A semana passada, Adele ganhou o Grammy para Album do Ano. Muitas pessoas, incluindo a própria Adele, esperavam que fosse Beyoncé a ficar com o prémio. Por isso, Adele, no seu discurso, acabou por dizer: “Não posso de todo aceitar este prémio (…) O álbum ‘Lemonade’ (de Beyoncé) é tão monumental…”
Em suma, foi um discurso bonito em que uma mulher humilde reconheceu que uma sua colega devia ter ganho. Mas muita gente preferiu encontrar outros motivos para as palavras de Adele. A discussão incendiou a internet e chegou à imprensa.
Num dos artigos mais lidos do Guardian da semana passada, “Adele’s tribute to Beyoncé was a frank admission of privilege. I salute it”, a autora explica que Adele estava a reconhecer que é menos merecedora do que Beyoncé, porque é branca, enquanto Beyoncé é negra. Outro artigo na mesma linha, com o título “O que podem mulheres brancas aprender com o discurso de Adele”, pedia às “mulheres brancas” para “evitar “obstruir” o caminho às nossas irmãs de cor”.
Enfim, dois artigos de um paternalismo insuportável, a tentar desqualificar quem nasceu com certa pele, certo sexo, ou em certa classe social.
Segundo a nova vaga do pensamento-correto, todos devemos “verificar o nosso privilégio” antes de falar ou fazer qualquer coisa. Este novo culto começou por atacar o “privilégio” do macho branco. Mas rapidamente degenerou numa competição para saber quem é que consegue fazer os outros sentirem-se mal por causa do seu “privilégio”, seja qual for esse “privilégio”.
Nesse mundo de etiquetas, somos totalmente definidos pelos grupos a que pertencemos, e esse grupos não têm todos o mesmo mérito. Quanto mais alto o nível de “privilégio”, mais baixa a posição do grupo na hierarquia de merecimento. Quanto mais baixo o nível de privilégio, mais merecedor, mais justo, e mais digno é o grupo. Segunda a teoria do “privilégio”, ser fêmea é melhor do que ser macho, ser negro é melhor do que ser branco, ser pobre é melhor do que ser rico, ser homosexual é melhor do que ser heterosexual, ser de género não-binário é melhor do que ser homosexual, ser deficiente é melhor do que ser não-deficiente — porque a primeira categoria de cada binómio está associada historicamente a mais desvantagens e sofrimentos, e portanto tem menos “privilégio”. Bem: que os membros dessa categoria, ao longo do tempo, possam ter sofrido mais, não é certamente discutível. Mas que, só por isso, sejam necessariamente superiores em mérito, independentemente do que dizem ou fazem, isso já é discutível. O que aconteceu à igualdade? A ideia não era lutar para que a mulher fosse igual ao homem, o negro igual ao branco, e as opções sexuais e a classe social matérias que nunca deveriam justificar discriminação? Não devíamos ser todos avaliados pelo que dizemos ou fazemos, e não pelas características físicas com que nascemos ou pela nossas origens familiares?
Aos olhos dos adeptos da teoria do privilégio, devíamos passar o tempo a contabilizar as desvantagens históricas do grupo a que supostamente pertencemos, e a compará-las com as dos outros, para saber quem vale mais. Por exemplo, eu ganharia muitos pontos por ser mulher, devido às limitações impostas durante muito tempo às mulheres. Mas como sou branca, devia carregar toda a culpa de todos os males feitos pelos brancos ao longo dos séculos. Nasci numa família de classe média, ou seja, entre as classes altas e as classes trabalhadoras. Assim, devia-me sentir justa e digna por não ter uma grande herança, mas culpada por nunca ter passado fome na infância.
A minha obrigação seria mostrar empatia por qualquer pessoa situada mais abaixo na escala de privilégio, e ser desconfiada e antipática para qualquer pessoa acima de mim. Os adeptos da teoria do privilégio acham que é assim que chegamos à igualdade? Acham que, por criar um sistema invertido de castas, vão neutralizar os sistemas de casta? Denunciar um homem rico e branco pelas suas acções, quando estas merecem ser criticadas, é justo. Denunciá-lo apenas pelo seu “privilégio”, isto é, só por ter nascido homem, branco e rico, não é. Que pode ele fazer? A riqueza ainda a pode distribuir, o sexo agora já o pode mudar. Mas a sua brancura?
Fazer as pessoas sentirem-se culpadas por coisas que não podem mudar (sexo, cor da pele, classe social da família) não tem sentido e é contra-produtivo. Não custa imaginar que, durante a última eleição americana, a irritação com essa tendência tenha levado muita gente a votar no homem cor-de-laranja com cabelo esquisito que agora reside na Casa Branca.
(traduzido do original inglês pela autora)
Are you more privileged than me?
Last week at the Grammys, Adele won Album of the Year. Many people, including Adele herself, expected Beyoncé to win it. Adele said “I can’t possibly accept this award, and I’m very humbled and I’m very grateful and gracious, but my artist of my life is Beyoncé and this album, to me, the ‘Lemonade’ album, was so monumental…”
What I saw was a nice speech in which a humble woman stated that one of her peers should have won the award. However, many people opted to find other motives for Adele’s speech, and the discussion ignited the internet and the press.
In what was one of the Guardian’s most read articles last week, “Adele’s tribute to Beyoncé was a frank admission of privilege. I salute it”, the author explained that Adele was recognizing that she was less deserving than Beyoncé, because she is white and Beyoncé black. Another article along similar lines, “What White Women Can Learn From Adele’s Grammys Speech”, asked “Fellow white women: let’s do our best to avoid ever “containing” our sisters of color”. How insufferably patronizing.
Here were two self-pity-, guilt-ridden, patronizing articles, trying hard to disqualify people for for being born into certain skin, certain gender, certain class.
According to a new wave of right-thinkers, everyone should now “check their privilege” before they speak (or do anything). This whole cult that began with white-male-privilege has rapidly escalated into a shouting contest of trying to make people ashamed of their “privilege”, whatever that privilege might be.
In their world of labelling, we are all defined by the groups to which we belong, and not all those groups have the same worth. The higher the privilege, the lower your status in the worthiness hierarchy. The lower your privilege, the worthier you are, the more righteous. Roughly speaking, for the “privilegists”, female is better than male, black is better than white, poor is better than rich, gay is better than straight, non-binary better than gay, disabled better than abled, because each of the former has suffered more than each of the latter That they suffer and have suffered more historically is not in dispute. That they are more worthy, is. What the hell happened to equality? Weren’t we striving towards female being equal to male, black equal to white, sexuality equal to sexuality, class equal to class? Shouldn’t we be judged by what we say and do, and not by the circunstances of our birth?
In the eyes of the privilegists, we should all be looking hard at ourselves, and accounting for the historic disadvantages of the groups to which we supposedly belong and comparing them to the others, to calculate who is more worthy. For expample, I win many points for being a woman, what with all the disadvantages that being a woman entails. However, I am also white, so I should be absorbing all the guilt of the ills perpetrated by my race over the centuries. I was born into a middle-income, middle-class family so, being bang in between the landed gentry, with all their free money, and the working class with none, I should at the same time be feeling self righteous because I don’t have a trust fund, and guilty because I never went hungry as a child.
I should, they are telling me, be empathetic towards anyone lower on the scale of privilege than me, and mistrustful and antagonistic towards those higher on it. What do the privilegists think all this will achieve? Do they believe that this is how we reach equality? Do they think that by creating an inverse-caste system, they will nullify all the caste systems that society currently suffers? Shouting out a wealthy white man for his actions is a productive use of words. Shouting him out for his privilege isn’t. He isn’t going to redistribute his wealth or power because of it, and he certainly can’t redistribute his whiteness or his maleness.
This desire to make people feel guilty for perceived privilege, for things they can’t change (sex, skin, class) is at best pointless, and at worst, dangerously distracting, and it doesn’t take the wildest stretch of the imagination to see how the Orange with Hair getting to the White House was helped along by the cult of the privilegists.