Porque é que a Arábia Saudita, e outros, cortaram relações com o Qatar?

Esta segunda-feira, depois de alguma especulação, a Arábia Saudita e outros três países (o Egito, os Emirados Árabes Unidos e o Bahrein) anunciaram a decisão conjunta de cortar as relações diplomáticas com o Qatar. A estes, juntaram-se outros três governos em solidariedade: as Maldivas, o Governo internacionalmente reconhecido do Iémen e a (muito débil e praticamente inexistente) administração da Líbia. Apesar de o leque de países que tomaram esta decisão ser variado, basta um deles para perceber o âmago daquilo que está em causa: a Arábia Saudita.

As razões apontadas para esta tomada de posição são o alegado financiamento do Qatar a grupos terroristas — algo que o Governo de Doha nega insistentemente, embora seja conhecido o seu apoio a grupos como o Hamas e a Irmandade Muçulmana. Segundo a Arábia Saudita, o Qatar está por trás do financiamento do Estado Islâmico — acusação que, curiosamente, também é feita à Arábia Saudita.

Acusações à parte, o grande receio da Arábia Saudita é que o Qatar fuja da sua esfera de influência e se aproxime do seu grande rival na região, o Irão.

O emir do Qatar está mesmo do lado do Irão ou é “fake news”?

No dia 23 de maio, o xeque Tamim bin Hamad Al Thani, emir e líder do Qatar, esteve presente numa cerimónia de graduação militar em Doha. Mais tarde, no mesmo dia, os media do Qatar deram conta de citações do do emir onde este dizia que “não é sábio agir com hostilidade perante o Irão” e que aquele país é “um grande poder para a estabilização da região”. Além disso, referia que o Hamas é o “representante oficial do povo palestiniano”. As citações apareceram na conta de Twitter da QNA, a agência noticiosa estatal do Qatar, e no rodapé da Al-Jazeera. Pouco depois de as afirmações de apoio ao Irão serem tornadas públicas, a Arábia Saudita, o Egito, o Bahrein e os Emirados Árabes Unidos suspenderam as emissões dos media qataris para os seus países.

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No meio deste caso, que já começava a ganhar os contornos de crise, o Governo do Qatar fez saber que os seus media tinham sido alvo de um ataque informático e que aquelas afirmações atribuídas ao emir eram falsas. Estávamos então perante um caso que misturava duas realidades muito em voga no último ano: os ataques cibernéticos vindos do exterior e o fenómeno das fake news, ou notícias falsas. À Al-Jazeera, pessoas que estiveram presentes na cerimónia militar de 23 de maio chegaram a dizer que o emir não tinha sequer falado em público naquele evento.

“Há leis internacionais em vigor contra crimes deste género, em particular os ciberataques. [Os hackers] vão ser processados de acordo com a lei”, disse o ministro dos Negócios Estrangeiros do Qatar, Mohammed bin Addulrahman. Entretanto, a Al Jazeera noticiou que o FBI está a auxiliar o Governo do Qatar a investigar a proveniência do alegado ataque informático contra a QNA.

Quais podem ser as consequências a nível regional? E para o Qatar?

A nível regional, as consequências demorarão a ser sentidas — se é que alguma vez o serão. A partir de um ângulo mais amplo, podemos prever um crescendo das tensões entre os dois maiores pólos de poder no Médio Oriente: a Arábia Saudita e o Irão. Ainda assim, é altamente improvável que estes entrem em conflito direto. Por sua vez, os conflitos por procuração, em que as duas potências se envolvem de forma direta ou indireta em conflitos noutras zonas, não deverão abrandar. É o caso da guerra na Síria, que se arrasta desde 2011, e a guerra civil no Iémen, que começou em 2015.

Quanto aos países que agora fecham as portas ao Qatar e cortam os laços com aquele país — recorde-se, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Bahrein e Egito —, as consequências diretas, entre fronteiras, serão diminutas. Embora seja um potência regional, o Qatar não é, ainda assim, um país com uma dimensão geográfica, económica e militar ao nível da Arábia Saudita ou, sequer, dos Emirados Árabes Unidos. Mesmo sendo provável que o Egito e os Emirados Árabes Unidos sofram pelo facto de, ao contrário do que têm feito até agora, não poderem continuar a importar gás natural do Qatar, as consequências estarão longe de ser catastróficas.

Bem mais graves serão as consequências para o Qatar, que agora está isolado a nível diplomático e geográfico. O Qatar precisa, em grande escala, dos seus vizinhos para sobreviver como tem sobrevivido até agora. A necessidade é, muito mais do que económica, de caráter logístico. Segundo um estudo da Future Directions International datado de 2015, cerca de 90% da comida consumida no Qatar é importada. A dependência é particularmente alta no caso dos legumes (95%), dos cereais (99,5%) e dos óleos alimentares (100%).

Por isso, não é de somenos o facto de a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos e Bahrein terem cortado todo o trafégo terrestre, aéreo e marítimo com o Qatar. O resultado prático é que o Qatar vai ficar, até novos desenvolvimentos, impedido de fazer importações por terra (a única fronteira terrestre que partilha é com a Arábia Saudita) e também, embora não totalmente, vê a sua vida dificultada em matéria de importações pelo ar e por mar. O Qatar tem fronteiras marítimas com três países. Dois, acabam de lhe fechar a porta: o Bahrein e os Emirados Árabes Unidos. O outro, está na génese desta crise: o Irão.

Entretanto, em reação às notícias da manhã desta segunda-feira, começaram a surgir relatos de corridas aos supermercados em Doha, capital do Qatar. Noutras contas, a bolsa do Qatar caiu 7,27% até ao fecho do mercado esta segunda-feira.

Qual é o papel dos EUA de Donald Trump nesta crise?

Embora não seja claro que haja uma relação de causa-efeito entre a visita de Donald Trump à Arábia Saudita e os desenvolvimentos desta segunda-feira, há pelo menos a certeza de que existe uma ordem cronológica de acontecimentos que pode ter ajudado ao escalar de tensões.

A 21 de maio, Donald Trump foi em visita oficial à Arábia Saudita, onde discursou perante vários líderes do mundo árabe. O momento era solene, simbólico e também de afirmação da aliança saudita com os norte-americanos. Depois de uma campanha eleitoral em que falou muito contra o Irão (um inimigo crónico dos EUA) mas também contra a Arábia Saudita, Donald Trump chegou a Riade e escolheu um lado. O saudita, claro.

“Durante décadas, o Irão deitou achas para a fogueira do conflito e do terror sectário. É um Governo que fala abertamente a favor de homicídios em massa, que jura a destruição de Israel, morte aos americanos e a muitos líderes e nações nesta sala”, disse Donald Trump. No decurso da sua visita, o Presidente dos EUA esteve presente na inauguração de um centro de combate ao terrorismo (leia-se, contra o terrorismo xiita, ligado ao Irão e aos seus aliados, como o Hezbollah) e assinou um acordo que estabelece a venda de 110 mil milhões de dólares (mais de 97,6 mil milhões de euros) em armas a Riade.

A 22 de maio, o emir Sheikh Tamim bin Hamad al Thani, líder do Qatar, enviou uma mensagem de parabéns a Hassan Rouhani pela sua reeleição como Presidente do Irão.

A 23 de maio, surgiram as alegadas afirmações do emir do Qatar, que foram noticiadas pela agência estatal qatari, a QNA, onde este era citado a dizer que “não é sábio agir com hostilidade perante o Irão”. A citação apareceu na conta de Twitter da QNA e, durante a sua emissão, pela Al-Jazeera numa nota de rodapé. Nesta altura, a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos e o Bahrein cortavam o sinal de televisões do Qatar, com especial atenção para a Al-Jazeera. Segue-se um comunicado do Governo de Doha, que diz que as afirmações atribuídas ao emir são falsas e que a a agência de notícias estatal foi alvo de um ataque informático de proveniência “desconhecida”.

Depois disso, seguiram-se dias de várias missivas de lado a lado, muitas vezes sob a forma de artigos de opinião escritos em jornais internacionais, com projeção mundial. Nestes, o Qatar é sistematicamente acusado de financiar organizações terroristas como o Hamas, a Irmandade Muçulmana e também o Estado Islâmico. Além disso, muito provavelmente, estes dias regem-se por jogos de bastidores para já desconhecidos.

Enfim, na manhã de 5 de junho, o Qatar acorda com o corte de relações diplomáticas por parte de três dos seus parceiros do Conselho de Cooperação do Golfo e do Egito.

Estarão os EUA ligados a esta movimentação? A resposta não é clara. O facto de os EUA terem uma base militar aérea no Qatar com cerca de 10 mil soldados é, à partida, um motivo para afastar essa hipótese. Para já, a única reação que surge da administração norte-americana é a do Secretário de Estado, Rex Tillerson. “Eu não espero que haja um impacto significativo, ou qualquer impacto, na luta conjunta contra o terrorismo na região ou a nível global”, disse o chefe da diplomacia norte-americana, em Sydney.

Ainda assim, é possível que a Arábia Saudita e os seus aliados regionais tenham visto no apoio de Donald Trump uma luz verde para agirem com mais autoridade dentro da região.

Qual é o contexto em que tudo isto surge?

É uma longa história, com mais de 1400 anos, que está na origem da divisão que ainda hoje assola o Médio Oriente e contribui em grande parte para a instabilidade da região. Após a morte do profeta Maomé, em 632, foram formadas duas correntes do Islão, cada uma com uma interpretação diferente sobre quem deveria ser o seu sucessor. Assim, o Islão ficou dividido em dois: os sunitas e os xiitas.

Atualmente, estas divisões mantêm-se, com a Arábia Saudita a liderar a esfera sunita e o Irão a surgir no topo da estrutura xiita. Ainda assim, é importante sublinhar que as fraturas já passaram muito para lá das fronteiras da religião. Hoje, quando se fala do combate secular entre xiitas e sunitas, a discussão não se cinge apenas a diferentes interpretações do Islão, mas à disputa por poder, território, influência e recursos no Médio Oriente. É, atualmente, uma das maiores questões geopolíticas do Médio Oriente e do mundo. Para saber mais sobre ela, leia este especial do Observador:

Xiitas e sunitas. Catorze séculos da grande divisão do Islão