima já não cabe em Fátima. Todos se agitam dentro e fora de portas, tudo é movimento e expectativa, as pessoas vão chegando e os espaços vão-se preenchendo. A fé dos que caminham a pé interpelam os que passam na estrada, de carro, ou observam mais à distância, através de janelas ou ecrãs de televisão e cinema. Ao recinto chegam diariamente milhares de pessoas. Entram às centenas, em grupos silenciosos. Impressiona muito este silêncio à chegada. Parecem exércitos de paz que desaguam em multidão e descem a compasso, quase sem se ouvirem os passos. Permanecem calados e rezam juntos, cada um entregando as canseiras, as lutas e batalhas que traz no seu coração.

O Papa também está a chegar e estas vésperas têm uma solenidade própria. Os sinos tocam e soam mais fortes, ouvem-se como nos dias de festa. As pessoas movem-se em bandos e já não há horas mortas no santuário. As procissões da noite estão apinhadas de fiéis e há velas e luzinhas acesas por toda a parte. Faz sol e frio, como sempre. Sol de dia, vento à tarde e frio durante a noite. Parece que vai chover sem parar no dia em que o Papa ali estiver a celebrar.

Nas semanas que antecederam a sua vinda a Portugal, o Papa Francisco viajou para outras paragens e disse coisas que ficam a fazer eco muito para além deste tempo extraordinário. À sua maneira, no seu estilo directo e concreto, disse que neste mundo ferozmente competitivo todos devíamos rivalizar apenas numa coisa: na caridade. Rivais em caridade, mais nada.

Competir em bondade não é uma metáfora, note-se. Trata-se de um desafio real, no mundo real. Olhando à volta, parece uma competição impossível, dada a agressividade crescente com que todos parecemos obrigados a competir. Diria que muitos nem se atrevem a escutar o Papa, para não terem que partir vencidos, mas ouvindo demoradamente as palavras de Francisco, percebemos que o desafio faz todo o sentido, precisamente por vivermos num mundo difícil, em permanente competição.

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Se atendermos aos sinónimos de caridade, ficamos ainda mais conscientes daquilo a que Francisco nos convoca: amor; bem; bem-fazer; beneficência, benevolência; bondade; compaixão; complacência; condescendência; filantropia; solidariedade; generosidade e piedade, entre muitos outros. Todos se podiam resumir numa única palavra, sempre que ela se revela no seu maior esplendor: humanidade.

Fazer bem o bem, é agir com humanidade, mas nem sempre conseguimos este bem-fazer. Muitas vezes acontece-nos até fazer mal o bem, e tenho a certeza de que, nesta competição, neste rivalizar em caridade, de cada vez que isso acontece ficamos fora de jogo. Fazer mal o bem é infinitamente mais frequente do que pensamos. Basta conferir em nós e à nossa volta para perceber de que falamos, quando falamos de fazer mal o bem. Os exemplos sucedem-se, sem nos darmos conta, e talvez seja esse o maior desafio que o Papa propõe a crentes e não crentes, pois não é preciso ter fé para perceber o valor da bondade e da caridade, quando se traduz em maior humanidade. Há tanta gente boa fora das Igrejas, como dentro. Nem mais, nem menos.

Tão importante como aquilo que dizemos ou fazemos uns aos outros, é a maneira como o dizemos e o fazemos. Daí a insistência nos meios, uma vez que os fins não podem justificar tudo. No mundo das empresas, no universo das organizações e nos palcos políticos vemos cada vez mais gente a atropelar gente. Pares a abalroarem pares. Hierarquias a esmagarem as equipas com quem trabalham. Pessoas a acotovelarem-se e a rasteirarem-se para conseguirem chegar a melhores resultados. E conseguem, e os resultados são bons em si mesmos, mas os meios usados para esse fim é que deixam muito a desejar, como se costuma dizer.

Penso que é desta competição, desta descomunicação e desta vida bruta que o Papa parte, para apontar outro campeonato. Ele, que tal como nós, também vive neste mundo, sabe que atravessamos os dias a competir. As rivalidades são muito concretas e visíveis, aliás. Tudo parece cegar-nos e fazer-nos reactivos, caindo facilmente na tentação do ‘olho por olho, dente por dente’. Fazes, mas pagas! Dás mas levas!

Francisco sabe bem onde leva esta escalada e, por isso, insiste em pregar essa outra rivalidade: a competição pela caridade. Não dá soluções, mas mostra caminhos. E dá, ele próprio, o exemplo.

Fátima já não cabe em Fátima por mil razões, convergentes e divergentes. Por um lado, as multidões de fiéis já começaram a encher o recinto e vão entupir todas as ruas e artérias que serão percorridas pelo Papa. Por outro lado, muitas vozes dissonantes se ouvem e continuarão a ouvir a propósito dos Pastorinhos, de Nossa Senhora e das suas aparições. Há quem não acredite em milagres e quem fale de dogmas que nunca foram nem serão dogmas de fé. Por tudo isto e muito mais, mas também por ignorância, por confusão mediática ou desinteresse por factos e documentos, a canonização de Jacinta e Francisco soa estranha a meio mundo. Percebo que assim seja. Assim como também compreendo que o centenário das aparições não toque todos os corações dos fiéis.

Enquanto para muitos Fátima é parte do seu caminho, para outros não faz falta e até gera confusão. São desencontros e vazios que não comprometem os caminhos de quem usa plenamente a sua liberdade na procura de um sentido espiritual. Para estes, Fátima pode ser indiferente mas não fecha portas; pode, pelo contrário, deixar perceber a luz de sinais que animam e motivam outros caminhantes.

As discussões e as opiniões sobre Fátima e o seu significado não acabarão, mas Fátima não cabe mesmo em Fátima. Em qualquer um de nós que se cruze com Fátima, dentro ou fora da sua geografia e da sua tangibilidade, ecoará a essência das nossas relações e a única coisa por que vale a pena rivalizar: a caridade.