O Prémio Literário José Saramago 2017 foi atribuído ao romance A Resistência, do brasileiro Julián Fuks. O anúncio foi feito ao final da manhã desta quarta-feira, na sede da Fundação José Saramago, na Casa dos Bicos, em Lisboa, por Guilhermina Gomes, diretora editorial do Círculo de Leitores e presidente do júri, composto ainda por Ana Paula Tavares, António Mega Ferreira, Nelida Piñon e Pilar del Rio.

Publicado no ano passado pela Companhia das Letras, A Resistência parte do drama de um país — a Argentina, depois do golpe de estado de 1976 — para relatar a história de uma família que procura exílio no Brasil, de forma densa e emocionante. Este é o quarto romance publicado pelo brasileiro, considerado pela revista Granta um dos vinte melhores jovens autores do Brasil. Foi com ele que ganhou o Prémio Jabuti, o mais importante prémio literário brasileiro, na categoria de ficção, em 2016, e a Menção Honrosa do Prémio Rio de Literatura, também nesse ano.

Para Ana Paula Tavares, membro do júri do prémio, que fez o elogio da obra vencedora, trata-se de “uma história com várias histórias dentro”, onde a escrita se assume como “um ato de resistência”. “Uma procura constante entre narrar e a precisão de recorrer às fontes (falas e silêncios da mãe, do pai, dos irmãos) de um passado vivido e outro que pode ser ficcionado a partir de uma observação direta que torna o romance nesse território híbrido da experimentação e da contaminação dos géneros e das espécies.”

“O ato de narrar desleva o nó das convergências que só se percebo pelo alinhamento da palavra em torno do que diz e do que esconde esse pacto da memória que toda a família transporta e passa de geração em geração. Pode-se herdar um exílio como se herda a casa do avô ou a rua onde estendida ao sol resiste a esperança”, disse Ana Paula Tavares.

Nascido em 1981, em São Paulo, Brasil, no seio de uma família de exilados argentinos, a história de A Resistência é, em grande medida, a do autor, considerado em 2012, pela revista Granta, um dos vinte melhores jovens escritores brasileiros. “Mergulhar no passado é como olhar de frente a resistência na oposição de forças que não são porosas à memória e aos campos específicos da história”, considerou Ana Paula Tavares. “Momentos de fratura (a Argentina, a ditadura e a fuga) tornam a casa, o lugar de exílio, a partir do qual se constrói a narrativa que, partindo da família, convoca a depor a história dos lugares de saída e os de acolhimento.”

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“Todas as ruas de sentido único ganham novos sentidos com a palavra certa que Julián Fuks usa para escrever o romance e ao mesmo tempo nos dar conta da história e da memória do exílio, da política e da família enquanto espelho onde se desenha a história do universo.”

Em comunicado, António Mega Ferreira, outro membro do júri, considerou que “há tantas coisas neste curto romance, tantas e tão desafiantes, que, às vezes, parece que a narrativa vai implodir”. “Mas não: com mestria literária notável, o autor suspende os momentos suscetíveis de desencadear as catástrofes às beira de qualquer desenlace, porque o romance não deve ser mais cruel do que a vida.”

“Que a literatura possa contribuir para as múltiplas resistências que o mundo exige”

No discurso de agradecimento, o autor disse que era “difícil encontrar palavras depois das palavras tão cuidadosas, elegantes, ponderadas e lisonjeiras da Ana Paula Tavares”. “Queria, em primeiro lugar, agradecer a todos os envolvidos no processo. O sentimento é quase avassalador de tanta alegria por receber um prémio como estes e entrar numa lista de autores que eu admiro, numa casa como esta e receber um prémio que leva o nome desse autor imenso que é Saramago. Tentava recapitular a minha relação com ele e senti que ele é talvez o único autor que me fez rir e chorar em momentos diferentes. Sinto que agora, num só momento, Saramago me faz rir e chorar.”

Admitindo que o livro foi muito bem recebido em solo português, Julián Fuks afirmou que isso o fez acreditar que é possível estabelecer um “diálogo”, uma “abertura” e um “entendimento entre nós”. No fundo, “uma troca maior de experiência e ideias”. “Portugal tem sido incrivelmente hospitaleiro e recetivo, e eu só tenho a agradecer ao país como um todo por isso.” Explicando que o seu romance fala sobre a resistência e sobre as múltiplas formas que esta pode tomar, o escritor salientou que a escrita também pode — e deve — ser uma resistência. “É um livro muito pessoal. Trata de uma vivência própria e familiar, mas que procura pensar o pessoal como coletivo, como político. É o que tenho sentido cada vez mais — que uma dessas manifestações do íntimo s pode tornar numa manifestação política, mais ampla, do coletivo.”

Julián Fuks: “Houve muita resistência para escrever este livro”

Admitindo que o diálogo entre a literatura e a política é “muito fundamental”, mas não num sentido panfletário, Fuks apelou para que “a literatura possa contribuir para as múltiplas resistências que o mundo exige”. “No Brasil, a gente vive retrocessos evidentes em toda a parte, e uma coisa clara para quem [a situação] acompanha de perto é que isso não acontece só ali — se relaciona amplamente com uma situação vivida mundialmente. Há retrocessos que se anunciam, se insinuam em certos lugares e se cumpre noutros, e isso nos exigem cada vez mais a aproximação, o diálogo, inclusive na literatura. Que a literatura faça esse dialogo.”

“Queria agradecer e deixar uma exortação por uma literatura que corresponda mais aos desafios que o mundo apresenta”, disse Julián Fuks, no final do seu discurso.

“O escritor não pode ser uma testemunha indiferente dos acontecimentos do seu tempo”

Luís Filipe Castro Mendes, que encerrou a sessão, admitiu ter lido a obra vencedora, que adquiriu depois de ter conhecido o escritor no festival Correntes d’Escritas, onde participou em 2016. “É um livro admirável porque é uma escrita extremamente exigente, de grande tensão, de grande rigor”, disse o ministro da Cultura. “Trata de um tema que certamente José Saramago muito gostaria de ver — a resistência.”

“A escrita é sempre uma resistência, à banalidade das palavras, à tagarelice quotidiana, ao uso mercantil, às vezes pornográfico, das palavras. Todos aqueles que escrevem defendem esse valor.” E isso, por si só, já é uma resistência, mas a escrita pode ainda ser “um ato de responsabilidade face ao mundo”. “Ao mundo e a esta evolução a que estamos a assistir. O escritor não pode ser uma testemunha indiferente dos acontecimentos do seu tempo“, frisou Luís Filipe Castro Mendes. “Somos sempre feridos e atravessados pelo que o nosso tempo oferece. O escrito não pode deixar de falar do imenso ferimento do mundo.”

O prémio, que distingue jovens autores com obra editada em língua portuguesa, é atribuído pela Fundação Círculo de Leitores a cada dois anos. Criado em 1998, depois de José Saramago ganhar o Prémio Nobel, tem por objetivo celebrar a nova literatura em língua portuguesa, distinguindo escritores, com idade não superior a 35 anos, por uma obra de ficção, romance ou novela, publicada em qualquer país da lusofonia nos dois anos anteriores à atribuição do galardão. Com um valor de 25 mil euros, o Prémio José Saramago não contempla obras póstumas.

O último escritor a ser galardoado foi Bruno Vieira Amaral, em 2015, com o romance As Primeiras Coisas, publicado em 2013 pela Quetzal. Amaral vai estar à conversa com o vencedor na próximo na sexta-feira, pelas 18h, em Óbidos, onde decorre, até domingo, o festival literário FOLIO. No dia seguinte, participará numa mesa redonda com Ana Margarida Carvalho e Ana Sousa Dias, subordinada ao tema “Os Náufragos e os Resistentes”.