Quantas páginas de História poderá virar Hillary Clinton? A mulher que, entre outras causas, defende os direitos das mulheres pode ser a próxima (e a primeira) Presidente dos EUA. E quantas barreiras têm ainda que ser derrubadas na política portuguesa? O género pode ser tudo, mas pode não ser nada — neste ponto concordaram as cinco políticas portuguesas ouvidas pelo Observador.

Foram as “capacidades intelectuais e políticas” que trouxeram Hillary para o seio da política. “É um ato de coragem”, elogia a presidente do Parlamento, Assunção Esteves. É assim que deve ser — “pelo mérito”, considera Teresa Caeiro (CDS), vice-presidente da Assembleia da República. Maria de Belém (PS) não se surpreende com o anúncio de Hillary. “Mesmo durante o período em que o marido (Bill Clinton) era Presidente, ela foi sempre ativista pelos direitos humanos e das mulheres, que são também direitos humanos”, realça.

A mulher que Isabel Moreira (PS) quer na presidência tem de “incorporar em si o peso histórico dos direitos das mulheres”. Portanto, “se tiver uma visão anti-Estado Social ou anti-direitos reprodutivos, não interessa”, salienta a deputada socialista. Mariana Mortágua (BE) subscreve e dá mesmo um exemplo: Angela Merkel. “Não é por Merkel ser mulher que deixa de fazer políticas de austeridade que afetam em particular as mulheres”, refere a deputada do Bloco de Esquerda. Aponta a “jornada de trabalho que têm” e”a retirada de benefícios do Estado Social que prejudica mais as mulheres”.

Se uma mulher ganhar as eleições, é um facto histórico. Tal como foi histórico ganhar um negro. (Isabel Moreira – deputada do PS)

Assunção Esteves é também ela uma precursora. A primeira mulher a ocupar o segundo cargo na hierarquia do Estado prefere apelidar a atitude de Hillary de “ato de coragem”. Um ato que “afirma otimismo, entrega, confiança nas próprias forças”. A presidente da Assembleia da República diz que a candidatura à chefia dos EUA demonstra também ambição, mas “a ambição é ainda um modo de crença no mundo”.

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Porque é que nunca houve uma Presidente?

A Presidência da República foi sempre deles. A chefia do Governo foi apenas uma vez de uma mulher, entre julho de 1979 e janeiro de 1980. Maria de Lourdes Pintassilgo foi indigitada pelo então Presidente da República, Ramalho Eanes, para ser primeira-ministra — ou seja, não foi a votos. Candidatou-se depois à Presidência da República, mas não foi escolhida para ocupar o cargo.

As mulheres só tiveram direito de voto há 40 anos. Tem havido uma grande evolução, mas ainda há um caminho a percorrer. (Teresa Caeiro)

“Ainda não há uma interiorização por parte das mulheres que podem avançar como os homens. Sentem que, se avançassem, não teriam tanta aceitação como se fossem homens”, analisa Isabel Moreira. “Quando as pessoas atiram nomes, é muito raro atirarem nomes de mulheres”. Mas a resistência à liderança feminina vem dos partidos ou da sociedade? “Os partidos são o reflexo da sociedade”, sintetiza.

Mónica Ferro, coordenadora do Grupo Parlamentar Português sobre População e Desenvolvimento, vai mais longe. A inexistência de uma mulher à frente da chefia do país deve-se ao “processo de maturidade política, quer dentro dos partidos quer das nossas opiniões públicas”.

“Os nossos jovens e as nossas jovens cresceram com homens na presidência, não com mulheres”, exemplifica Mónica Ferro (PSD).

Mas elas estão no Parlamento. Maria de Belém, ex-presidente do PS, fala em “progressos notáveis” com a aprovação de uma lei bastante batalhada por si: a Lei da Paridade. Aprovada em 2006, estabelece que as listas para a Assembleia da República, para o Parlamento Europeu e para as autarquias locais sejam compostas no mínimo por 33% de mulheres — ou seja, um terço da lista. Isabel Moreira é “uma filha da quota”, diz a própria. Mas não desdenha o título. “As quotas existem para que as mulheres competentes não sejam discriminadas”.

Hoje, em 13 ministérios, há quatro que são liderados por mulheres. Assunção Cristas é ministra da Agricultura, Anabela Rodrigues é ministra da Administração Interna, Paula Teixeira da Cruz é ministra da Justiça e Maria Luís Albuquerque é ministra das Finanças.

“Os horários (da vida política) são de uma enorme agressividade para a mulher”, refere Maria de Belém (PS).

O género como fator na atribuição de pastas é coisa do passado, lembra Mónica Ferro. “Havia aquela expetativa de as mulheres falarem de Cultura, de Educação, da Segurança Social. Os homens estavam mais ligados a questões mais políticas, de Defesa e de Segurança, por exemplo”. Hoje, 15 de abril, a realidade é diferente. “Hoje temos uma secretária de Estado da Defesa (Berta Cabral), por exemplo”. Resultado? “Isso contribui para criar imagens inspiradoras para as meninas e mulheres. Normaliza a presença das mulheres e cria uma imagem de que não há pastas para homens e pastas para mulheres, há pastas para pessoas competentes”.

Mas elas são diferentes deles?

Das cinco mulheres, cinco dizem que sim. Em quê? Nas responsabilidades que têm fora dali e na forma como a vida política está organizada. Falam dos horários de trabalho que se estendem, das reuniões partidárias à noite, dos fins de semana preenchidos em deslocações — tudo parte da vida política. Mas algumas deputadas, ministras ou secretárias de Estado são também mães e é essa gestão familiar que ainda recai um pouco mais sobre a mulher.

E na forma de fazer política, são diferentes? Sim. “Estão mais predispostas para o diálogo, para fazer a ponte. Para uma mulher é muito mais fácil procurar um consenso e recuar na sua posição. Ela foca-se mais no objetivo do que no percurso”, considera Teresa Caeiro. “As mulheres têm mais vontade de fazer coisas práticas, perdem-se menos”, aponta Maria de Belém.

“Esperam-se comportamentos da mulher e exigem-se coisas que não se exigem aos homens”. Mariana Mortágua, a jovem deputada do BE, diz notar “no confronto com ministros ou secretários de Estado certos resquícios de sexismo, uma atitude de paternalismo e condescendência” — algo que se estende à sociedade, diz. “Encara-se o confronto com a mulher com alguma leveza”, sintetiza.

E do lado do discurso que as mulheres assumem, como é? Isabel Moreira identifica dois tipos de mulheres. Há as que “se esforçam por quebrar os estereótipos” e as “barreiras de género” e que se “impõem”, e depois há aquelas que “para fazer um discurso num mundo de homens como que se submetem a uma ideia de mulher suave, que fala baixo, um modelo que é construído para agradar à maioria da Assembleia que é masculina”, explica. Isabel é a primeira mulher.

Se eu tiver uma postura agressiva, vou ser chamada de histérica. Mas se for um camarada meu, é assertivo. Perdoa-se menos um lapso às mulheres do que aos homens. (Isabel Moreira – PS)

Isabel Moreira, 39 anos, dá um exemplo. “Sei que ninguém me levaria a sério se me candidatasse à Presidência primeiro porque sou mulher, depois faltam-me cabelos brancos, sou conotada por defender algumas causas (Isabel está ligada à causa LGBT) e talvez vejam em mim alguma excentricidade. Mas em bom rigor, em termos práticos, era impossível”. Ou seja, Isabel reúne a principal condição para ser Presidente da República — ter mais de 35 anos. É jurista, conta com 11 anos de docência na área do Direito, tem experiência parlamentar. Mas talvez não reúna as condições do “politicamente correto”, sintetiza a própria. Daqui a 10 anos talvez as coisas sejam diferentes, reflete. Essa mudança começa agora — palavra de Assunção Esteves: “De certo modo, Hillary, com o seu gesto, afirma (que este é) o tempo das mulheres”.