O PS decidiu abrir aporta ao debate interno, nas Jornadas Parlamentares de Coimbra, sobre a transparência política, o que expôs o enorme desconforto que existe na bancada com os projetos do grupo parlamentar sobre a matéria. Em cima da mesa estão o código de conduta, novas obrigações para titulares de cargos políticos e até a regulação do lóbi na Assembleia da República. Legislar “a mata-cavalos”, disse Ascenso Simões. “Nunca votaria a favor de um pacote que tem normas absurdas“, avisou Isabel Moreira. E Sérgio Sousa Pinto fez um discurso — que foi largamente aplaudido — a dizer que o PS se está a “encaminhar para uma classe dissociada da sociedade, uma classe sacerdotal, de vestais, não no sentido biológico, mas no sentido da antiguidade clássica” (referia-se às virgem vestais da Antiga Roma). A defesa dos projetos foi deixada — quase em exclusivo — a um deputado independente.
O arranque do dia socialista não podia ter sido mais intenso. Começou com uma crítica de Ascenso Simões, que rapidamente se alastrou à restante audiência de deputados que chegaram mesmo a disparar num forte aplauso perante um discurso de Sérgio Sousa Pinto que não deixava pedra sobre pedra no pacote legislativo que o PS já apresentou no Parlamento. “O preço vale a pena?”, questionou o deputado socialista que caricaturou a vida de um deputado, depois de sair do Parlamento: “Dizem-lhe ‘sacerdote, servidor da causa pública, regressa à tua vida que não existe porque não tens subsídio de integração, não tens nada'”. O deputado acrescentou que, perante as alterações que estão em equação pelo PS, um deputado fica com a sua “liberdade em causa”: “Tem de ser um deputado servil do chefe, do dono que é o partido que manda nele na família, no destino da família. Comanda tudo porque o indivíduo já está espoliado de toda a sua liberdade económica e profissional e a seguir disso perde-se a dignidade e a independência e um regime democrático não pode sobreviver sem homens livres“.
Logo de seguida interveio Isabel Moreira, para começar logo por dizer que não gosta dos diplomas, “nem da forma, nem da substância”. E atira uma acusação mais direta: “Não tiveram discussão do grupo parlamentar”. Para a socialista, os projetos do PS “são uma cedência ao populismo e à demagogia” e avisou que “nunca votaria a favor de um pacote que tem normas absurdas do ponto de vista político, relativamente à dignidade do Parlamento e dos deputados, e também normas absurdas do ponto de vista constitucional”. E juntou-se a Sérgio Sousa Pinto numa crítica que este tinha feito na sua intervenção, quando disse que o que foi apresentado “curiosamente salvaguarda os académicos”. Isabel Moreira foi atrás, referindo-se concretamente ao código de conduta: “Os académicos são os grandes salvaguardados deste regime, mesmo quando as universidades têm iniciativas e conferências. Declaram, mas recebem o que querem”. E acusou mesmo quem trabalhou nas alterações apresentadas pelo PS de “querer um diploma à medida dos académicos contra o resto dos deputados“.
Não tão curiosamente, tendo em conta estas críticas, o deputado que se foi levantado em defesa mais veemente do pacote da transparência foi o independente e académico Paulo Trigo Pereira. Esteve no grupo que preparou os projetos e disse que “não, os professores universitários não dominam”. Sobre as críticas que surgiram durante a manhã disse que “é chato, mas quando se exerce um cargo público temos responsabilidades acrescidas, porque somos pagos pelo dinheiro dos contribuintes e tomamos decisões que afetam a vida de todos os contribuintes”.
Outro elemento dos intervenientes na preparação do pacote legislativo foi Jorge Lacão que, neste mometo do debate, respondeu diretamente a Isabel Moreira, para a acusar de ter “votado favoravelmente” alguns dos projetos que hoje ameaça chumbar. “As limitações ao exercício do mandato, as declarações de rendimentos que não correspondem à verdade declarada. Já foi votado por ti no passado, não foi inventada na antevéspera deste debate”. Na moderação do debate estava o outro deputado que preparou os projetos, Pedro Delgado Alves, que da mesa também respondeu a Isabel Moreira que os primeiros projetos apareceram em 2016, que existiram audições, foram pedidos contributos e discutidos no grupo parlamentar e distribuídas aos deputados socialitsas quando foram apresentadas. No fim do debate, perante uma sala já muito agitada atirou que o que é defendido “não é atentatório do parlamentarismo, o que é atentatório é não ouvir os colegas e não particpar no debate. Isso às vezes é que é chato”. Já Lacão, ainda recomendou que se evitem “os discursos apaixonados, sejam no sentido da defesa ou ataque destas questões”.
O de Sérgio Sousa Pinto já tinha acontecido, chegando mesmo a fechar a sua intervenção com uma citação de Mário Soares, quando dizia que “podem salvar o regime da bandalheira dos corruptos, dos ladõres e dos saqueadores da democracia — isso é indispensável à sobrevivência do regime — mas também temos de salvar o regime dos salvadores do regime“: “O Dr. Soares referia-se a esse grupo particular como os epígonos da democracia, os que vêm no fim, os que não deixam nada”.
Logo no arranque do debate — que foi em crescendo –, Ascenso Simões começou por dizer não perceber “a urgência legislativa no sentido” do que o PS está a fazer. O deputado questionou se o partido não está a “legislar a mata cavalos” e “sobre tudo e sobre nada”. Questionado pelo Observador sobre a que projeto específico se referia, do pacote da transparência que o PS apresentou, o deputado socialista falou no código de conduta e no enriquecimento injustificado. “Está a legislar-se sobre o quê?”, questiona. E na reunião socialista, na parte destinada ao debate, já o tinha dito quando se queixou de os partidos estarem “a ter de legislar perante circunstâncias que não conseguimos identificar”. A questão até era dirigida ao convidado Oliveira Martins, mas quem deu resposta foi o colega de bancada Paulo Trigo Pereira.
O independente eleito pelo PS disse a Ascenso Simões que “não é legislar a mata cavalos”: “Temos um prazo até março, mas se for necessário prorroga-se”. Mas discordou também do conteúdo implícito na crítica de Ascenso, atirando uma pergunta e a resposta à mesma: “Há um grande problema que temos para resolver? Há. E o primeiro até é o do enriquecimento injustificado”, sustentou. Já o homem que tinha sido diretamente interpelado, o ex-presidente do Tribunal de Contas, considerou “indispensável não haver pressa que ponha em causa a qualidade da lei”, mas também defendeu a “necessidade” das alterações como forma de “credibilizar as instituições”.
Pelo meio, a deputada Margarida Marques também aproveitou a deixa sobre a necessidade de debate prévio sobre este tema, para recomendar uma “reflexão profunda”, nomeadamente sobre a existência de uma “autoridade única” que controla os dados e é simultaneamente a autoridade da transparência.
E mesmo a audição de convidados, como Guilherme d’Oliveira Martins, a investigadora Susana Coroado e o fiscalista João Taborda da Gama a deixar algumas dúvidas sobre o que o PS já apresentou e quer ter fechado até março.
“A rigidez é inimiga da eficiência”
Elza Pais, outra deputada que levantou dúvidas, questionou a aplicabilidade da legislação e se a sua rigidez não prejudica o objetivo. “Como é que esta legislação pode ser cumprida sem que a eficácia da ação seja prejudicada?“. E a questão era levantada por outros deputados na sala que, embora não tivessem pedido a palavra, comentavam paralelamente (e no intervalo do debate, a meio da manhã) sobre a falta de flexibilidade do que o PS pretende legislar para apertar a malha aos políticos. Nos últimos dias tem sido também questionada outra perspetiva: estes projetos não ajudam às causas populistas? Ao Observador, Carlos César tinha justificado porque é que avançaram nesta altura.
Antes da torrente de críticas se ter tornado tão forte, os convidados deste primeiro painel do dia também já tinham deixado avisos e sugestões sobre o que já foi apresentado. A propósito da questão da deputada Elza Pais, Oliveira Martins concordou que “quando os sistemas são muito rígidos tendem a gerar situações de fraude“. “A rigidez é inimiga da eficiência, da verdade e da transparência”, acredita o ex-presidente do Tribunal de Contas, que avisou mesmo: “O pior que existe é criar biombos. As margem de flexibilidade são indispensáveis”.
Em matéria de regulamentação do lóbi na Assembleia da República, a investigadora Susana Coroado avisou que “regulações baseadas na criação de registos de lobistas tem sido provado que não resulta”. O projeto avançado pelo PS vai neste sentido, mas Susana Coroado considera que esse registo “oferece umas páginas amarelas de quem faz lóbi” e que o que “é fundamental” é “saber que detentor de cargo político ou público contactou e sobre que matéria, porque senão vamos continuar sem saber quem é que influenciou determinada decisão pública”.
A investigadora defende que as reuniões com quem representa interesses sejam todas registadas, mesmo que sejam mantidas apenas com o staff. E foi taxativa na defesa de maior controlo da declaração de interesses e sobre o código de conduta dos deputados, tanto que chegou a ter de parar a palavra para esperar pelo silêncio da sala que ia atirando apartes à sua intervenção. A investigadora foi a única convidada a ficar até ao fim do debate e a única que assistiu intenso debate que acabou por acontecer.
Sobre o lóbi, João Taborda da Gama considerou que a “enumeração de clientes” exigida aos lobistas é “demasiado excessiva” e que não permite “perceber a importância relativa de cada cliente”, defendendo que apenas tivessem de enumerar “dois ou três dos principais clientes”.
Mas a principal questão abordada pelo secretário de Estado da Administração Local do anterior Governo (o segundo de Passos Coelho, que teve existência curta) foi com a questão da transparência no seu todo, sendo um deputado da regra da exclusividade no exercício das funções de deputado. De forma mais alargada, dividiu em dois grupos as reações ao tema da transparência: os “transparentófilos” e os “trasparentofobos”. Os primeiros são os “viciados em transparência, que nunca ficarão satisfeitos com nada do que se faça”. Os segundos são os “que não querem este tipo de legislação”, ou porque “isso lhes destrói uma vantagem” ou os que acham que isso “legaliza a corrupção”.
Artigo atualizado com o restante debate que decorreu na manhã de hoje e com uma correção a uma declaração de Sérgio Sousa Pinto sobre as “vestais”