Às vezes, batia-lhe tanto que ela deixava de estar ali, naquele corpo que não podia defender-se. Via-se a planar sobre o que estava a acontecer mais uma vez naquela cama, no chão, ou onde fosse.
A cabeça levava-a para outros lugares, onde o amor era gentil e despretensioso, como aquele que ela lhe tivera a vida inteira.
Um lugar onde um pai não comia chocolates inteiros com prazer em frente aos filhos sem lhes oferecer um quadradinho que fosse.
Onde um marido não trancasse o telefone cuja conta era ela a pagar.
Um lugar onde as tareias diárias, as ofensas e a pressão psicológica não fossem uma realidade imaginável, quanto mais possível.
Nesse lugar, as casas eram um lugar feliz de se viver, o medo não tomava conta de todos os cantos da casa e os corações, o dela e os dos miúdos, não viviam à flor da boca, antecipando a próxima cena do filme.
Era só apetecer-lhe. Porque vinha chateado do trabalho (ela é que pagara os seus estudos quando se casaram), porque a coisa não lhe tinha corrido de feição com a amante do momento, porque a comida não estava suficientemente salgada, porque a aletria não tinha três quilos de açúcar, porque estava sol, porque estava frio. Por tudo. Por nada. Porque sim. Em frente aos filhos.
Não raras vezes, também batia aos filhos, principalmente ao rapaz. Fazia-lhe frente, questionava a sua autoridade e nenhum ditador gosta de ser questionado e nem que aqueles que considera inferiores a si tenham uma cabeça que pense. Dá muito trabalho, são mais difíceis de levar.
Uma vez, levou-a até à estação de comboios, parou o carro e disse: “Vai lá, atira-te já!” depois dela dizer que se matava, que não aguentava mais.
De outra vez, estava ela grávida, a violência foi tal que a deixou a sangrar na cama, enquanto se levantava e dizia: “Se não te levantares daí, o jantar não se faz sozinho.”
Ela? Amava-o com toda a verdade que pode existir. Acarinhou-o e cuidou dele até que o peso da idade e as incapacidades que ela trouxe consigo não o deixaram bater-lhe mais. Ainda assim, as más palavras, as ofensas, as humilhações continuaram.
Ela deu-lhe banho, alimentou-o, acariciou-lhe o rosto até ao dia em que ele partiu nos seus braços desesperados, vítima de um AVC fulminante.
Como este, existem mais casos do que aqueles que seria possível contar.
Não são só os que vêm à televisão ou que são divulgados nas redes sociais.
São muito, mas muito mais do que aqueles de que se tem conhecimento, porque a esmagadora maioria das vítimas não denuncia. Para denunciar um crime de violência doméstica não basta ter coragem e uma força vinda sabe-se lá de onde. É preciso que haja a noção de que depois da queixa apresentada, todo um processo se inicia e que, na maioria das vezes, a vítima sai da esquadra e tem que voltar para a casa onde vive com o agressor. Ainda mais agora, com o dever de recolhimento obrigatório.
É preciso pensar que as crianças assistem a tudo e vão carregar todas aquelas imagens uma vida inteira, num período em que estão a formar a sua personalidade e, portanto, cria-se ali também uma forte possibilidade para que mais tarde, este tipo de comportamentos venham a ser perpetuados na sua vida adulta. Existem estudos que comprovam que crianças que testemunham ou vivem em contexto de violência doméstica têm uma probabilidade entre duas a quatro vezes maior de virem a ser vítimas também. E isto acontece porque, volto a dizer, são seres em desenvolvimento, aos quais está a ser passada a mensagem que a violência é aceitável, que está tudo bem em bater, humilhar, gritar e negligenciar o outro.
Só mais recentemente, julgo que em 2019, se começou a ouvir falar do estatuto de vítima para crianças que presenciem ou vivam em contexto de violência doméstica.
Há dois anos.
É preciso pensar que depois de feita uma queixa – que pode ser apresentada pela vítima ou por alguém que queria denunciar a situação –, e sendo a violência doméstica considerada crime público, a partir daí, não cabe à vítima avançar ou não com o processo criminal; essa é uma decisão que caberá ao Ministério Público.
Em processos tão morosos como são os da Justiça portuguesa, o que acontece às vidas das vítimas enquanto um juiz, que apenas pode imaginar o que aconteceu dentro de quatro paredes, decide se o agressor vai ser punido ou não? Estas vidas ficam em suspenso.
Quão atrasado está Portugal no que respeita a questões tão intrinsecamente ligadas aos valores basilares de uma democracia?
Desde que a pandemia surgiu, mais e mais casos têm vindo a ser divulgados e isto leva-me a duas conclusões: a primeira é que só não acontecia mais vezes porque as pessoas estavam fora de casa a trabalhar (as que o fazem, naturalmente) e, estando mais tempo em casa, maior é a possibilidade de fazer disparar o gatilho da ira do agressor.
A segunda, é que o número de denúncias está a crescer significativamente e estou em crer que tem que ver com o facto da violência doméstica ser um tema que ganha cada vez mais terreno, mais destaque, mais atenção e maior movimentação de massas, felizmente. É isso que é preciso, o caminho é por aí.
Enquanto estou sentada a escrever este texto, há certamente mais do que uma pessoa a passar por isto. Enquanto tiramos fotografias para postar nas redes sociais, há alguém que acabou de levar o primeiro estalo ou de ouvir o primeiro insulto. E todos sabemos que dificilmente ficará por aí, porque o respeito, quando se perde, ninguém o volta a encontrar.
Dito isto, existem, sim, muitas medidas criadas no apoio à vítima, como é o caso de associações, como a APAV, e medidas judiciárias que pretendem fazer face às elevadas custas judiciais decorrentes dos processos instaurados, bem como indemnizações que podem ser solicitadas no Portal da Justiça ou na própria APAV.
No entanto, estas não são medidas preventivas, são recursos que se aplicam a uma situação de crime que já teve lugar. É preciso que o sistema penal português encare o tema com a seriedade que ele merece e, mais, que estreite cada vez mais o laço entre o Tribunal de Família e Menores e o Tribunal da Relação.
Não podemos continuar a ter casos em que os filhos assistem a cenas de violência (e basta que seja uma), seja por parte da mãe ou do pai, a um consequente processo de queixa-crime e que a vítima continue a ter que entregar os filhos menores a um agressor, porque é o pai/mãe. Tudo porque não foram os menores que sofreram as agressões físicas. Isto só nos pode levar a concluir, mais uma vez, que vivemos num país bem menos evoluído do que o que se pensa ou quer fazer crer, em que além do assunto não ser ainda encarado com a importância devida, desconsidera por completo os danos psicológicos que testemunhos destes trazem à vida de crianças que serão os adultos de amanhã. Estas repercussões não são um mal menor e não podem continuar a ser vistas e tratadas como tal!
Em 2018, segundo o Relatório Anual de Segurança Interna, registou-se uma média de 72 casos por dia e foram assassinadas 28 mulheres em contexto de violência doméstica. Em 2019, segundo a APAV, houve um aumento de 18% no atendimento face ao ano anterior e registaram-se 35 assassinatos, entre homens, mulheres e crianças, em contexto de violência doméstica. Em 2020, foram mortas 30 mulheres, 16 delas em relações de intimidade, segundo o Público. Já a PSP registou cerca de 40 ocorrências por dia no mesmo ano.
Este ano, já regista um aumento de 180% face ao primeiro trimestre de 2019, no que toca a pedidos de ajuda em contexto de violência doméstica.
Mais do que aplicações que disponibilizem toda a informação que pode ser útil às vítimas, mais do que ajudas de custo nos processos judiciais, mais do que associações que recebam as vítimas e os seus filhos (e atenção, reconheço todo o mérito a estas medidas), a solução tem que passar pela prevenção. Não havendo forma de se adivinhar quando, como e porquê a violência doméstica acontece, a prevenção terá que passar por medidas mais pesadas e mais imediatas para os agressores, para que percebam que se o fizerem terão sérias consequências e isso os leve a pensar duas vezes antes de violentarem alguém.
Para quando uma vacina contra uma pandemia que cresce dentro de quatro paredes?
É preciso que 2021 marque não só o combate à pandemia do Covid-19, mas o combate à violência sob toda e qualquer forma.