Chamar “chicha” à carne ou “ti-ti” à tia? Quando muito até aos dois anos de idade. A partir daí, as crianças devem chamar os objetos e as pessoas pelos devidos nomes, defendeu ao Observador Marisa Lousada, terapeuta da fala e professora da Escola Superior de Saúde, da Universidade de Aveiro, que deixou ainda um recado para os pais e outros “cuidadores”: devem infantilizar menos a linguagem quando falam com as crianças.

“De facto há cuidadores que tendem a infantilizar demasiado a linguagem dos filhos. É tudo té-té, ti-ti, tó-tó, chicha em vez de carne. Até ao ano e meio tolera-se, mas no caso de uma criança com dois anos devemos falar com ela com linguagem simples e termos corretos”, aconselhou Marisa Lousada.

E quando as crianças insistem, por exemplo, em chamar “nana” à banana? Aí, e quando não há problemas de linguagem, os terapeutas da fala aconselham os pais “a fazer de conta que não perceberam“, exigindo desta forma um pouco mais aos filhos.

Antes mesmo do primeiro ano de idade, quem cuida da criança – sejam pais, avós, ou outros familiares ou educadores -, deve ir chamando a atenção para o nome dos objetos. E isso pode ser feito de diferentes formas: brincando, cantando, rindo, lendo histórias muito simples, reproduzindo os sons dos animais.

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Mas como é que tudo isto resiste à falta de tempo que, cada vez mais, as famílias alegam para justificar a menor atenção que dão à educação dos filhos? O truque é “aproveitar os momentos do dia-a-dia como o dar o banho para ensinar as partes do corpo, a altura de vestir para ensinar o nome das peças de roupa, a do almoço para dizer e repetir os nomes dos alimentos”, sugeriu a docente da Universidade de Aveiro.

Não dizer uma palavra aos dois anos é motivo de preocupação

A grande dúvida com a qual os pais se colocam é: afinal quando é que é suposto o meu filho começar a falar? E se é certo que as crianças têm ritmos diferentes, não é menos verdade que existem marcos típicos de desenvolvimento, que a terapeuta da fala Marisa Lousada sintetiza da seguinte forma:

  • Por volta dos 12 meses as crianças começam a produzir as primeiras palavras – nomes de familiares, animais de estimação, brinquedos – soltas e mal articuladas;
  • Até aos dois anos vão começando a juntar duas palavras, com um sentido de frase, que podem também ainda ser mal articuladas;
  • Até aos três anos devem construir frases simples e depois mais complexas, com alguns erros, sobretudo quando se tratam de situações mais irregulares;
  • Aos quatro anos, as crianças devem apresentar um discurso compreensível para qualquer pessoa. Podem ter dificuldades em algumas estruturas silábicas, mas vão conseguir produzir a maior parte dos sons

E de acordo com estes estadios, se aos dois anos e meio a criança “não produz palavras deve ser um sinal de alerta”, alerta Marisa Lousada, acrescentando que “os rapazes são menos precoces do que as meninas em termos de linguagem”. Preocupações devem também surgir quando uma criança com quatro anos não se faz entender por um desconhecido.

“Às vezes os pais habituam-se e facilitam a linguagem menos correta. Agora, se eu não entendo uma criança com quatro anos isso é indicativo de que de facto a criança deve fazer uma avaliação terapêutica”, acrescentou a terapeuta da fala.

Segundo a informação disponibilizada no site da Sociedade Portuguesa de Neuropediatria, “as alterações da fala e da linguagem são as perturbações do desenvolvimento mais frequentes nas crianças em idade pré-escolar”. O atraso ou perturbação da linguagem atingem cerca de 5% a 10% das crianças nessa faixa etária.

Entre as causas mais frequentes da perturbação da linguagem primária, que resulta num atraso na linguagem, encontram-se o défice de audição, o atraso de desenvolvimento, a prematuridade, o autismo e a falta de estimulação. E em cerca de 7% dos casos de perturbação da linguagem a razão é desconhecida, embora alguns estudos apontem para causas genéticas ao nível cerebral, esclareceu a terapeuta.

Desvalorização dos problemas de linguagem

A duração da terapia varia muito consoante a perturbação que a criança tenha mas, garante Marisa Lousada, “há muitas situações em que num ano se corrige a articulação dos sons”. Duas sessões por semana é “o ideal para um tratamento eficaz”, contudo, em Portugal, “a maior parte dos profissionais acompanham as crianças uma vez por semana”, sobretudo por questões financeiras. Cada sessão custa, em média, 30 euros. Aliás, fruto da crise as famílias têm procurado menos estes serviços, garante a especialista.

“Nestes últimos três, quatro anos, tem diminuído a procura, exatamente por este motivo [crise financeira]. O nosso Governo não apostou em abrir concursos em hospitais, centros de saúde e escolas, para a colocação de terapeutas da fala e os pais, obviamente, é que têm de cuidar das necessidades básicas das crianças”, apontou Marisa Lousada.

Mas nem tudo são problemas financeiros. “Há uma grande desvalorização dos problemas da linguagem na idade pré-escolar”, afirmou a terapeuta. “O problema maior é quando essa perturbação se arrasta e, muitas vezes, as crianças só chegam às consultas quando estão a entrar no primeiro ciclo, porque aí surge o problema da leitura e da escrita”, acrescentou Marisa Lousada.

Instrumento permite perceber em cinco minutos se há problemas de linguagem

E precisamente por terem noção de que “muitas crianças acabam por não chegar cedo à terapia da fala”, Marisa Lousada e outras duas investigadoras da Universidade de Aveiro (Rita Valente) e do Instituto Politécnico de Setúbal (Ana Mendes ), desenvolveram o RALF — Rastreio de Linguagem e Fala.

O RALF é o primeiro instrumento preparado a pensar em crianças que tenham o português-europeu como língua materna e que permite que, “em mais ou menos cinco minutos”, profissionais de saúde e de educação identifiquem se as crianças entre os 3 anos e os seis anos têm ou não adquiridas as competências de linguagem e fala típicas para a respetiva idade.

Esta ferramenta, desenvolvida com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, contempla três faixas etárias – até aos 4 anos, até aos 5 anos e até aos 6 anos – e contém perguntas adaptadas a cada idade, que permitem aferir das capacidades de fala, linguagem ou metalinguagem das crianças em idade pré-escolar. Uma das questões a aplicar a crianças até aos quatro anos, desvendou Marisa Lousada, é se “a criança é capaz de dizer a função dos objetos”.

“Não havia até agora nenhum instrumento específico para a linguagem. Nos centros de saúde têm instrumentos de avaliação mais global que acabam por incluir um ou dois itens de linguagem”, explicou Marisa Lousada.

As investigadoras que desenvolveram o RALF, lançado esta semana, já enviaram um documento à Direção-Geral de Saúde (DGS) porque a “grande meta era que uma criança aos quatro ou aos cinco anos pudesse fazer um rastreio de linguagem no centro de saúde”, frisou a docente da Universidade de Aveiro, adiantando que já recebeu contactos de hospitais e terapeutas da fala.