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No Reino Unido, os idosos pagam um mínimo de 600 euros por semana para terem alguém com eles a tempo inteiro
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No Reino Unido, os idosos pagam um mínimo de 600 euros por semana para terem alguém com eles a tempo inteiro

No Reino Unido, os idosos pagam um mínimo de 600 euros por semana para terem alguém com eles a tempo inteiro

"A nossa vida é a deles". Quatro portugueses que foram para Inglaterra tomar conta de idosos 24 horas por dia

Não é um trabalho de assistente social, nem de fisioterapeuta nem de enfermeiro. É tudo isto em um. Estas são as histórias de quatro portugueses que cuidam de idosos 24h por dia, num país estrangeiro.

Duas horas por dia de pausa. Dois ou três meses seguidos a trabalhar. Todo o tempo livre que têm por dia equivale mais ou menos a uma hora de almoço um pouco mais prolongada para qualquer outra pessoa — e é todo o tempo de que dispõem para si enquanto estão ao serviço das pessoas de quem decidiram cuidar, como se fossem a família com quem eles já não podem contar.

A primeira pessoa que Pamela Saraiva teve ao seu cuidado foi um idoso em estado terminal. “Cheguei a meio de dezembro ao Reino Unido, o primeiro senhor de quem cuidei tinha vindo para casa morrer, eu fui acompanhá-lo nos seus últimos dias. Apesar de haver sempre uma enfermeira por perto, era eu que lá estava com ele em todos os momentos. Passámos o Natal e ele morreu no fim de janeiro, comigo lá, ao lado dele”, conta a jovem de 28 anos, ao telefone a partir do Porto, onde está a passar férias. Pamela já tinha cuidado da sua avó durante uma doença prolongada, além de ter sido monitora numa colónia de férias para crianças portadoras de Trissomia 21.

É no Reino Unido que existe mais procura para este tipo de cuidados 24h00 por dia — chamado “Live In care”. Os clientes são, na sua maioria, idosos com situações financeiras acima da média que preferem ter alguém a cuidar deles em casa do que estarem sujeitos aos cuidados de um lar. Num país com 64 milhões de pessoas, 11 milhões são idosos. É um número superior a toda a população de Portugal. Os especialistas dizem que este tipo de cuidados é o futuro, porque não existirão nem lares nem camas suficientes em hospitais para acomodar toda a gente.

"Cheguei a meio de dezembro ao Reino Unido, o primeiro senhor de quem cuidei tinha vindo para casa morrer, eu fui acompanhá-lo nos seus últimos dias. Apesar de haver sempre uma enfermeira por perto era eu que lá estava com ele todos os momentos. Passamos o natal e ele morreu no fim de janeiro, comigo lá, ao lado dele".
Pamela Saraiva, formada em Educação Social e cuidadora a tempo inteiro no Reino Unido

“Por muito luxuoso que seja, há uma coisa que falta nos lares: proximidade. Há imensas formalidades que têm que se seguir. Nos lares é muito mais difícil os cuidadores saberem o que é que cada pessoa gosta de fazer, o que é que os espevita, os exercícios intelectuais e físicos que mais os ajudam a manterem-se sãos, porque há muita gente a necessitar de atenção. Para não falar das suas comidas preferidas, por exemplo, ou das rotinas que mantinham, que, num lar, não conseguem manter”, diz Pamela.

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É que apesar de não pagarem alojamento nem comida, e, muitas vezes, viverem em autênticas mansões de ex-CEOs de farmacêuticas, atrizes, escritores ou embaixadores, o trabalho está longe de ser brando. É preciso levar as pessoas da cama para a casa de banho, dar-lhes banho, vesti-las, levá-las a passear, cozinhar, limpar a casa, dar a medicação, gerir o orçamento da casa e pagar contas quando a pessoa já não tem capacidade para o fazer, ir às compras, e qualquer outro imprevisto que possa surgir — e surgem sempre.

Além disso, os períodos de trabalho seguidos, com apenas duas horas de folga por dia, podem chegar às 10 semanas. O reverso da medalha é a possibilidade de tirar um longo período de férias, que, dependendo das empresas, pode ir até três meses. Durante esse tempo é uma outra pessoa que toma o lugar do cuidador.

Pamela está de regresso a Portugal, depois de períodos intercalados de três meses em casa de seis famílias. Tirou a licenciatura em Educação Social na Escola Superior de Educação do Porto e queria construir a estabilidade que os empregos esporádicos e “sempre a recibos verdes” em Portugal não tinham, até ali, permitido.

Poder poupar com alojamento, alimentação e transportes, e receber um ordenado bastante razoável (a maioria das agências de recrutamento prometem 500 libras, 565 euros, por semana), pesou na decisão de Pamela, mas o que a fez mesmo mudar foi saber que, neste modelo de cuidado, “estaria a cuidar de pessoas idosas a tempo inteiro, que não têm família ou não a têm por perto”.

Em agosto Pamela regressa ao Reino Unido, a Cambridge, à habitante solitária do challet vitoriano, uma senhora polaca refugiada, onde irá passar 22 das 24 horas do dia e à sua história triste, que Pamela apenas contará ao Observador quase no fim da conversa, da mesma forma que a paciente só mais tarde a partilhou com ela.

O mais difícil — e também o mais fascinante — é conseguir ver além da finalidade de tudo. As pessoas de quem Pamela cuida, diz, “têm sempre conseguido” entender que envelhecer é um processo necessário.

O Kings College, em Cambridge, Reino Unido, onde Pamela cuida de uma senhora polaca a tempo inteiro iStock/GETTY IMAGES

A segunda casa onde esteve foi em Oxford, a cidade das Universidades e das “segundas habitações” de campo de deputados no meio de enormes extensões de floresta. “Esse casal falava tanto do passado”, lembra Pamela. Compreensível. Ela tinha sido assistente de bordo, ele tinha sido diretor de uma grande farmacêutica na Suíça. Viveram um amor atmosférico, umas vezes encontravam-se na ópera de Viena, outras nos Alpes, outras no bar de Heathrow, onde se conheceram. Mas, agora, ela tem esclerose múltipla e ele Parkinson.

"As horas más de alguém com esclerose são mesmo muito más. São horas e horas de dor. Acabas por testemunhar os piores momentos das vidas das pessoas e isso faz-te aprender muito. As pessoas precisam que alguma coisa as alivie e rápido. Aquelas pessoas sabem que vão morrer em breve". Mesmo assim, conta Pamela, quando esses momentos passam, "eles reagem com ainda mais força de viver".

Os cuidados são diários, ininterruptos. Os pacientes exigentes, reivindicativos.

“As horas más de alguém com esclerose são mesmo muito más. São horas e horas de dor. Acabas por testemunhar os piores momentos das vidas das pessoas e isso faz-te aprender muito. As pessoas precisam que alguma coisa as alivie e rápido. Aquelas pessoas sabem que vão morrer em breve”. Mesmo assim, conta Pamela, quando esses momentos passam, “eles reagem com ainda mais força de viver”.

Esses momentos maus dos doentes são os momentos maus dos cuidadores também. “Ficas perdido, impotente”. Pamela conta como ser cuidadora a acalmou. “Uma vez fiquei a cuidar de uma senhora que, depois de um acidente vascular cerebral, passou a só conseguir dizer duas palavras, dois sons, e tinha que comunicar comigo apenas através daqueles dois sons”, começa. “Imaginei-me na situação daquela pessoa: uns dias antes ela podia falar, depois deixou de poder. Só colocando-me no seu lugar consegui manter a calma, porque quem tinha direito de a perder era ela e não eu”, conta a jovem.

Agora, outra vez em Cambridge, vai para casa da tal senhora polaca onde já esteve antes e que lhe revelou a sua história. Teve um AVC recentemente e pediu à empresa de recrutamento que Pamela regressasse para cuidar dela. É refugiada de Treblinka, um dos maiores campos de concentração nazis na Polónia ocupada, onde terão morrido quase um milhão de pessoas. Entre as quais os seus pais. Apesar de se ter tornado uma professora respeitada no ensino superior britânico, está hoje sozinha. Ou “sozinha comigo”, como diz Pamela, que também se sente bastante só.

"Um vez fiquei a cuidar de uma senhora que, depois de um acidente vascular cerebral, passou a só conseguir dizer duas palavras, dois sons, e tinha que comunicar comigo apenas através deles. Imaginei-me na sua situação desesperante, de até há pouco tempo ter conseguido falar e explicar-me e ter deixado de poder. Foi assim que consegui manter a calma, porque quem a podia e tinha direito de perder era ela e não eu".
Pamela Saraiva, formada em Educação Social e cuidadora a tempo inteiro no Reino Unido

“Apesar de termos a possibilidade de tirar longos períodos de férias, nunca estamos nem num lado nem no outro, nem em Portugal nem aqui. Não tens hipótese de fazer amigos, só quando um casal tem dois cuidadores, e acabas por ter uma companhia”. De resto, ir preenchendo um calendário social é difícil. “Nunca podemos sair de casa por mais de duas horas e essas duas horas nem sempre são à mesma hora”. Os amigos? “Estão na internet”, desabafa.

Das praias de Cabo Verde para a neblina de St. Johns Wood

No início, Marina achava que estava a fazer isto mais por ela do que pelas pessoas que viria a ajudar. A noção da importância do trabalho que faz chegou mais tarde — mas em força — quando, logo no primeiro mês, se apercebeu do grau de dependência que estes idosos têm em relação aos seus cuidadores.

Originalmente de Albergaria-a-Velha, no distrito de Aveiro, Marina estudou massagem e medicina alternativa. E qual o melhor sítio para colocar em prática o seu conhecimento do que nas praias de Cabo Verde? Brasileira de origem, mas “portuguesa desde os 11 anos”, Marina, agora com 36 anos, emigrou para a Ilha da Boavista e lá esteve, com os pés enfiados na areia, ou atrás do balcão do seu restaurante, ora atrás de uma maca de massagens, coberta de toalhas de turco brancas, durante seis anos.

A vida era “de festa constante” mas Marina sentia que não estava, como ela diz, “a ter um efeito positivo no mundo”. Sempre lhe custou “trabalhar apenas para pagar contas”. Estava à procura de alguma coisa “com uma componente de desafio emocional”. Já tinha amigos a fazerem este trabalho e decidiu contactar alguns pelo Facebook. “Fui trocar o calor e a praia e a noite pela mais séria responsabilidade do mundo: cuidar de alguém, mas foi uma necessidade que senti”, diz ao Observador a a partir da casa onde mora com o casal de quem cuida, no bairro de St. John’s Wood, um dos mais caros da zona ocidental de Londres.

"No início tinha que lhe dar banho, tirar da cama, tinha que a pôr numa cadeira especial para ir à casa de banho, fosse a meio do dia ou, constantemente, durante a noite. Tive que fazer comida, levar a comida à cama, ir buscar tudo o que ela me pedisse porque estava imobilizada. Estava-me quase sempre 'a passar' no primeiro mês".
Marina Bezerra, cuidadora e naturoterapeuta

É a primeira a admitir que, até ter ido viver com esta família, com quem está desde março, com intervalos, “só tinha feito mais ou menos o que queria”. Viver fora do país, encontrar casa, aprender línguas, viver com pouco dinheiro, em casas partilhadas com 10 pessoas ou mesmo na areia da praia nunca foi a parte assustadora. O desafio era, sim, ” o da rotina e o da estrutura”.

Foi ajudar uma senhora que tinha partido o pé, que não se conseguia mexer. O tratamento pós-operatório foi pesado, mais pesado do que qualquer bandeja de cervejas que tivesse carregado no seu restaurante. “No início tinha que lhe dar banho, tirar da cama, tinha que a pôr numa cadeira especial para ir à casa de banho, fosse a meio do dia ou, constantemente, durante a noite. Tive que fazer comida, levar a comida à cama, ir buscar tudo o que ela me pedisse porque estava imobilizada. Estava-me quase sempre ‘a passar’ no primeiro mês”, admite a jovem massagista.

Oxford, a cidade univesitária por excelência no Reino Unido onde Pamela também cuidou de um casal iStock/GETTY IMAGES

As personalidades das duas não poderiam ser mais diferentes. Marina apelida-se a ela mesma de “total freak”; a senhora de quem (ainda) cuida é uma inglesa de classe alta que come de talheres de prata, toca piano e trabalhou nos bastidores de alguns dos mais lendários desfiles de moda. “Já consigo dormir a noite inteira agora e a nossa relação melhorou bastante, mas antes de melhorar achei que só ia continuar a afundar”.

Ali estava Marina, com contas para pagar em Portugal e em Cabo Verde, um espírito livre com três décadas de vida, sujeita às exigências diárias de alguém que mal conhecia. “Apercebi-me de que eles não viam o nosso trabalho da mesma forma que eu via. Eles acham que as cuidadoras são empregadas domésticas e eu sentia-me tratada assim. Quando eles se esqueciam da minha pausa eu ficava mesmo triste e pensava, ‘como é que te podes esquecer que eu estou a cuidar de ti há horas?'”.

Os conflitos entre Marina e o casal eram cada vez mais frequentes. “Eles não entendiam porque é que eu perguntava sempre o porquê de uma ou de outra ordem que me estavam a dar e isso causou alguns conflitos. Os ingleses, por vezes, não sabem muito bem como explicar o que os irrita, o que estão a sentir, nem perguntar ao outro o que está a sentir”, diz Marina. Uma barreira cultural da qual nos voltariam a falar.

"Do ponto de vista pessoal aprendi que tens que viver a vida com a perspetiva de ensinar e aprender. Cada vez quero tirar mais mentira de dentro de mim, mais ego, deixar cair as máscaras. Por exemplo: eu ficava irritada com coisas estúpidas, ficava chateada se a pessoa não concordasse comigo, afinal ainda havia ali muito ego e neste trabalho aprendes a pôr-te em segundo plano, a fazer do outro a tua prioridade".
Marina Bezerra, cuidadora e naturoterapeuta

Mas como não dava para aguentar mais, Marina decidiu fazer jus à fama de gente emocional e quente que têm os latinos no Reino Unido e um dia sentou-se a falar com eles. Disse-lhes que se sentia magoada, pouco valorizada, que fazia o melhor que podia, mas que parecia sempre de menos. Passadas umas horas de silêncio, a senhora chamou-a e disse: “Já sei o que estás a fazer, estás a tentar fazer-me sentir culpada”. Desde aí, contudo, criou-se o espaço necessário para queixas, quebrou-se aquela barreira do “não perguntes que eu também não digo” e isso já foi um grande passo.

Até 10 de agosto Marina ficará por aqui. Espera ansiosamente pelas suas horas livres, durante as quais pratica ioga. Vai depois para a Índia, estudar e aprofundar os seus conhecimentos na área da medicina natural. Esta experiência, diz, “é uma das fases da sua metamorfose” entre o “animal social” e “uma pessoas que se analisa e se conhece melhor”.

E a aprendizagem superou todas as suas expectativas. “Do ponto de vista pessoal aprendi que tens que viver a vida com a perspetiva de ensinar e aprender. Cada vez quero tirar mais mentira de dentro de mim, mais ego, deixar cair as máscaras. Por exemplo: eu ficava irritada com coisas estúpidas, ficava chateada se a pessoa não concordasse comigo, afinal ainda havia ali muito ego e neste trabalho aprendes a pôr-te em segundo plano, a fazer do outro a tua prioridade.”

Hoje diz-se muito mais organizada, rotineira, com muito mais respeito pelas pessoas que têm responsabilidades na vida, espartilhos que nunca quis experimentar. “No trabalho, assim que me falavam em subir de posição, ou ter mais responsabilidades, eu dizia que não”. Tal era a aversão à responsabilidade, que Marina começou a achar que não seria nunca capaz de ter uma família. “Sempre me achei demasiado louca, que nunca na vida ia ser responsável a esse ponto, mas agora sei que sou capaz de organizar uma casa, uma dispensa, um orçamento, de acordar de manhã e a meio da noite para cuidar de alguém que não sou eu. Hoje posso dizer que se não tiver filhos é porque não quero e não porque me acho incapaz de cuidar deles.”

Depois de terminar esta temporada vai parar três meses. Em dezembro quer voltar para cuidar de pessoas com Alzheimer, porque, diz, quer ter “um papel mais ativo no estímulo mental de pessoas menos lúcidas e fazer com que cada dia seja mais significativo do que anterior”.

“As famílias não devem cuidar a tempo inteiro dos seus doentes”

Nem Pamela nem Marina estão muito preocupadas com o Brexit, isto apesar de Pamela já ter sido alvo de comentários racistas por parte do marido de uma senhora de quem cuidou, que, aparentemente, queria uma inglesa branca. Mas isso foi antes do Brexit e nenhuma das duas pensaria deixar o emprego por essa razão. Mas nem toda a gente pensa assim. Filipe Amorim, fundador do Manda-te, uma plataforma que faz a ponte entre empregadores lá fora e potenciais emigrantes, diz que “nos últimos dois meses a área de recrutamento para cuidadores no Reino Unido passou um pouco para segundo plano, porque a questão do Brexit tem assustado bastante as pessoas”. No espaço de um ano, 2016, a empresa de Filipe Amorim colocou 50 pessoas no Reino Unido, para trabalharem neste regime de “live in” mas recebeu mais de 5.000 candidaturas.

"Sempre me achei demasiado louca, que nunca na vida ia ser responsável a esse ponto mas agora sei que sou capaz de organizar uma casa, uma dispensa, um orçamento, de acordar de manhã e a meio da noite para cuidar de alguém que não sou eu. Hoje posso dizer que se não tiver filhos é porque não quero e não porque me acho incapaz de cuidar deles".
Marina Bezerra, cuidadora e naturoterapeuta

“As duas empresas com as quais trabalhamos no Reino Unido são extremamente exigentes: os candidatos têm que ter um inglês fluente, experiência na área e um perfil com as soft skills necessárias.” Mas, no mercado em geral, diz Filipe Amorim ” há de tudo”, incluindo recrutadoras “que recrutam para empresas que não exigem experiência na área nem inglês fluente e, nestes casos os cuidadores poderão não ter condições tão boas de trabalho nem uma experiência tão enriquecedora, havendo, por vezes, mal entendidos”.

Helena Ribeiro, da agência de recrutamento Go Work, recebe todos os dias dezenas de pedidos de empresas inglesas, irlandesas e escocesas que precisam de cuidadores: “Se tivéssemos 30 pessoas hoje a quererem ir, colocaríamos, sem problema, todas elas”. Oferta de trabalho não falta, e com condições “que aqui não se encontram”, diz Helena Ribeiro, mas o que se vê, há muita gente que não quer ir. “Os jovens podiam abraçar outros desafios, conhecer outros países, alargar as suas perspetivas profissionais, mas muitas vezes desistem de ir, talvez por medo do desconhecido. Nós contactamos as pessoas depois de enviarmos os seus currículos e eles serem escolhidos e muitos acabam por desistir”.

Susana Bastos, de 29 anos, também foi cuidadora. Já não é. Também não pensa deixar Londres e fala com o Observador dentro do comboio, que a leva de casa ao serviço de proteção de menores onde trabalha, avaliando as condições que os pais têm — ou não — para cuidar dos seus filhos.

Londres, onde Marina e Susana cuidam, ou já cuidaram, de pessoas a tempo inteiro VICTOR HUANG/GETTY IMAGES

Getty Images

Durante quatro meses Susana cuidou de um jovem com 25 anos incapacitado por uma doença degenerativa que não conseguia fazer nada sem ajuda. “É um trabalho psicologicamente desgastante, incrivelmente stressante e muito cansativo. É preciso estar-se mesmo muito bem preparado para lidar com isso”. Susana até estava, porque tinha formação em assistência social e tinha trabalhado em Portugal com pessoas igualmente dependentes mas “se não fosse isso seria impossível lidar”.

“As nossas expectativas em relação à juventude, a nossa perceção de como é suposto que vivamos esses anos altera-se assim que nos deparamos com alguém jovem que pode nunca mais melhorar. Há muita gente que precisa de ajuda, mas é uma realidade à qual nós não temos acesso se não fizermos um trabalho destes ou parecido com este”, diz Susana.

A procura por estes cuidados vai “crescer” e não é só porque há cada vez mais idosos. Na opinião de Susana Bastos, o serviço de acompanhamento permanente de alguém doente não deve ser feito pela família mas sim por profissionais. Acredita que as pessoas que tentam cuidar dos seus filhos ou dos seus pais acabam por recorrer ao cuidado profissional de um cuidador, e nem sempre é por não terem tempo livre para isso.

"As nossas expectativas em relação à juventude, a nossa perceção de como é suposto que vivamos esses anos altera-se assim que nos deparamos com alguém jovem que pode nunca mais melhorar. Há muita gente que precisa de ajuda mas é uma realidade à qual nós não temos acesso se não fizermos um trabalho destes ou parecido com este".
Susana Barros, especialista em apoio a menores, assistente social e cuidadora

“Ao fazer isto apercebi-me da importância do trabalho de um profissional de cuidados que não pode — ou não deve — ser feito pela família da pessoa doente. É altamente desgastante para uma pessoa próxima estar sujeita àquela violência, psicológica principalmente. Nós somos pagos para aquilo, temos que saber gerir o envolvimento emocional. Se forem as famílias a fazer isto, isso pode ter repercussões emocionais para todos”, diz Susana.

Do cuidado “rotativo” para a dedicação a uma só pessoa

Mesmo com 51 anos, Sónia Lima decidiu que estava na altura de mudar. Hoje vive em Horsham, West Sussex, no sudeste de Inglaterra, uma cidade com cerca de 50 mil habitantes, onde cuida de pessoas idosas há cerca de um ano e meio. Sempre trabalhou como secretária e tradutora, entre Alenquer e Lisboa, e, quando em 2015, a empresa para a qual trabalhava fechou, já divorciada, pensou que estava na altura de fazer alguma coisa complemente diferente. Uma amiga também tinha ficado desempregada na mesma altura e desafiou-a. “Fui com a minha amiga para o Google pesquisar sobre trabalhos fora, num sítio onde eu pudesse dar uso ao meu bom inglês e encontramos uma empresa de recrutamento na área do cuidado a idosos em Horsham. E foi isso.”

Durante o seu primeiro ano, Sónia tinha uma “escala”: as casas que visitava, os idosos que ajudava, variavam todos os dias. Durante oito horas de trabalho, Sónia visitava várias pessoas, durante o tempo necessário. “Fazia quase tudo o que uma profissional da área de geriatria, ou uma enfermeira, faria: levá-los às compras, cozinhar, dar os medicamentos, dar o almoço, aquecer o almoço, mudar o catéter duas ou três vezes ao dia, pô-los na cama, dar-lhes banho, na cama ou no chuveiro, mudar as fraldas — mudar fraldas é o pior”, diz Sónia.

“Ninguém pensa no fim da vida antes de ter que lidar com ele. Imaginemos um velhinho, sentado na cama o dia todo, vai sofrer de obstipação e depois isso tem que se resolver com medicamentos e é este ciclo sempre, é absolutamente horrível”. Começou a entender que não tinha tempo para falar com as pessoas de quem cuidava, estava sempre com pressa para ainda ir ver mais um doente, mais um idoso e a solidão das pessoas, quando as cuidadoras se vinham embora, tornou-se um peso permanente na sua consciência. “Custa-me sempre muito ver velhotes que ainda estão capazes, ainda têm memória, e ficam enfiados em casa todos os dias. É uma tristeza, abandonados pela família, que trabalha ou estão ocupados com outras coisas. É como se estivéssemos a olhar para objetos que já fizeram o que tinham a fazer, criaram os filhos e está feito”, diz Sónia.

O cuidado que prestava era um cuidado fragmentado, sem tempo para as tais conversas, tão instável que Sónia começou a notar “a perturbação” e a “agitação” nos idosos que visitava por não terem sempre a mesma pessoa a cuidar deles. “Nunca é sempre a mesma pessoa, nem à mesma hora, não cria rotina, não dá segurança nem tempo para as pessoas começarem a confiar em nós e irem partilhando coisas.” No fim do verão, Sónia irá então dedicar-se apenas a uma senhora, que precisa dela “psicologicamente”, diz. Essa senhora é uma escritora famosa, que Sónia pede para mantermos no anonimato.

Numa dessas visitas que fazia a várias casas, conheceu essa escritora, que, um dia, pediu a Sónia que lá passasse a noite. A escritora de Sónia tem 82 anos, separam-nas trinta anos, é quase como uma aluna, a Sónia. “Ela é incrível, é escritora, tem uma cultura muito acima da média, eu também já escrevi um livro, uma espécie de guia prático para os ensinamentos na Bíblia, mas ela já escreveu sobre tudo: a história da Royal Academy, sobre cavalos, sobre pontuação e gramática, sobre a guarda privada da rainha, tudo”, conta Sónia.

"É muito duro, eu tinha medo até de dormir, de ir à casa de banho porque não sabia quando é que ela se podia engasgar, ficar com falta de ar, cair pelas escadas, sair de casa sozinha pela noite dentro".
Sónia Lima, cuidadora, tradutora e escritora

Mesmo assim, as diferenças culturais ainda se interpõem entre as duas, como um tecido semi-opaco. “A nossa cultura é diferente. Eles como não são tão abertos como nós, não falam dos problemas, isso leva, por vezes, a presumirmos coisas erradas e a agirmos de forma errada porque falta diálogo.”

Apesar de ter “dado uns trambolhões na vida”, a escritora de quem Sónia cuida, continua lúcida o suficiente para jogar Bridge, para escrever, para saber o que aceita e o que não aceita que lhe digam. E, dentro da sua cabeça, armazenou dezenas de poemas aos quais acede como quem consulta um livro com índice. “Às vezes estamos a conversar e uma palavra qualquer fá-la lembrar de um poema: recita esse e mais 30 que tem na cabeça, disponíveis, sobre dezenas de temas ou autores.”

No armário, a escritora esconde as suas frustrações e é Sónia que lá está quando ela lá o abre, muito raramente. Agora, como quer escrever uma autobiografia, as incursões na memória têm sido mais frequentes e é aqui que volta a dificuldade em comunicar, que Sónia considera ser a génese do seu mal-estar emocional: “O meu papel agora é ajudá-la a compilar os materiais para a sua autobiografia, ajudá-la a escrevê-la, a ver se ela ganha um pouco mais de força, e de coragem, para falar com a família. Sente-se traída pela família e pelo isolamento a que foi votada pelo mundo das artes, mas depois de anos e anos sem dizer nada a quem precisava de ouvir, fica tudo muito mais complicado”.

Neste processo, as duas aprendem coisas diferentes. A escritora aprende sobre a necessidade de diálogo e Sónia aprende sobre poetas britânicos — e sobre si mesma. “A nossa valorização pessoal também aumenta, sei que estou a ajudar alguém a ter uma maioria qualidade de vida, a não passar por algumas experiências extremamente dolorosas completamente sozinha”, diz.

Sónia já tinha feito “Live In” outras vezes, e, como todas as pessoas com quem o Observador falou, considera um modelo de cuidado “completamente esgotante”. Na primeira vez que o fez vivia com uma senhora que tinha constantes ataques de asma e apneia, além de sofrer de demência. “É muito duro, eu tinha medo até de dormir, de ir à casa de banho porque não sabia quando é que ela se podia engasgar, ficar com falta de ar, cair pelas escadas, sair de casa sozinha pela noite dentro.”

A proximidade diária com a decadência do corpo e da mente provocou uma espécie de abanão em Sónia, que se apercebeu que tinha que aprender, rapidamente, a amadurecer. Apesar de já ter filhos e ser uma mulher de meia idade, nunca se tinha lembrado que, tal como aprendemos a andar, também temos que aprender a envelhecer: “Crescemos, aprendemos, temos filhos, tornamo-nos trabalhadores competentes e, quando chegamos a velhos deixamos de saber viver. Temos que aprender a envelhecer. Mesmo quando a mente não envelhece e estamos presos num corpo que eventualmente nos vai levar a mente que ainda pensa tão bem, temos que saber viver com isso”, diz Sónia.

Muitas vezes, antes de entrar ao trabalho, ou nas suas horas de pausa, Sónia estaciona o carro e põe música alta: abre as portas e dança dez minutos, fazendo dos passeios uma pista de dança e dos olhares de gozo um antídoto contra a vergonha.

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