“A principal força civilizadora no mundo não é a religião, é o sexo.”
É praticamente impossível resumir a vida de Hugh Hefner a uma frase ou uma palavra que não seja Playboy. Mas o magnata foi um colecionador de mulheres e de ideias revolucionárias. Um colecionador de amores e de ódios. Um colecionador de escândalos e de fãs. Um colecionador de entrevistas a outros, um colecionador de filmes para si próprio (teria um total de 4.000 películas em casa). Sobretudo, um colecionador de álbuns de recortes – cerca de 18 mil, o que lhe valeu um dos seus dois recordes do Guinness (o outro tem a ver com o tempo ininterrupto em que foi editor executivo da mesma publicação).
Numa palavra, Hugh Hefner, o homem com um quociente de inteligência de 152 pontos que tinha tanto de inteligente como de esperto e sagaz, foi mais do que um playboy e maior do que a Playboy: foi um colecionador. E tem uma história que coleciona pequenos episódios secundários que explicam a maior história principal.
Filho de dois professores conservadores do Nebraska, cada um com a sua influência europeia – o pai, Glenn, tinha antepassados alemães e ingleses, ao passo que a mãe, Grace, descendia de famílias suecas –, com um irmão mais novo (Keith) que tinha morrido no ano passado e primo afastado do ex-presidente George W. Bush e do ex-secretário de Estado John Kerry, Hugh Hefner não demorou a ter os primeiros contactos com a escrita e com a imprensa (publicações de banda desenhada à parte): além de ter servido o país, escrevia, aos 18 anos, num jornal do Exército americano durante a Segunda Guerra Mundial. Ainda assim, e na Universidade de Illinois at Urbana Champaign, começou por tirar um bacharelato em psicologia antes de se dedicar à escrita criativa e às artes. Ainda frequentou o curso de sociologia na Northwestern University, mas desistiu cedo.
Com apenas 23 anos, Hefner ainda não sabia ao certo o que queria e para onde ia e, como em quase toda a vida, não quis fazer esse caminho, casando pela primeira vez em 1949 com Millie Williams, que tinha conhecido na faculdade e com quem teve os primeiros dois filhos, Christie e David. Divorciaram-se dez anos depois. E para percebermos o que se passaria nas décadas seguintes, temos de centrar-nos neste momento: foi a relação com Millie que influenciou de forma decisiva a forma como olhava para o mundo, para as mulheres e para a própria sexualidade.
Como se viria a saber mais tarde e pela voz de ambos, Millie, o seu grande amor da adolescência, foi a mulher com quem teve pela primeira vez relações (ainda antes do casamento, algo anormal para a época), mas foi também a primeira mulher que o traiu, quando servia o Exército americano.
Depois de termos feito sexo, ela disse-me que tinha tido um caso. Foi o momento mais devastador da minha vida. A minha mulher tinha mais experiência sexual do que eu. Após esse momento, senti sempre que o outro estava também connosco na cama”, contou.
Para aliviar os remorsos e tentar manter a esperança no casamento, Millie permitiu que o marido tivesse relações com outras mulheres, mas nem isso seria capaz de segurar a sua própria relação.
Quando tinha 26 anos, desceu um dia até uma ponte na zona baixa de Chicago. “É só isto que existe? Para onde vai a minha vida”, pensou para si próprio. Começava assim a nascer uma das mais icónicas publicações mundiais.
Foi em 1952 que abandonou a Esquire, onde era copy, zangado por não lhe darem o aumento de cinco dólares que pedia. Foi a partir desse momento que começou a pensar no projeto que iria revolucionar a sua vida, a sociedade e o mundo: a Playboy (que inicialmente se iria chamar Stag Party, algo que não avançou porque já havia uma revista chamada Stag). Com todos os riscos que o mesmo acarretava – contraiu uma hipoteca para que o banco lhe emprestasse 600 dólares e juntou a essa verba mais oito mil dólares de 45 investidores onde estava também a mãe (“Não por acreditar no projeto mas por acreditar no filho”, confessou).
Em dezembro de 1953, o primeiro número da Playboy – nome sugerido por amigos e pelo sócio Eldon Sellers – foi lançado com imagens de Marilyn Monroe tiradas para um calendário em 1949 e vendeu mais de 50.000 exemplares. A aposta começava a ser ganha, após várias horas passadas na mesa da sua cozinha a produzir o primeiro número.
O grande boom da Playboy surgiria na década de 70, mas já nesses primeiros anos havia todo um contexto que ajudava à afirmação da revista, nomeadamente os conselhos para que até os casais unidos por matrimónio dormissem em camas separadas e a recusa dos médicos em vender a pílula a mulheres solteiras. Hugh Hefner, o visionário, estava muito à frente. E fez da publicação uma “arma” que o tempo viria a ratificar.
Até porque não se resumia apenas às imagens explícitas tão raras para a altura. Alguns exemplos: conseguiu entrevistas com personalidades como Miles Davis (a primeira de sempre), Fidel Castro, Frank Sinatra ou Marlon Branco, ao mesmo tempo que publicou textos de autores como Ian Fleming, Jack Kerouac ou Ray Bradbury.
E as primeiras grandes críticas à Playboy vieram exatamente de textos e não de fotos: depois da recusa da Esquire, Hefner comprou um conto de Charles Beaumont onde o principal protagonista, heterossexual, era perseguido num mundo onde quem dominava eram os homossexuais. Recebeu inúmeras cartas a criticarem a “desfaçatez”. “Se acham mal um heterossexual ser perseguido por uma sociedade homossexual, então o contrário também está errado”, defendeu em resposta às mesmas missivas. A posição estava marcada. E foi essa forma de estar que criou amores e ódios entre a sociedade norte-americana.
“Estou a viver uma versão crescida do sonho de uma criança, transformando a vida numa celebração. Tudo acaba de forma rápida e a vida deve ser mais do que um vale de lágrimas”, destacou à revista Time em 1967, citado pelo Washington Post, que destaca Hefner, “sobretudo, como um brilhante empresário”.
As tiragens de 200 mil exemplares no final dos anos 50 já iam nos sete milhões na década de 70 (a revista mais vendida de sempre, em 1972, tinha a sueca Lena Söderberg na capa, fotografada por Dwight Hooker). Pelo meio, Hugh Hefner ainda foi detido por alegadamente “promover a literatura obscena” (foi a tribunal e a coisa ficou por ali), mas abriu outra frente naquele que era já visto como um império, com uma série de clubes noturnos com empregadas com orelhas e caudas de coelho, a eterna marca da Playboy.
(e aqui fazemos um parênteses para explicar o porquê do coelhinho: apesar de, em miúdo, ser inseparável do seu cobertor azul e branco com um padrão de coelhos, o símbolo foi escolhido pela sua conotação sexual)
Foi também nessa fase que entrou na moda a Mansão da Playboy, em Charing Cross Road, Los Angeles, onde se realizaram algumas das festas mais memoráveis e que foi vendida no início do ano passado a Daren Metropoulos, filho do milionário investidor Dean Metropoulos, por um montante estimado de 100 milhões de dólares (com a garantia que Hefner ficaria a viver e trabalhar até ao fim da sua vida na propriedade).
Hefner quebrou tabus, desfez preconceitos e promoveu uma autêntica revolução sexual. Podia gostar-se muito, pouco ou nada, mas nunca passou ao lado de nada nem de ninguém nas últimas décadas.
A vida é demasiado curta para se viver o sonho de outros”: a frase com que a Playboy recorda o seu fundador, Hugh Hefner.
“O meu pai viveu uma vida excecional e impactante, defendendo alguns dos movimentos sociais e culturais mais importantes do nosso tempo, na defesa da liberdade de expressão, dos direitos civis e da liberdade sexual. Adotou uma abordagem progressiva não só para a sexualidade e para o humor, mas também para a literatura, a política e a cultura”, descreveu o filho Cooper, atual líder da Playboy Entreprises, em comunicado citado pelo The Guardian.
Hefner casaria mais duas vezes: em 1989 com a ‘Playmate do Ano’ Kimberley Conrad, com quem teve dois filhos, Marston e Cooper; e em 2012 com Crystal Harris, 60 anos mais nova, depois de, uns meses antes, ter cancelado o noivado. Mas foi a veia de bon vivant a ser explorada até à exaustão pelos media, que foram sucessivamente dando conta das relações que foi mantendo com as ‘coelhinhas’ que iam passando pela revista. Ao todo, dito pelo próprio, terá mantido relações com cerca de duas mil mulheres (além de uma alegada relação homossexual, como escreveu Steven Watts no livro ‘Mr. Playboy: Hugh Hefner e o sonho americano’).
As excentricidades não ficaram por aí: comia todas as refeições na cama (mesmo quando tinha convidados, juntava-se a eles à mesa mas sem comer), conseguiu licença para ter um jardim zoológico na mansão onde residia, tinha um jato privado (o ‘Big Bunny’), comprou 200 pijamas de seda de 20 cores diferentes e assumiu que a maior experiência que teve foi num aniversário com a namorada e mais… 17 mulheres.
Aos 91 anos, o americano morreu esta madrugada, por causas naturais. Naquele seu espírito de Peter Pan, quis viver como um jovem até ao último dia e cumpriu na íntegra o teor daquela frase que se tornou icónica em relação ao seu legado: “A vida é demasiado curta para viver o sonho de outros”. “Aquilo que mais me orgulho é de ter mudado as atitudes em relação ao sexo, que as boas pessoas podem agora viver juntas, que descontaminei a noção de sexo pré-marital. Isso dá-me uma grande satisfação”, sublinhou numa entrevista ao The New York Times. “Foi comparado a Jay Gatsby, a Citizen Kane e à Walt Disney, mas quis sempre ser uma produção própria”, escreve.
Viver o momento, pensar sobre o futuro e manter-me ligado ao passado: é isso que me faz sentir tudo.”
Agora, deverá ser enterrado junto a Marilyn Monroe, um ícone que nunca conheceu mas que sempre o atraiu, como se percebeu pelo facto de ter feito capa da primeira Playboy. Que, por não saber se teria ou não continuidade depois desse número em dezembro de 1953, teve a data omitida na capa. Mal sabia Hefner, o colecionador, que tantas pessoas iriam colecionar a publicação durante décadas a fio um pouco por todo o mundo…