Para a Raquel Marinho, com gratidão

O instante em que nasce um nome, aquela vez primeira em que, com um vocábulo, se chama uma coisa, é um instante de irrepetível pureza: um objecto encontra-se diante do homem, liberto das vestes da denominação, intacto e puro, exposto. Não há, entre ambos, quaisquer ideias, interpretações, temas, nenhuma via, mesmo que obstruída. É preciso achar um modo para enunciá-lo, dizê-lo, transpô-lo para o bravio mundo dos conceitos, torná-lo nosso e comum no reino das palavras. Qual a eleita?

A essa experiência fulgurante, Parménides chamou aletheia – aquele instante em que um objecto se oferece ao espírito no fulgor da frágil nudez da sua verdade. Quando, no século I d.C., a palavra aletheia dissipara já muita da riqueza do seu sentido metafórico, uma nova descoberta radical (um novo e grande desvelamento, embora distinto da filosofia) reivindicou um novo termo para dizer ‘revelação’, e a escolha recaiu então sobre apocalipse – um vocábulo barroco, mais ao gosto oriental da época, mas cujo significado é precisamente o mesmo.

Não é por acaso que somos tão frequentemente assaltados por aquela paradoxal descoberta de a invenção de um termo para um novo conceito – ainda que técnico, mesmo que rigoroso – não consistir senão numa operação fundamentalmente poética tal como, aliás, qualquer labor sobre a linguagem: não foi o modernismo que nos ensinou que é justamente na operação inversa – no desvelamento do sentido mais profundo de um termo comum e já estabelecido – que a tempos se entrincheira a ressurreição daquele momento primordial em que alguém pela primeira vez vê diante de si uma ‘coisa nova’? E que à novidade dessa coisa – tantas vezes doméstica e submissa, açaimada pelo hábito – jamais acederemos senão pela generosa mão daqueles que, subindo às muralhas, delas derramam o ocaso, palavras nunca ditas, razões e propósitos que tão bem dispensaríamos, logo nós que acolhemos os dias como doces tangentes ao sentido e a quem bastaria tão-só que as coisas fossem o que são? Não é por acaso que, na República de Platão, não há lugar para os poetas: terrível é o homem, de facto, que de si se faz mesa de redenção e graça, lugar onde a noite e a angústia, a ternura e a beleza remoçam a chama da atenção, dos comungados espanto e terror diante da possibilidade de dizer a verdade das coisas.

Quando Sergei Diaghilev, em Maio de 1913, em pleno coração da République, apresentou A Sagração da Primavera como “um poema apocalíptico”, talvez não tenham sido muitos os que realmente o perceberam: a promessa de, à uma, incinerar no mesmo auto-de-fé dois expatriados orientais e, a seu modo, também barrocos – Igor Stravinsky e Vaslav Nijinsky – constituía ao tempo (não constitui ainda?) o ápex do deleite com que qualquer republicano adora, apertando o nariz, passear-se por entre a cafraria distribuindo juras de igualdade. Filistina e obesa, a República morde sempre o isco: estrebuchando contra o atrevido desconchavo rítmico, contra as ousadas e descabeladas dissonâncias, escaparam-lhe contudo os silêncios de A Sagração, aquelas fendas por onde Stravinsky e Nijinsky chamaram a si a responsabilidade de um nome puro e limpo, de uma linguagem para aquela ‘coisa nova’; as mesmas fendas por onde a espaços se ouve, juro-vos que se ouve, a destemida convivência com um verso a envolver-nos num abraço que descobrimos mais antigo do que aquele antigo amor cujos ritmos fluem e refluem sobre as devastadas margens do esquecimento.

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Em 2004, Sir Simon Rattle e a Filarmónica de Berlim pensaram levar à cena A Sagração da Primavera de Stravinsky – esse ritual sincopado e pagão em que uma virgem, dançando até à exaustão, é sacrificada para garantir o fim do Inverno e boas colheitas para a tribo – pedindo a Royston Maldoom que concebesse uma coreografia para o espectáculo. Para dar corpo às primícias tribais da marginalidade modernista, o coreógrafo escarafunchou as fétidas franjas da Berlim contemporânea – bisnetos ensebados da antiga nostalgia otomana; tumores enquistados em úteros distraídos e arrojados à rua por desfastio; imigrantes cantinfleiros e gordurosos, emparedados na sua própria língua; arlequins a braços com um corpo recém-adquirido; rostos em iminente ruína sobre nomes impronunciáveis, lollipops, acne e tabaco; apetites bucólicos em horizontes industriais; donzelas esquálidas que mijam no Spree; desastrosos desejos de plenitude – e escolheu, de entre essa prodigiosa fauna, 250 jovens para com eles redescobrir o que Nijinsky chamava “a violência de ter um corpo”, ao som da mais feérica, estridente, visceral, desconjuntada – e, por isso, adolescente – música que Stravinsky escreveu.

O que se seguiu não cedeu nunca à tentação realista e positivista de presumir que a arte é a bem-aventurança da polis em cujos úberes se nutre o cidadão e de que não há, fora dela, qualquer salvação – as vidas de muitos daqueles miúdos continuariam, após os ensaios, tão miseráveis quanto sempre tinham sido, não por némesis social, como hipocritamente pretende o socialismo lacrimejante, mas porque muitos deles tinham há já muito sido deserdados da possibilidade do deslumbramento. Rhythm is It! – extraordinário título do documentário que regista os ensaios e a estreia – é tão-só a testemunha de um acto de compaixão pelo frágil delírio da nossa tão terna humanidade; da acutilante pungência de sós não caminharmos para lado nenhum, de este ser o nosso destino e redenção; de, debaixo da rotina e da repetição, palpitar um sentido e um reino; de não sermos apenas animais acossados pela necessidade ou pelo instinto; de, no curto espaço da partilha e da criação, sermos inclusivamente dignos de nos merecer; de, apesar das vidraças embaciadas e das memórias destroçadas que carregamos para onde quer que olhemos, partilharmos a responsabilidade de não prescindir nunca da beleza…

No mesmo dia em que estreava essa fabulosa coreografia de A Sagração da Primavera, suscitando um dos mais amplos debates acerca do papel da educação e do estado social na Alemanha contemporânea, por cá jogava-se, com escolta e charanga, a final do Euro 2004, ao som, em loop bolçado, de um postiço e provinciano esplendor de Portugal agitado em melancólicas bandeirinhas made in China com o escudo ao contrário.

Nesse mesmo dia, descia à terra, “de funda e devorada solidão”, o corpo de Sophia de Mello Breyner Andresen.

Portugal perdeu.