“Não há milagres”, mas “tem de haver ordenamento”. A opinião é do geógrafo madeirense Raimundo Quintal, que já foi vereador do Ambiente na Câmara do Funchal. A partir da ilha da Madeira, o investigador explicou ao Observador que “temperaturas acima dos 30ºC, ventos violentos e humidade abaixo dos 30% significam um risco de incêndio alto”, mas as graves consequências deste incêndio devem-se, sobretudo, à falta de planeamento.

“Não aprendemos muito com o 20 de fevereiro de 2010, nem com os fogos que lhe sucederam”, acusa o geógrafo. O temporal que devastou a ilha há seis anos causou perto de meia centena de mortos, e é considerado uma das maiores catástrofes naturais que já atingiram a região. Mas, sublinha o investigador Raimundo Quintal, que dedica muito do seu tempo ao estudo da ilha da Madeira, “os edifícios continuam abandonados no centro histórico do Funchal e as matas estão cheias de pinheiros bravos mortos. Isto é combustível espalhado por aí”, pronto a arder afirma.

Incêndios surgem em zona “terrível” de “risco extraordinário”

O geógrafo explica que “estes fogos nascem sempre numa zona a 400, 600 metros de altitude, numa zona alta da cidade, onde há uma promiscuidade preocupante entre habitação muito densa e mata”. Esta zona representa “um risco extraordinário, de onde partem fogos para a alta montanha, e também para a cidade”, e Raimundo Quintal lamenta que “não se tenha aproveitado o dinheiro da lei de meios [aprovada na sequência do temporal de 20 de fevereiro, para a recuperação da ilha da Madeira] para reordenar esta faixa terrível”.

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Ao contrário do incêndio em 2012, “em que o fogo desceu pela parte oriental, mas depois o vento parou”, neste caso “o vento mantém-se muito forte, e o fogo vai encontrando no seu caminho muito mato seco”. É que estes fogos, informa o investigador, “depois de começarem na zona alta, são impelidos por ventos de nordeste, aproximando-se da cidade”.

“Não temos a cultura da prevenção, deixamos a coisa andar, e depois choramos todos”, considera Raimundo Quintal. O mais grave para o geógrafo é o facto de o fogo ter “chegado de forma violenta à cidade, e ter encontrado edifícios, da Região Autónoma, especialmente um prédio que foi comprado para criar uma cantina para a função pública que está ali abandonado. Um autêntico barril de pólvora”.

“Gastou-se dinheiro em betão, em vez de no ordenamento”

Por isso, “devemos aprender com isto, e praticar o ordenamento”, apela o investigador. “Esta pequenez perante os elementos da Natureza deve levar-nos a uma reflexão profunda, e fazer esquecer vaidades dos governos”. Raimundo Quintal acusa o Governo Regional de ter “gasto o dinheiro da lei de meios em betão, em vez de no ordenamento do território”, e teme que “depois de muito choro, os barões do betão voltem a dominar os trabalhos de recuperação, que não reordena, não melhora a segurança das populações”.

E mesmo em termos políticos parece não haver consensos na região. “Câmara do Funchal e Governo Regional andaram de costas voltadas. Ainda ontem de manhã, estava o presidente da Câmara Municipal e o presidente do Governo Regional a falar, em conferências de imprensa diferentes, ao mesmo tempo”, lembra o geógrafo. E a proteção civil também parece estar com dificuldades em coordenar a atuação: “Ainda ontem eu próprio tive de sair de casa, porque tinha familiares com problemas, e encontrei muita gente a fugir dos incêndios, especialmente na zona da Ribeira de João Gomes e na de Santa Luzia. Até às 4h00 da manhã, não encontrei ninguém da proteção civil a dar apoio àquela gente”, garante Raimundo Quintal.

Agora “o momento é de não ficar pela caridadezinha”, considera o geógrafo. “O primeiro passo é o Governo central reunir com o Governo Regional e com as câmaras”, de modo a criar mecanismos e equipas que possam “trabalhar a sério”, tanto na recuperação dos edifícios como no reordenamento da floresta. E o apelo já chegou ao chefe de Estado. “O senhor Presidente da República veio cá à Madeira no dia 1 de julho, dia da região, e eu e outros investigadores elaborámos uma carta aberta em que descrevíamos o problema da falta de ordenamento do território”. Até agora, nada feito, lamenta.

Raimundo Quintal espera que a caridade dos primeiros tempos — que é necessária — não faça esquecer a necessidade de “continuar a acompanhar as pessoas”. De acordo com o geógrafo, “passados uns meses, esquecem-se os dramas, as depressões e imensos problemas terríveis”.

“Logo a seguir ao 20 de fevereiro, fiz um apelo para que se fizesse uma recuperação, tal como se fez em Angra do Heroísmo depois do grande sismo em 1980”, lembra Raimundo Quintal. “E a Madeira precisa de facto disto”.