A internet é uma estrutura absolutamente essencial à preservação da vida tal como a conhecemos. Todos os serviços fundamentais passam por ela, desde a economia às infraestruturas sociais. E não só. Como ferramenta de comunicação, a net é um mecanismo imprescindível para garantir a liberdade de expressão a nível global. Por isso, o problema da propriedade da internet, ou da sua gestão, é muito mais importante do que parece.
A internet é gerida pelo ICANN (Internet Corporation for Assigned Names and Numbers), uma entidade independente que obedece a um mandato dos Estados Unidos – país que tem assumido a condução dos destinos da rede global sem interferir no seu funcionamento. Face ao imenso crescimento da internet e à sua dimensão global, Barack Obama decidiu cedo terminar com esta situação – garantindo que até 30 de setembro o ICANN vai assumir a total responsabilidade pelo futuro da internet, obrigando a uma reconfiguração global desta entidade.
O que está em causa é a gestão global da estrutura e dos domínios de internet, que se arrisca a cair numa anarquia ou, pior, num modelo em que a censura e o ataque à liberdade de expressão poderão ser prática corrente. Para perceber o que se está a passar é fundamental entender um pouco da história recente da rede global.
Quando hoje alguém, nalguma parte do mundo, escreve observador.pt na janela do browser, o resultado é o mesmo: a chegada à página do site gerido pelo Observador, onde se encontram as notícias do dia. Isso só é possível porque existe um serviço global de gestão de endereços de internet, conhecidos como domínios de internet e cuja sigla em inglês é DNS. Este serviço é uma das estruturas fundamentais da internet como a conhecemos e que no início era gerida por Jon Postel, um dos pais dos principais protocolos da rede – e que graças à sua gestão dos domínios era conhecido como “deus”.
O crescimento da internet obrigou a uma profissionalização de todo o sistema, tendo as escolhas sido feitas pelo governo dos Estados Unidos — país onde nasceu a estrutura de base da internet. A opção americana caiu, então, num modelo complicado que passou pela criação do ICANN. Não tem fins lucrativos, mas tem um conceito empresarial e tem acionistas – um conjunto de empresas ligadas à rede, ativistas da sociedade civil e governos de várias partes do mundo. É esta entidade que gere a IANA (Internet Assigned Names Authority), entidade que verifica tudo o que tem a ver com domínios e endereços de internet.
Embora nunca tenha exercido o poder de autoridade sobre o ICANN, deixando-o funcionar em total liberdade, a verdade é que a soberania sobre a internet era de certo modo pertença dos Estados Unidos. E isso motivou um crescente – e constante – clamor nas Nações Unidas, onde que um grupo de países liderado pela Rússia e pela China tem insistido numa revisão desse estado de coisas. E isto no rescaldo de toda as revelações feitas por Edward Snowden sobre o comportamento abusivo da agência de espionagem americana. O resultado foi o anúncio feito no ano passado por parte da administração Obama de que pretende terminar em outubro essa supervisão americana sobre o ICANN, abrindo a porta a uma situação potencialmente caótica.
Fosse por que razão fosse, o ICANN era um problema a precisar de ser resolvido. Na prática, é um monopólio que regula o mesmo mercado em que opera, beneficiando de crescentes lucros graças à venda de domínios de topo (as terminações da base dos endereços web, como .net, .info, .journalist, etc.). E a isto somam-se as acusações de excesso de burocratização, de complexidade excessiva na estrutura e de insensibilidade face aos dilemas éticos que se colocam a nível global.
O português Nuno Garcia foi o representante europeu no ICANN e lidou de perto com esta questão. Hoje, para além de professor auxiliar da Universidade da Beira Interior (UBI), é membro de uma organização que faz parte da estrutura de apoio do ICANN e tem sido uma das vozes mais ativas na divulgação deste problema em Portugal. E contextualiza este problema de forma clara:
O principal risco é que a internet entre numa era de fragmentação, em que cada nação suficientemente poderosa ganha direito de veto sobre o que é ou não passível de estar online. Um exemplo: o governo chinês consegue bloquear no interior do território o acesso a sites relacionados com a defesa dos direitos do Tibete, mas não consegue impedir a existência desses mesmos sites. Num modelo de governança global, seria lógico que o governo chinês impedisse o registo desse mesmo site, retirando-lhe o direito a existir. E o mesmo se aplicaria a opositores do regime russo, a defensores da democracia no Médio Oriente, ou a quaisquer outros opositores de interesses instalados. E por isso um modelo de gestão semelhante ao das Nações Unidas, em que os mais poderosos têm direito de veto, tornaria inviável a gestão da internet.
Outro risco, talvez ainda mais real, é o de um descontrolo da infraestrutura técnica da internet. Os vários subcomités do ICANN tomam decisões essenciais sobre os protocolos e os mecanismos de base que permitem que tudo funcione sem falhas e de forma integrada em todo o planeta, tomando ainda decisões sobre o futuro crescimento da rede – com mais pessoas a aceder, mais dispositivos conectados, mais tráfego e conteúdos mais pesados (graças ao crescente consumo de vídeo online).
Para tentar evitar todos os cenários catastróficos, a estrutura técnica do governo dos Estados Unidos criou mecanismos de proteção para para o futuro órgão que irá gerir a internet. Foram definidos quatro princípios para o futuro do ICANN: manter e aprofundar o modelo de gestão participado por múltiplos gestores da sociedade civil; manutenção da segurança, estabilidade e resiliência do sistema; manutenção das necessidades e expectativas dos utilizadores; manutenção da arquitetura aberta, que é o princípio base da rede.
Para além disso, findo o período de transição, os Estados Unidos pretendem aumentar a capacidade de o ICANN dar resposta e prestar contas públicas da sua atividade. E caso alguma situação inesperada provoque o desgoverno da rede global, Washington quer reservar os direitos de intervenção futura – podendo mesmo voltar a dominar a rede.
O acordo entre os EUA e o ICANN prevê que a data limite para se fechar o novo modelo seja 30 setembro. Há uma cláusula de proteção que prevê que, caso não se conclua o processo até à data prevista, se possa renovar o contrato existente por dois anos mais duas vezes. Mas a pressão política vai obrigar a que tudo se resolva o mais depressa possível. As eleições americanas decorrem no final de 2016 e ninguém sabe se o novo presidente, seja ele de que partido for, ainda estará interessado em manter a política defendida por Obama.
Portugal tem tentado ter uma voz ativa nesta discussão, quer através da União Europeia, quer através da relação direta com as estruturas técnicas do ICANN. A lógica participativa, conhecida pelo termo inglês “multistakeholder”, garante a todos a possibilidade de ter voz na discussão. E ainda na terça-feira um painel reuniu-se em Lisboa para discutir o assunto e abri-lo à sociedade civil.
Portugal foi o país europeu que mais cresceu em termos de domínios no primeiro trimestre de 2015, o que confirma a trajetória ascendente da digitalização da sociedade portuguesa. Ao mesmo tempo, está a tentar coordenar esforços com o Brasil e os Palop no sentido de ter uma voz única na discussão sobre o futuro da internet – e será criada ainda este ano uma associação de “registries” de língua portuguesa na internet, juntando numa única entidade todos os domínios de topo em português.
Sobre a resolução desta situação, Nuno Garcia afirma-se “otimista, sim, despreocupado, não”. Considera essencial trazer mais pessoas para a discussão “porque a participação de todos é fundamental”. Mas os interesses em jogo são muitos e demasiado complexos para permitir antecipar o que aí vem.