Título: Um postal de Detroit
Autor: João Ricardo Pedro
Editora: D. Quixote
Páginas: 223

JRP

A maior perversão da arte moderna está, provavelmente, no mau uso da vulgaridade. A ideia de que o quotidiano e o banal também podem ser belos, de que tanto nos pode entrar no coração uma faca de serviço como um gládio romano, de que a alcandorar a glória de Napoleão se amontoam milhares de carcaças de uma anónima bravura, de que o sentimento não afina apenas em toadas épicas mas também com buzinas de automóveis; a ideia de que para cada Catão, exibindo com desenvoltura as leis na praça pública, há centenas de burocratas enclausurados em gabinetes à cata de minudências legais, esta ideia, de tomar para a massa as honras do individual e para os anónimos as belezas dos heróis, é importante. São importantes os Baudelaires e as tísicas de Cesário, as subtilezas microscópicas capazes de vislumbrar um realço de beleza sob as mãos sujas do operariado, ou de perfurar a dura carapaça de um solo árido até que jorre dele um filão de elegâncias literárias.

São importantes estes pescadores de lodo, marinheiros de água suja, porque encontram a beleza em lugares imprevisíveis; não porque, como vemos em tantos escritores hodiernos, encontrem a lama onde sabemos que ela está. Entenda-se: a habilidade de Cesário Verde não passa por revestir o vulgar de linguagem épica, como se abafasse as suas frágeis costureiras sob peles de Astrakhan; mas passa menos ainda por revelas as golfadas de sangue que escondem atrás os lenços, ou em destapar-lhes os buracos que os peitos lhes cobrem. Que os doentes são doentes, que os pobres são pobres e que os feios são feios, não precisamos da arte para o saber. Agora, que os doentes podem vicejar a poesia, que os pobres enriquecem a literatura e que os feios embelezam a arte, já só um grande artista consegue fazer crer.

A boa arte moderna não se afastou dos grandes temas, afastou-se apenas das grandes pessoas. A má arte moderna não buscou apenas os pequenos; apequenou-se e não trata nem de grandes Homens, nem de grandes sentimentos. A escrita de hoje, temerosa dos anelos românticos, quer dar relatos crus, betão matéria solidez, sem névoas metafísicos ou temperos sentimentais. No mais das vezes, pára o coração para evitar o lirismo romântico, adormece o cérebro com medo do pretensiosismo, e acaba por extrair do vulgar aquilo que de mais vulgar ele encerra.

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No caso de João Ricardo Pedro, dá-se algo com muito mais interesse. É que João Ricardo Pedro escreve desta forma substantivada, activa, sem intervalos filosóficos, mas as suas enumerações visuais estão carregadas de sentimento.

Não usa as grandes questões humanas para falar do vulgar, mas o vulgar para falar das grandes questões. Tem alguns vícios de linguagem: o adjectivo pende sempre para a rectaguarda do substantivo, à inglesa (vicioso costume, irritante mania ou irrelevante questão, nunca questão irrelevante), e as enumerações, embora bem trabalhadas, são por vezes previsíveis. Quando vemos que o narrador é tão exaustivo nas suas descrições, já sabemos que a entrada num comboio implicará a menção de todas as paragens ou de todos os marcos relevantes da paisagem; resulta uma vez, resulta várias vezes, mas não resulta sempre: às tantas, já conseguimos dispensar o narrador para criar o estilo dele. Estes delitos, no entanto, não são suficientes para manchar algumas páginas de um encanto excepcional. O exibicionismo de algumas referências não ridiculariza a erudição popular de outras, a extensão de algumas enumerações não enfastia a cadência melodiosa de outras, e os lugares comuns numa ou outra descrição (a senhora enjoada de Cascais, por exemplo) são pecadilhos que não desvirtuam o poder evocativo de tantas outras.

O poder de João Ricardo Pedro está nesta forma como consegue, ao mesmo tempo, caracterizar uma cena numa topografia rigorosa e, ao mesmo tempo, enlevar-nos sem que nunca nos sintamos no ar. Não será, certamente, a delícia de um purista linguístico, mas também não será o primeiro dos arrenegos: o vocabulário é razoável e, sobretudo, escorreito; a prosa, embora dada a experimentalismo, é sólida.

João Ricardo Pedro é verdadeiramente um prosador talentoso: embora vejamos constantemente as costuras do estilo, vemo-las mais por o autor rebentar com elas do que por desleixo de alfaiate.

As repetições de parágrafos são interessantes e oportunas, dão, por exemplo, ideia do trabalho regular da criada, a decoração dos lugares é completa mas por vezes cansativa. João Ricardo Pedro é, ao mesmo tempo, um escritor com potência e em potência: vemos a dimensão da sua força no espolinhar que acerta em várias tradições e técnicas narrativas, e o potencial na forma como titubeia entre umas e outras, com habilidade mas nem sempre com controlo. Tem – já que o autor gosta de futebol – o drible de Quaresma, o gosto de se enfiar nas situações difíceis, nas narrativas intrincadas, e o talento para se desfazer delas. Complica, baralha, mistura planos temporais, leitores e narradores, e mostra talento estilístico para enfileirar até as mais escusadas saídas dos eixos.

Apeadeiros do submundo

O autor consegue, por vezes, páginas notáveis. A relação do desaparecimento de Marta, entre índios e cowboys, é fortíssima. A inocência da criança, o banho de realidade em que a brincadeira nos mergulha, a mistura entre os acontecimentos e a imaginação, as hesitações maternas… tudo isto narrado de uma forma quase infantil, uma criança que, sem o saber, revela o desaparecimento da irmã adorada, por entre confronto de fingir. Estas páginas são apanágio de um dos maiores mistérios e delícias da literatura: a arte da sugestão, de fazer perceber uma coisa escrevendo outra. João Ricardo Pedro é bom nela, na captação das subtilezas da língua, embora por vezes inseguro da sua capacidade – a descrição do “mastro” do marinheiro, por exemplo, que se desdobra em sentidos sem entrar na vulgaridade, não precisava de insistência na linguagem naval pela parte da (pouco ortodoxa) enfermeira.

Prémio Leya 2011

João Ricardo Pedro tem, já o dissemos, um verdadeiro talento para a escrita. Só isso, parece-nos, mantém vivo um romance que de outra forma estaria demasiado enodado nas relações pouco seguras e confusas entre as personagens. A história parte de duas más partidas: de dois comboios que saem quando não devem da estação, colidem e provocam uma catadupa de mortos e destroços. Do comboio que seguia para Paris, resgata-se uma mochila – de Marta – que devia estar repoltreada nas planícies alentejanas e não num comboio a caminho da capital francesa.

Parece, assim, que começará um labor detectivesco para descobrir que fazia a mochila – e a desaparecida dona – sobre os carris internacionais. Isto, no entanto, acaba por ser matéria de somenos: o narrador está mais interessado em recriar o quotidiano paralelo de Marta, que rebuça várias apeadeiros do submundo – de assassinos a lupanares – sob a aparência de uma cândida menina. São-nos mostrados uma série de desenhos aparentemente desconexos, que o romance se encarrega de ir ligando. As ligações, no entanto, nunca convencem completamente. Ou se perpetra um romance nas barbas da família, sem que se aventem os seus contornos, ou um súbito fascínio leva uma rapariga à perseguição de uma prostituta, ou as explicações dos laços de familiaridade são dados por um repente de omnisciência de alguma das personagens.

Parte (se não mesmo tudo) desta confusão será propositada. O narrador é doente mental, a raiar a esquizofrenia e a perversão afectiva por todos os lados; agir mal de propósito, no entanto, não torna boa a acção. João Ricardo Pedro, até pela condição subjectiva do romance, não terá agido mal, mas não terá agido com uma ambição à medida do seu talento. É moda, no romance moderno, inventar uma personagem forte para o narrador. Todo o tipo de psicóticos, malucos, psicopatas ou simples canalhas gosta de carpir as mágoas dos seus defeitos nas páginas de um romance.

Os autores, escrupulosos, dão à narrativa o carácter do narrador. Descrições licenciosas se o narrador é um lúbrico Dom João, ou linguagem adolescente se quem conta a história é um arremedo de Holden Caulfield.

João Ricardo Pedro vai mais longe: a doença não se nota apenas na linguagem, no marginal, mas na própria teia do enredo. As personagens misturam-se, revelam o que não podem saber, dando assim ideia da confusão mental do narrador. O problema é que esta forma acaba por prejudicar o próprio enredo. As soluções para os mistérios são insatisfatórias e o narrador empece a compreensão. Introduzir um narrador personagem não exime o autor de suportar com mão divina a história. O narrador pode não revelar conscientemente tudo o que quer, mas o leitor tem de perceber de que forma é que a perturbação de quem conta a história está a enquinar a percepção dos acontecimentos. João Ricardo Pedro, apesar de ter capacidade para encontrar este equilíbrio – prova-o nas páginas em que conta o desaparecimento de Marta, por exemplo – escolheu deixar a história nas mãos de um doente sem amparo. Mandou-nos, assim, um postal de Detroit. Insista, que há-de acabar a mandar-nos romances de outra galáxia.

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