Durante a administração do presidente Trump, pode dizer-se que os EUA estiveram “de férias” da sua posição de liderança da ordem internacional, estabelecida após a Segunda Guerra Mundial. Ficou, além disso, indiscutivelmente claro, que não só tiraram férias, como também sabotaram os mecanismos dessa mesma ordem.
Os Estados Unidos estão finalmente de volta, graças, em grande medida, às incursões do senhor Putin na Ucrânia. Contudo, uma China em ascensão constitui uma ameaça muito maior do que uma Rússia em declínio. A guerra que neste momento decorre na Ucrânia representa para os EUA um desvio indesejável de recursos e de mão-de-obra que poderia ter sido evitado. Mas, nem tudo são más notícias. A 24 de Fevereiro, os europeus acordaram finalmente da sua dormência pós-Segunda Guerra Mundial e estão, por fim, empenhados em aumentar o seu investimento na defesa, exactamente o que os EUA têm vindo a pedir desde a presidência de Obama e desde a sua viragem para a Ásia.
Não é possível solucionar rapidamente o que Trump desfez e o presidente Biden irá decerto enfrentar alguma oposição interna face a uma política externa mais agressiva dos EUA. No entanto, a proposta de orçamento que recentemente anunciou e que solicita 813.3 biliões de US dólares para despesas com segurança nacional – um aumento de 4% em relação a 2021 – reflecte claramente as crescentes preocupações da administração com a sua segurança externa. Biden pretendeu enviar uma mensagem clara ao apresentar este orçamento, pois, nas suas palavras: “Os orçamentos são declarações de valores”.
A opinião pública global ficou capturada pelos apelos do presidente Zelensky ao mundo livre, chocada com os acontecimentos e a fascinada com coragem demonstradas pela população ucraniana, que da noite para o dia viu as suas vidas viradas do avesso e o seu país ser paulatinamente saqueado pelo desejo de Putin de voltar atrás no tempo. Todavia, e como a história tem provado repetidas vezes, a identificação popular para com o povo ucraniano não será infinita, especialmente quando os custos económicos de uma guerra prolongada sentir-se-ão cada vez mais no Ocidente. A generosidade tende a esgotar-se quando afecta o bolso das pessoas.
Washington também está ciente de que o seu maior rival não é uma Rússia enfraquecida, mas uma China em ascensão. A América não pode dar-se ao luxo de desviar os olhos do jogo. A próxima década poderá ser decisiva para a definição de qual a potência que dominará o futuro. O mundo pode estar a encaminhar-se para uma batalha épica entre os EUA e a China, uma batalha que fará com que os anos da Guerra Fria pareçam brincadeiras de criança.
Logo após a tomada de posse de Biden, Chen Yixin, secretário-geral da Comissão Central de Assuntos Políticos e Jurídicos do Partido Comunista Chinês, e conselheiro próximo do presidente Xi Jinping, afirmou que “a ascensão do Oriente e o declínio do Ocidente tornaram-se tendência (global) e as mudanças do cenário internacional estão a nosso favor.” Ora, isto ecoa a visão da maioria do establishment da política externa da China. O tempo está do lado deles e a China é bem conhecida pela sua paciência.
Olhando para a América dos dias de hoje, podemos dizer objetivamente que as coisas não parecem estar a correr-lhe muito bem. A apressada retirada do Afeganistão e a efetiva entrega do país aos Talibans foi, no mínimo, desastrosa e não constituiu de forma alguma um bom presságio para o compromisso dos Estados Unidos para com os seus aliados. Internamente, a recusa de Trump em aceitar os resultados das eleições, a polarização do sistema político e as guerras culturais que têm vindo a ser travadas por questões raciais e de género têm vindo a fazer com que algumas potências acreditem que a América está em decadência. Por outro lado, desigualdades económicas gritantes e falta de oportunidades têm vindo a deixar muitos americanos descontentes. No mínimo, era com isto que Putin contava.
E os problemas não acabam por aqui. O governo de Biden enfrenta intensas restrições de orçamento, bem como grande pressão interna de algumas facções do seu próprio partido para que proceda a uma redução da despesa com a defesa e para que, ao invés, invista no desenvolvimento de programas de assistência social. Para que a estratégia de Biden seja encarada como um contrabalanço credível para Pequim, será necessário que ele mantenha o curso dos gastos cumulativos com a defesa e até, se possível, que redireccione alguns dos recursos militares da Europa para o Indo-Pacífico. Neste aspeto o Putin foi uma ajuda valiosa: contribuiu para algo que nem mesmo os presidentes Obama e Trump conseguiram alcançar – a união dos países europeus e o reforço dos seus orçamentos para a defesa.
O discurso do presidente Biden na semana passada na Polónia deixou bem claro que o mundo mudou e Biden não se referia apenas à guerra russo-ucraniana. Para o presidente americano, o mundo mudou no dia 24 de Fevereiro e continuará diferente por muito tempo, mesmo depois das últimas armas serem disparadas na Ucrânia. A guerra travada na Ucrânia, de acordo com Biden, é um sintoma de uma guerra muito mais global, uma guerra que opõe as nações que priorizam a liberdade às que são regidas por regimes autocráticos – “a escuridão que ilumina a autocracia não se compara à chama que incendeia a liberdade e as pessoas que, em toda a parte, vivem para respirar em liberdade”.
A guerra continuará para além do fim da guerra na Ucrânia. Trata-se de uma guerra de maiores proporções, uma guerra em que as democracias são chamadas a combater as autocracias, onde o estado de direito tem a obrigação de se defender da força bruta. A América vê-se, de novo e sempre se posicionou, pelo menos em teoria, na vanguarda dos defensores da democracia e da liberdade. Voltou a ser a proverbial “cidade brilhante sobre a colina” actuando como o “farol da esperança” para o mundo, aquele que poderá e deverá guiar as outras nações na direcção moral certa.
Poder-se-ia pensar que, depois dos desastres do Iraque e do Afeganistão, esses dias tinham acabado. Mas não. A Rússia trouxe-os de volta e bem, e ainda ajudou a passar a mensagem de que, no sistema internacional anárquico, onde não existe uma singular autoridade superior, “might often makes right”. Exactamente aquilo de que os americanos precisavam para galvanizar as democracias em todo o mundo.
E tudo isto aconteceu em boa hora. A democracia estava a ficar fora de moda. O que foi em tempos aclamado como “O Fim da História”, quando a União Soviética entrou em colapso e deixou os EUA como única superpotência do mundo, veio a provar-se errado nas últimas duas décadas, denotando que a história tem mais tendência para a continuidade do que se imaginava. Segundo a Economist Intelligence Unit (EIU), apenas 6,5% da população mundial vive em “democracias plenas”. A maioria das pessoas, quase 55%, vive em regimes híbridos ou autoritários.
As grandes potências criaram sempre grandes narrativas. Nos EUA temos tido a narrativa do “Sonho Americano”, agora a China apresenta o “Sonho Chinês”. Mas, por detrás destas grandes narrativas esconde-se a competição feroz pelo poder e pelo domínio. A política internacional é um negócio desagradável e perigoso, e não há boa vontade suficiente para amortecer a intensa competição pela segurança que se instala quando surge em cena uma potência com aspirações hegemónicas.
A China pretende ser o poder dominante na Ásia, assim como os EUA sempre procuraram ter, e mantiveram, o domínio no hemisfério ocidental. Os EUA entraram na Primeira Guerra Mundial em Abril de 1917, quando parecia que a Alemanha Imperial iria vencer a guerra e governar a Europa. No início da década de 1940, o presidente Franklin Roosevelt fez um grande esforço para afastar os EUA do seu esplendoroso isolacionismo e arrastá-lo para a Segunda Guerra Mundial e assim frustrar as ambições do Japão na Ásia e as ambições da Alemanha Nazi na Europa. Depois de 1945, os políticos norte-americanos garantiram que ambos os países permaneceriam militarmente fracos. Por fim, durante a Guerra Fria, era a OTAN, liderada pelos americanos, que tinha em mãos o dever de frustrar as ambições soviéticas de dominar a Europa.
As grandes potências não gostam de concorrentes. Isto coloca a sua segurança em risco e, num mundo de anarquia, as preocupações de segurança superam todas as outras. Alguns analistas argumentam que tudo isto é pura paranóia. Os gastos militares dos EUA são ainda quase quatro vezes maiores que os da China, e a China possui apenas um base militar no exterior, em Djibuti (se ignorarmos as bases que tem vindo a construir no Mar da China Meridional). No entanto, esta discrepância nos gastos militares não significa que os militares americanos sejam quatro vezes mais poderosos. A China parece estar mais avançada em certas áreas. Já possui a maior marinha do mundo e tem a fama de ter as maiores forças cibernéticas do globo. Como a guerra na Ucrânia veio mostrar, a era da guerra de tanques tradicional acabou. As forças cibernéticas terão um papel cada vez maior, e a cibernética está intimamente ligada à inteligência artificial, cujo papel nas forças armadas permanece completamente desregulado. Aliás, o próprio Putin disse, há algum tempo, uma frase que ficou famosa: “quem vencer essa competição (inteligência artificial) governa o mundo”. Para nossa sorte e dos ucranianos, ele decidiu não enfrentar este repto.
Alguns analistas das relações internacionais mais optimistas defendem uma coexistência entre as duas grandes potências. Para evitar um conflito, a América poderia e deveria adaptar-se a uma China em ascensão. Por um lado, ambas precisam uma da outra para enfrentar questões como a das mudanças climáticas, da proliferação nuclear, da regulamentação da utilização de inteligência artificial em aplicações militares, da estabilidade financeira e pandemias globais.
Esta adaptação não significa o fim duma forte competição. Muito pelo contrário, significa que os poderes aprendem a coexistir uns com os outros, cooperando quando necessário e competindo noutras ocasiões. Para evitar uma guerra, as duas potências deveriam estabelecer limites rígidos para as suas preocupações e condutas de segurança nacional – linhas vermelhas que não poderiam ser atravessadas em momento algum – fomentando, ao mesmo tempo, uma plena competição nas áreas diplomática, económica e ideológica.
Washington deverá aceitar que a sua supremacia militar na Ásia já não é exequível; Pequim deverá aceitar que os EUA continuarão a ser uma potência residente no seu próprio quintal e que continuarão a assegurar a livre circulação marítima e manter uma rede de alianças com as outras potências da região que também temem a ascensão da China. Taiwan e o Mar da China Meridional serão, provavelmente, os desafios mais significativos. A China nunca escondeu as suas intenções em relação a Taiwan. Nesta visão mais optimista do futuro, as duas grandes potências poderiam teoricamente fazer um acordo tácito para não alterar, unilateralmente, o status quo e depois da guerra na Ucrânia, a China poderá estar menos inclinada para o fazer. Pequim também não tem grande pressa para o fazer. Com a crescente interligação económica e cultural entre Taiwan e a China, a reunificação pode até acontecer duma forma natural daqui a umas décadas. Pequim vai ter que parar de “reivindicar” e militarizar mais ilhas no Mar da China Meridional e respeitar a liberdade de circulação marítima e aérea sem levantar objecções.
Quer os EUA, quer a China, estão neste momento a tentar encontrar a fórmula perfeita para a gestão do seu relacionamento. Aconteça o que acontecer, enveredem por conflito ou por adaptação, a questão é que, para manter a paz e garantir a sua própria segurança, os EUA precisam de estar activamente envolvidos nos assuntos mundiais. Ser activo globalmente é o novo nacionalismo. Biden já percebeu isto e já começou lentamente a orientar o seu partido nessa direcção.
As previsões para o futuro estão sempre pejadas de imprecisões. Esperemos que os Estados Unidos encontrem uma forma de acolher este poder em ascensão e de evitar um conflito. Isso seria desastroso para todos nós. No entanto, uma coisa é certa: a América está de volta e todos devemos dar graças por isso. De todos os impérios que temos assistido na história, América tem sido o menos maligno.