Na “25ª Hora”, Spike Lee lidava com a ressaca do 11 de Setembro. A dado momento, para homenagear o trabalho dos bombeiros falando de quem sobreviveu, dizia, pela boca da personagem de Brian Cox: “Esta vida esteve tão perto de não acontecer.” Os sobreviventes deviam a vida ao trabalho dos bombeiros. E lembrar isso era tão ou mais importante ainda do que lembrar os mortos. “Esta vida esteve tão perto de não acontecer.” “This life came so close to never happening”.
A vida engana, uma e outra e outra vez. Às vezes, parece incrivelmente forte, como nos Aerosmith, que, praticamente septuagenários, puseram, ainda a noite anterior, este mesmo pavilhão em polvorosa – e imagina-se as vidas que não levaram. A vida, através de Steven Tyler e companhia, parece tremendamente forte, resistente, elástica. Outras vezes, é tão frágil naqueles que perdemos absurdamente de um momento para o outro. Nas pessoas de todas as idades que, num instante, estavam cá, em Pedrógão Grande, e, no outro, já não estavam. E deviam estar. Mas desapareceram por causa de qualquer coisa aparentemente sem sentido, ainda à espera de muitas explicações.
Se a vida não se fizesse forte, como nos Aerosmith, ou nos bombeiros, ou nas centenas de operacionais que trabalharam sem descanso para que, num momento, a Meo Arena tivesse montada a artilharia das super-estrelas norte-americanas e, no outro, o arsenal necessário para receber um mega-concerto de solidariedade de 25-bandas-25 e que, em condições normais, demoraria meses a montar, como lembrou Luísa Sobral, então talvez nós lidássemos com ela como aquilo que é, mercadoria realmente frágil, assunto da maior delicadeza, preciosidade, raridade, maravilha sempre “tão perto de não acontecer”. E então não seríamos tão negligentes, não teríamos políticos tão irresponsáveis, exigiríamos outro país. Um país que talvez tivesse menos submarinos, menos estádios, menos auto-estradas, menos resgates a bancos, menos perdões fiscais, mas que teria aviões de combate aos incêndios. Policiamento das florestas. Sistemas de comunicações que não falhassem horas a fio logo quando não podiam falhar nem um segundo.
Juntos por Todos angariou mais de 1 milhão de euros para as vítimas do fogo de Pedrógão Grande
Fazer a crónica da noite passada é, ao mesmo tempo, muito fácil e muito difícil. Muito fácil porque quase toda a gente assistiu a ela. Para além dos 14 mil que encheram a Meo Arena, adquirindo os bilhetes de 15 a 25 euros cujo somatório de receita revertia totalmente a favor das vítimas dos trágicos incêndios da região centro, deu-se o acontecimento histórico de, pela primeira vez, termos os três canais generalistas de televisão e todas as rádios nacionais e muitas das regionais unidos numa mesma transmissão. Muito difícil precisamente pela mesma razão: porque, afinal, se todos assistimos, que haverá ainda de novo a dizer?
Puxemos o filme atrás. Foram quatro horas de espectáculo. Fátima Lopes, Sílvia Alberto e João Manzarra conduziram o evento para as televisões; António Macedo, Carla Rocha, Vasco Palmeirim e Nilton para as rádios – uma espécie de all-star reunion do entretenimento em Portugal. À partida, a noite estava ganha. A iniciativa da Sons em Trânsito, toda a gente que aqui se juntou, que ofereceu o seu trabalho de graça, toda a união e vontade de ajudar eram já dignas de enorme aplauso, o que quer que acontecesse. O “Juntos por Todos” era – foi – o nosso Live Aid, o nosso One Love Manchester; os incêndios, os ataques terroristas de que fomos vitimas. Por uma vez, não chorávamos através das televisões, mas pelos que caíram ao nosso lado. Os heróis, alguns deles, estavam ali, dispersos pela plateia – alguns bombeiros, alguns sobreviventes das regiões dizimadas. Arrancaram sempre as maiores ovações e os momentos mais arrepiantes da noite. O resto, e não foi pouco, foi a música a oferecer a força que tem para sarar as feridas.
Como em qualquer outro concerto pop, as vozes das adolescentes fizeram aquele fenómeno de, ao juntarem-se, se tornarem audíveis em sistemas solares próximos. Cães levaram aos donos chinelos que, afinal, ninguém pediu. Velhas loiças Ming abriram fissuras irreparáveis. Aconteceu quando Agir subiu ao palco, quando os D.A.M.A. subiram ao palco, quando Diogo Piçarra subiu ao palco. O fado revelou-se estranhamente o género que mais vezes levantou a sala: o “Desfado”, de Ana Moura, “O Senhor Extrarrestre”, por Gisela João, e o “Meu Amor de Longe”, de Raquel Tavares, competiram na alegria – e este último até trouxe um dos bordões da noite: “Chega de tragédias e desgraças / Tudo a tempo passa / Não há nada a perder”. E ainda houve direito ao luxo raro de ter Carlos do Carmo e Camané em dupla, ao serviço de “Por Morrer uma Andorinha”, e a Carminho, acompanhada só por um acordeão, assombrosa, cantando “Meu Amor Marinheiro”.
O formato não permitia improvisos nem grandes enlevos: uma canção por banda ou artista e os apresentadores a fazerem conversa com o convidado para dar tempo aos músicos seguintes de montarem o respectivo acampamento. Os Beatbombers enchiam com brilho os intervalos e toda a gente trabalhava com a velocidade astronómica que conseguiu, apesar de tudo, a proeza de uma noite tão longa e com tantas quebras nunca se chegar realmente a perder. Amor Electro, Áurea, David Fonseca, Luísa Sobral, Miguel Araújo, todos conseguiram bons momentos; João Gil e Luís Represas reeditaram os Trovante para recordar as clássicas “Memórias de um Beijo”; Matias Damásio arrebatou a sala com o fenómeno verdadeiramente louco de “Loucos” (consta que, na TV, até a senhora da linguagem gestual dançou no interior da sua pequena caixa ao canto do ecrã). A caminho da meia-noite, João Manzarra anuncia que se ultrapassou o milhão de euros em donativos só através das chamadas para o 760 200 200 e a Meo Arena irrompe, legitimamente, na maior ovação da noite. Grita-se “Portugal, Portugal, Portugal”.
“Juntos por Todos”: as reações ao concerto (e à piada de Salvador) nas redes sociais
Paulo Gonzo canta “Sei-te de Cor” e Pedro Abrunhosa “Toma Conta de Mim”. As emoções são fortes, o ambiente festivo e orgulhoso, mas os discursos repetem-se, como se nada houvesse mais a dizer. Todos falam do heroísmo dos bombeiros e do orgulho das coisas que conseguimos quando nos unimos. Até muito perto do fim, a única nota ligeiramente dissonante foi trazida por Jorge Palma e Sérgio Godinho, que poderiam facilmente ter escolhido um “A Gente Vai Continuar”, ou outro hino unificador, mas optaram por “Portugal, Portugal” – aquele mesmo que diz: “Enquanto ficares à espera, ninguém te vai ajudar”. Depois, exercem o direito a tocar um segundo tema e partem para “O Primeiro Dia”, momento em que a sala e a noite nos ensinam que as grandes canções, por mais batidas e ouvidas, são sempre recarregadas de sentido pelas circunstâncias. Na conversa até aqui nunca estilhaçada com os apresentadores, Palma levanta, pela primeira vez, um pouco a voz: “Prevenção”. “Prevenção”, repete, “para que isto não aconteça nunca mais”.
Até que, já bem perto do fim do desfile, Rita Redshoes tem o primeiro discurso realmente político da noite. “Isto é muito bonito”, diz, não exactamente por estas palavras, “mas não nos vamos esquecer do porquê de estarmos aqui”. É educada e elegante, mas vem desempenhar um papel que faltava. Parecíamos todos demasiado satisfeitos com a nosso talento para a solidariedade – mas a solidariedade não resolve tudo. “É preciso apurar responsabilidades políticas”, diz Rita, diante de uma sala onde estão o Presidente da República, o Presidente da Assembleia e o primeiro-ministro. “Temos de exigir justiça para estas pessoas”, citamos de cor, “que deviam estar a viver o resto das suas vidas e não estão”. As mortes que nos lembram que devíamos tratar a vida como a coisa frágil que é e não a forte que, por descuido, parece. Esta vida, a nossa, que às vezes passa tão perto de não acontecer.
Rui Veloso vem a seguir, canta o “O Primeiro Beijo” para nos dar mais um bordão: “Muito mais é o que nos une / que aquilo que nos separa”. Depois, porém, na conversa com os apresentadores, reforça o ponto de Rita: estamos cansados de “políticos que passam as culpas de uns para os outros”; o que é preciso é que, “de uma vez por todas, se resolva a questão”.
Faltava apenas um nome da lista e esse nome, quis o destino, já que o alinhamento foi determinado por ordem alfabética e que Sérgio Godinho actuara antes, na vez do “J”, por causa da dupla com Jorge Palma, que esse nome fosse o de Salvador Sobral.
Salvador não desapontou e ofereceu um momento único. Chegou, sentou-se sozinho ao piano e, quando toda a gente esperava o óbvio “Amar pelos Dois”, atirou-se a “A Case of You”. Quando todos pareciam resignados, eis que ele muda a canção a meio e vai para “Amar pelos Dois”. E quando todos estavam finalmente confortáveis, ele larga a bomba: “Eu sinto que posso fazer qualquer coisa que vocês aplaudem. Vou mandar um peido a ver o que é que acontece”. Uns riram, outros levaram a mal. Na verdade, é nesse feitio indomável que reside boa parte do encanto do vencedor do Festival da Eurovisão. Mas isto já não era sobre os fogos nem a ajuda às vítimas. O “Juntos por Todos” tinha terminado antes, com Rui Veloso, e só agora percebíamos isso.
No total, tinham sido angariados para ajuda às vítimas uns impressionantes 1 153 000 de euros em chamadas – fora a receita da bilheteira e os bilhetes-donativo. O público deixava a sala; Marcelo, Costa e Ferro passavam em direcção aos camarins para irem falar aos artistas. Uma noite histórica na música e na comunicação em Portugal estava concluída. A indústria do entretenimento, muitas vezes menosprezada, fez o seu trabalho. Assim o façam todos.
Alexandre Borges é escritor e guionista. Assinou os documentários “A Arte no Tempo da Sida” e “O Capitão Desconhecido”. É autor do romance “Todas as Viúvas de Lisboa” (Quetzal).