A Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens (CNPDPCJ) emitiu esta segunda-feira um comunicado a alertar para o “elevado risco” de o programa SuperNanny, que estreou este domingo à noite na SIC, com a psicóloga clínica Teresa Paula Marques, “violar os direitos das crianças, designadamente o direito à sua imagem, à reserva da sua vida privada e à sua intimidade”.
Em comunicado enviado para as redações, a CNPDPCJ acrescentou ainda que o formato revela um “conteúdo manifestamente contrário ao superior interesse da criança, podendo produzir efeitos nefastos na sua personalidade, imediatos e a prazo“.
O conceito do reality show, decalcado do original britânico com o mesmo nome (emitido no Reino Unido entre 2004 e 2010), é o seguinte: uma família, a braços com birras infantis ou mau comportamento adolescente, pede ajuda a uma “super ama”, que se desloca à respetiva casa para primeiro observar a dinâmica pais-filhos e depois sugerir e supervisionar a aplicação de novas regras que permitam “recuperar a calma e a alegria familiar”. Tudo é filmado.
[Veja as polémicas do SuperNanny noutros países]
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Em entrevista ao Observador, Rosário Farmhouse, presidente da CNPDPCJ, garantiu que os pais da criança de 7 anos no centro da polémica em torno do programa, vão ser ouvidos ainda esta segunda-feira pela Comissão de Proteção de Jovens e Crianças de Loures.
“Estamos muito preocupados. Para nós é um programa que expõe a criança de forma muito negativa e viola a sua imagem e privacidade. A criança tem 7 anos, não faz ideia do impacto que isto terá na sua vida. Já na semana passada fomos contactados por familiares da criança, que referiram que ela já estava a ter problemas na escola só por causa das promos. Hoje quando chegou à escola deve ter enfrentado muitas reações, a situação deve ter-se agravado”, revelou Rosário Farmhouse. “A mãe expôs a criança a este perigo mas gostaríamos que outras crianças não fossem expostas ao mesmo”, concluiu.
A CNPDPCJ, que informou ter recebido várias queixas relativamente ao programa, diz ainda que já entrou em contacto com a SIC, no sentido de manifestar a sua “preocupação face a este tipo de formato e conteúdos solicitando uma intervenção com vista à salvaguarda do superior interesse da criança”.
Em comunicado divulgado ao final da tarde desta segunda-feira, o canal garante que o programa cumpre “a lei aplicável”, porque foram recolhidas “as necessárias autorizações para o efeito”. E justifica a exibição com o sucesso alcançado no estrangeiro com o mesmo formato, em países como Reino Unido, Alemanha, Espanha e Suécia: “São exemplos de países onde os padrões de proteção dos direitos dos menores não se revelam menos exigentes do que os existentes em Portugal. A experiência acumulada nesses países tem demonstrado que o SuperNanny não gera efeitos negativos ou de censura em ambiente escolar e social, antes contribuindo para uma melhoria significativa da qualidade de vida familiar”.
“São abordadas situações reais, ocorridas em ambiente familiar, de um modo responsável, não exibicionista e sem explorar situações de particular fragilidade”, pode ler-se ainda no texto enviado para as redações.
https://www.youtube.com/watch?v=TRjNnN-baE8
A CNPDPCJ pediu ainda pareceres sobre o assunto à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) e deixou um apelo aos órgãos de comunicação social: “Certos da delicadeza dos temas relacionados com crianças e jovens e reconhecendo o papel fundamental da Comunicação Social na construção de uma opinião pública informada e sensibilizada para a defesa dos direitos da criança, vem esta Comissão apelar aos meios de comunicação social que assumam um papel responsável, protetor e defensor dos Direitos da Criança“.
A Entidade Reguladora da Comunicação Social (ERC) confirmou entretanto que também recebeu queixas sobre o programa, esclarecendo que “os textos versam essencialmente sobre uma alegada violação de direitos fundamentais e serão oportunamente apreciados pelo Conselho Regulador da ERC”.
Já a Unicef Portugal acusou o novo reality show da SIC de violar o artigo 16 da Convenção sobre os Direitos da Criança — que determina o “direito da criança a ser protegida contra intromissão na sua vida privada” — e pediu ao Estado que “tome as medidas necessárias para proteger a criança e o seu bem-estar”. No comunicado assinado por Beatriz Imperatori, directora executiva do organismo das Nações Unidas em Portugal, é ainda feita referência às consequências que a participação no programa pode trazer para as crianças: “A exposição pública, nomeadamente dos comportamentos violentos retratados, poderá colocar em causa o bem-estar da criança e o seu desenvolvimento atual e futuro”.
O Instituto de Apoio à Criança (IAC) também se pronunciou sobre o assunto, através de um comunicado: “Assistimos ontem a situações de conflito entre uma criança e sua mãe, ocorridas em contexto privado, as quais foram exibidas em horário nobre num canal televisivo de grande audiência, o que decerto causará sérios prejuízos à imagem da criança vítima da exposição pública”.
Considerando que o programa SuperNanny incorreu numa “violação do direito de uma Criança à sua imagem e à intimidade da sua vida privada”, a direção do IAC, que assina o texto, aludiu ainda como ponto positivo à entrada em vigor, em maio de 2018, de uma nova diretiva da União Europeia que poderá no futuro evitar situações semelhantes, já que “restringirá ainda mais os direitos dos pais à imagem dos filhos, para que estes não possam ser privados de direitos fundamentais, apenas por serem crianças”.
“Não estou no programa como psicóloga”
Teresa Paula Marques remeteu quaisquer esclarecimentos sobre o assunto para a Warner Bros. TV Portugal, responsável pela produção do programa. Ainda assim, confrontada pelo Observador a propósito da queixa da CNPDPCJ, a psicóloga começou por dizer que a questão da violação da privacidade e dos direitos das crianças que aparecem no formato “é um problema da SIC”. Sobre a sua responsabilidade como profissional, obrigada a obedecer a um código deontológico, garantiu ainda: “Não estou no programa como psicóloga”. Mas não quis explicitar em que qualidade aparece então no formato da SIC, a partir de um original britânico replicado em cerca de 15 países, EUA, Brasil, França, Suécia, Alemanha e Espanha incluídos.
Num dos vídeos promocionais de SuperNanny, Teresa Paula Marques apresenta-se como alguém que gosta de “fazer doces, ler e escrever”, que tem livros publicados sobre aconselhamento parental e que exerce psicologia “há mais de 25 anos”.
Em entrevista à Sábado, antes da estreia deste domingo, a psicóloga, de 51 anos, disse que sabia que o programa ia “gerar polémica”, mas não se mostrou incomodada por isso: “Haverá pessoas que gostam e outras que não, por exemplo os mais permissivos vão discordar”.
Ordem dos Psicólogos deu parecer negativo ao programa
Em março de 2016, diz ao Observador fonte oficial da Ordem dos Psicólogos Portugueses, a Comissão de Ética emitiu um parecer “sobre a alegada prática da psicologia nos media”, a pedido da produtora de SuperNanny, a Warner Bros. TV Portugal. Foi negativo, ainda assim, o programa avançou.
Ao longo de 5 páginas, assinadas pelo presidente da Comissão, Miguel Ricou, a Ordem dos Psicólogos repudia a “prática da psicologia em programas de divulgação massiva, bem como a conivência do psicólogo na exposição pública das pessoas, nomeadamente pela participação em programas no formato de reality show“.
Invocando o código deontológico da profissão e princípios basilares como a “relação de confiança entre o psicólogo e o cliente”, a “diversidade individual” e a “privacidade”, a Comissão de Ética manifesta-se contra formatos como o que estreou este domingo na SIC e adverte: “Dada a natureza da intervenção psicológica, a sua aparição no espaço mediático não é adequada, devendo limitar-se a situações genéricas e não adaptadas a casos particulares“.
No texto, a comissão é categórica a defender que a exposição pública de clientes “não pode, de forma alguma, ser considerada no melhor interesse destes”. E explica ainda que “exemplos concretos da intervenção psicológica não podem ser aplicados ou generalizados a outras situações“, o que deita por terra o argumento de Teresa Paula Marques, que garantiu à Sábado ter aceite o convite para participar em SuperNanny, sobretudo por razões pedagógicas: “A componente pedagógica do programa agrada-me. Estamos na altura de mudar o comportamento dos pequenos”.
Para terminar o parecer, a Comissão de Ética da Ordem dos Psicólogos advertia ainda os profissionais para a necessidade de deixarem explícito, caso contra todas as recomendações decidissem participar em programas “onde se exponham publicamente casos particulares”, que não estavam “a levar a cabo qualquer tipo de intervenção psicológica”.
No final do primeiro episódio do programa, ao longo do qual a vida privada e íntima de uma criança de 7 anos foi tornada pública, desde as rotinas de casa de banho até às birras da hora de ir para a cama, passando por palmadas disciplinadoras e por momentos de choro e desespero da mãe, foi exibida uma advertência, a garantir que “durante as gravações foi respeitada a privacidade dos intervenientes”.
Não foi utilizado qualquer tipo de filtro para disfarçar a identidade da criança em causa, nem da mãe, que se inscreveu no casting da primeira série do programa, que deverá ter 8 episódios, nem da avó materna. Mais: para além de ser identificada a casa onde a família mora, em Loures, foi também revelada a empresa onde a mãe, mediadora de seguros, trabalha.
No mesmo retângulo negro, Teresa Paula Marques aparece descrita como “educadora” em vez de como psicóloga, em cumprimento do último ponto do parecer da Comissão de Ética: “O trabalho da educadora visa divulgar técnicas e instrumentos pedo-pedagógicos que podem contribuir para um relacionamento familiar saudável e não substitui o acompanhamento por parte de profissionais de saúde em caso de necessidade”.
Ordem já recebeu queixas contra Teresa Paula Marques
Na sequência do programa SuperNanny, a Ordem dos Psicólogos recebeu queixas contra a psicóloga Teresa Paula Marques (cédula profissional número 916) e poderá abrir um processo, segundo confirmou ao Observador o presidente da Comissão de Ética, Miguel Ricou. “As queixas vão ser julgadas no contexto do Conselho Jurisdicional”, disse Ricou, que não consegue precisar o número de queixas recebidas.
“Este tipo de programas não agoira coisas positivas e embora se diga que só participa quem quer, as pessoas e famílias que o fazem encontram-se em situações vulneráveis”, continua Miguel Ricou, que garante que “nenhum modelo na psicologia defende a exposição pública”. Ricou adianta ainda que a Ordem está a ponderar a criação de uma figura do provedor da criança e do jovem.