No final do século XIX, uma teoria científica avançada por um médico italiano fez crescer o interesse dos especialistas em torno das tatuagens. Segundo Cesare Lombroso, pai da medicina criminal, quem tinha tatuagens tinha uma predisposição maior para cometer crimes. Ficava assim explicado o interesse de determinadas pessoas em cobrir o corpo de tinta — eram criminosos.
Apesar de ter surgido em Itália, a teoria teve ecos em outros países europeus, nomeadamente Portugal. Rodolfo Xavier da Silva, diretor do Instituto de Medicina Legal de Lisboa, dedicou-se afincadamente ao estudo das tatuagens, constituindo uma coleção impressionante que ainda permanece guardada nos armários do Instituto. Estima-se que, em tempos, tivessem sido centenas — retalhos de pele tatuada retirados dos cadáveres de criminosos, desenhos à escala e outros em tamanho real. Hoje são quase 70 que, pela primeira vez, saíram da delegação lisboeta do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciência Forense para integrarem uma exposição do MUDE que, enquanto permanece fechado para obras, tem procurado estender-se fora de portas.
O mais profundo é a pele foi inaugurada esta quinta-feira no Palácio Pombal, na Rua do Século, e é aí que vai permanecer até outubro. Reúne 61 fragmentos de pele humana tatuada (os restantes tiveram de ficar para trás por não estarem em condições de serem expostos), guardados em frascos, recolhidos de corpos de criminosos autopsiados no Instituto de Medicina Legal nas primeiras quatro décadas do século XX. Espalhados por algumas das enormes salas do antigo palacete seiscentista (gerido pela EGEAC desde 1997), estas surgem acompanhados de documentação vária que ajuda a construir um retrato sociocultural das tatuagens e de quem as fazia em Portugal no início do século XX.
Com curadoria do médico Carlos Branco, do Instituto Nacional de Medicina Legal, e de Catarina Pombo Nabais, coordenadora do SAP Lab do Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa, a exposição encontra-se dividida em vários núcleos temáticos, onde é também possível encontrar uma componente filosófica e antropológica, que liga cada um deles. “A exposição tem este valor acrescentado — tem também uma perspetiva filosófica”, frisou Catarina, durante uma visita guiada, esta quinta-feira. É esta perspetiva filosófica que ajuda a explicar o aparecimento das ciências humanas no século XIX e, claro está, o interesse suscitado pelas tatuagens.
Além disso, as tatuagens podem — e devem — ser abordadas de uma perspetiva artística. Esse lado “do desenho” foi, aliás, um dos motivos que levaram Bárbara Coutinho, diretora do MUDE e uma das coordenadoras da exposição, a incluir a coleção no programa fora de portas do museu. Esse lado artístico ganhará uma maior ênfase na primeira sala da mostra onde, debaixo de um teto barroco de fazer inveja, cinco tatuadores portugueses — Cristiano Fernandez, Francisco Charrua, Hugo Makarov, Ana Silvestre e Tânia Catclaw — vão recriar ao vivo e a cores algumas das peças expostas.
Mas há mais: também vai haver tatuagens ao vivo. Na “antecâmara”, para usar as palavras da diretora do Museu do Design e da Moda, vão estar também expostas duas peças de joalharia — uma de Jean-Paul Gaultier, da própria coleção do MUDE, e outra de Olga Noronha, “que está ligada à medicina”. Trata-se de uma prótese, medicamente prescrita, com uma tatuagem, “que nos faz refletir sobre as razões profundas que levam um homem ou uma mulher a tatuar-se”, frisou Bárbara Coutinho, apontando a pluralidade de abordagens de O mais profundo é a pele — medico-legal, filosófica, artística e cultural. A exposição inclui ainda várias referências literárias — citações de autores como Mia Couto ou Roland Barthes.
Tatuagens, uma coisa de criminosos
A coleção do Instituto de Medicina Legal deve-se ao esforço e dedicação de um único homem — Rodolfo Xavier da Silva, médico e destacado membro do Partido Republicano Português que, durante a Primeira República, exerceu diversos cargos ministeriais de grande importância. Foi também diretor do Instituto de Medicina Legal de Lisboa, numa altura em que havia três organismos do género a funcionar em Portugal (hoje existe apenas um, dividido em três delegações). Seguindo uma teoria científica da épica, Xavier da Silva procedeu à recolha de centenas de tatuagens, que hoje fazem parte do arquivo do Instituto de Medicina Legal e Ciência Forense, sediado em Coimbra.
Essa corrente teórica tinha sido avançada pelo italiano Cesare Lombroso, o pai da criminologia moderna. Segundo Lombroso, o homem que se tatuava tinha “predisposição para cometer crimes”. Essa teoria, que começou por se difundir primeiramente em Itália e em França, “teve um eco em Portugal e teve um protagonista, o Dr. Rodolfo Xavier da Silva”, explicou Carlos Branco. É que, além de diretor do Instituto de Medicina Legal de Lisboa, Xavier da Silva era ainda diretor do Estabelecimento Prisional da capital e era através dos tribunais que lhe chegavam às mãos a maioria dos casos.
“O Instituto tem uma função pericial e, portanto, é importante ser meticuloso no registo das observações, até porque trabalha com tribunais e os relatórios têm de ser minuciosos. Portanto, havia o hábito de registar nos relatórios todas as alterações que o corpo tivesse. As tatuagens são, obviamente, uma dessas alterações“, esclareceu ainda o médico. Estas eram registadas em fotografia e em desenho, feito à escala (em modelos anatómicos pré-existentes) ou em tamanho real. Em qualquer uma das modalidades, o objetivo era sempre o mesmo: reproduzir a imagem o mais fidedignamente possível, com a sua localização exata no corpo do indivíduo. Os desenhos podiam ser feitas a partir de cadáveres ou de indivíduos ainda vivos. Até porque, ao contrário do que muitas vezes se pensa, o Instituto de Medicina Legal não trabalha só com mortos. As amostras de pele guardadas por Xavier da Silva eram, obviamente, retiradas de cadáveres.
Foi esta necessidade “de fazer o registo pericial”, aliada à popularidade da teoria científica de Cesare Lombroso que, no “arquivo histórico do Instituto, que se mantém desde 1899, existem tantos registos, estudos e protagonismo dado às tatuagens”, afirmou Carlos Branco. Mas, além “do estudo antropológico e sociológico da pessoa no seu contexto, dentro da medicina legal”, o estudo das tatuagens contribuiu também com “um lado identificativo”, como fez questão de salientar a diretora da delegação sul, Maria Cristina de Mendonça, que ajudou a coordenar a exposição. “As tatuagens são elementos identificados. São hoje e há o eram então”, disse, durante a visita guiada desta quinta-feira.
Apesar da particularidade da coleção, não se pense que as amostras de tatuagens são exclusivas da sede lisboeta. Na delegação do centro, em Coimbra, e na do norte, no Porto, também existem peças semelhantes. “A corrente científica era nacional. Aliás, internacional e, portanto, foi-se recolhendo noutros locais”, explicou Maria Cristina de Mendonça. A diferença é que, nas outras coleções, não existem livros de registo. Ou seja: não há forma de saber de quem eram as peças, nem se pertenciam a um homem ou a uma mulher.
“O curioso da coleção é que, por um lado tem as imagens recolhidas — de indivíduos vivos e de cadáveres –, e por outro há um registo sistematizado dessas tatuagens. Registo esse que tem o nome da pessoa, idade, a sua proveniência, porque se tatuou, quem o fez, os motivos e coisas curiosas do ponto de vista médico, como se depois infetou, se tiveram problemas em termos da técnica que se usava na altura… Foi-se juntando um espólio muito grande e que tem esse enlace com a forma de estar na vida dessas pessoas, com o simbolismo do desenho. Esta exposição tem a característica muito curiosa de trazer de novo [à vida] essas pessoas, que eram anónimos.”
Antes da exposição O mais profundo é a pele, o espólio foi exposto uma única vez, há vários anos, no núcleo museológico do próprio Instituto de Medicina Legal. Para a exposição do MUDE, as peças foram todas restauradas pelo médico Carlos Branco, num processo complexo que incluiu a limpeza de todas as mostras e o restabelecimento do “equilíbrio biológico” da pele. Antes do restauro, muitas das tatuagens mal se conseguiam perceber, esbatidas pelo tempo.
A pele tatuada dos delinquentes de Lisboa
Depois da sala dos tatuadores, a mostra arranca com uma série de tatuagens “religiosas”. “Tentámos explorar o próprio espaço, que é lindíssimo”, disse Catarina Pombo Nabais. “Decidimos colocar aqui todas as tatuagens religiosas com dois apontamentos artísticos — a música da Sade, que acompanha um dos vídeos, e um grande formato que fizemos a partir de uma das fotografias originais da coleção.” A imagem, colocada sobre uma espécie de altar, mostra um homem de costas, totalmente tatuado. Apesar de não poderem relevar o nome do “criminoso”, Catarina Pombo Nabais e Maria Cristina de Mendonça adiantaram que a fotografia foi tirada em 1935. Ou seja, “durante o período de 1910 a 1940”, onde se insere a exposição.
Dessa primeira sala, semelhante a uma capela, segue-se para os dois espaços dedicados à documentação, que incluem também alguns registos do arquivo da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais. No primeiro desses espaços, foi colocada uma cadeira antropométrica, que era utilizada para medir os criminosos de uma ponta à outra. Literalmente. “Até a orelha”, brincou a diretora do Instituto de Medicina Legal. Esta é um dos muitos objetos que permite fazer uma ligação com a área da Filosofia e, mais precisamente, com Michel Foucault.
“[O filósofo] Michel Foucault, no livro Vigiar e Punir e também no artigo ‘Os Homens Infames’, tenta explorar a compreensão deste fenómeno histórico e científico [das tatuagens]”, explicou Catarina Pombo Nabais, acrescentando que a emergência das ciências humanas no século XIX (e, neste acaso, da Antropometria, isto é, do estudo das medidas e dimensões das várias partes do corpo humano) está precisamente relacionada com a necessidade de conhecimento do homem. “De conhecer o homem e, ao mesmo tempo, de controlar o homem. Havia esta ideia de quanto mais conhecemos o indivíduo, melhor o podemos controlar.” Daí a necessidade de estudar o ser humano, centímetro a centímetro.
A segunda sala inclui vários registos, do Instituto de Medicina Legal mas também da Direção-Geral dos Serviços Prisionais que mostram “o tatuado estereotipado português”, “um criminoso que tinha um tipo de vida muito típico”. “Movia-se pelos bairros típicos da cidade de Lisboa — o Bairro Alto era um deles — e tinha um tipo de vida associado à marginalidade. Tinha amantes ou envolvia-se com prostitutas”, explicou Carlos Branco. “Este indivíduo era frequentemente preso, e temos aqui registos desses encarceramentos. Temos também um livro do diretor da prisão [de Lisboa], do século XIX, com a admissão dos presos e, nessa altura, já se registavam as tatuagens.”
Apesar de serem proibidas nas prisões, as tatuagens eram feitas entre os reclusos com uma máquina improvisada, geralmente uma simples agulha presa a um pau de fósforo. Os pigmentos eram muitas vezes feitos a partir das cinzas de papel queimado, ou com o que estivesse à mão. “Faziam-se particularmente na altura em que as pessoas estavam todas presas no mesmo compartimento“, disse Carlos Branco. “Era a prisão típica do século XIX. A cela é uma conquista arquitetónica dos presos já no século XX.”
Uns por estatuto, outros por amor
Numa outra sala do Palácio Pombal, decorada a rigor, foram expostas as tatuagens de carácter sexual ou erótico. Fazendo uma ligação com o Fado e com o lado mais boémio e erótico da sociedade portuguesa, o espaço, decorado com cortinas vermelhas e letras luminosas, inclui um estudo feito pelo Instituto José de Figueiredo da famosa obra de José Malhoa, Fado, de 1910. Uma reprodução à escala da pintura, permite ver na mão da mulher, Adelaide da Facada, cinco pontos tatuados. Mesmo ao lado, foi colocado “um estudo prévio que Malhoa terá feito em 1909, onde se vê que havia mais [tatuagens]”, referiu Bárbara Coutinho.
Quem eram os homens tatuados de Lisboa?
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Os especialistas acreditavam que os homens tatuados eram, essencialmente, criminosos. Moviam-se pelos bairros típicos da cidade de Lisboa, como o Bairro Alto, Mouraria ou Alfama, e tinham “um tipo de vida associado à marginalidade”, explicou Carlos Branco. “Muitas vezes tinham amantes ou envolviam-se com prostitutas.”
Então e as mulheres?
Estima-se que, no início do século XX, apenas 2% das mulheres tivessem tatuagens, uma prática que na altura era principalmente masculina.
Ao contrário dos homens, que preferiam motivos religiosos, políticos e até sexuais, as tatuagens femininas eram essencialmente inscritivas — eram eram nomes ou iniciais de amantes.
Apesar dos corações e inscrições que José Malhoa começou por pintar nos braços de Adelaide Facada, uma famosa meretriz do início do século XX, a verdade é que as tatuagens femininas eram coisa rara. Estima-se que apenas 2% das mulheres tivessem tatuagens e, muitas delas, eram prostitutas. A maioria das tatuagens eram inscritivas — eram nomes ou iniciais de amantes e, de acordo com os registos do Instituto de Medicina Legal, eram geralmente feitas para agradar aos homens. Nos documentos do Instituto, Catarina Pombo Nabais encontrou um caso muito peculiar — o de uma prostituta que tinha no peito a palavra “visconde”.
Nos homens, os motivos eram outros. “A tatuagem estava muito associada à marginalizada. Tatuavam-se porque isso conferia um estatuto de importância nos meios em que eles se movimentavam. E, por outro lado, também está frequentemente escrito que alguns deles se tatuavam por puro ócio. Estavam nas prisões e não tinham mais nada para fazer. Era uma das maneiras de se ocuparem. E também por imitação”, explicou Carlos Branco. “No caso dos marinheiros, era a tradição de se tatuarem a bordo ou nos portos.”
A exposição termina no pan-óptico, uma estrutura “arquitetónica de vigilância [que permite facilmente observar todas as partes de um edifício], que o Foucault explorou”, afirmou Catarina Pombo Nabais. Ao longo das pareces curvas do pan-óptico, foram dispostos vários frascos de tatuagens. A amostra mais antiga é 1912 e a mais recente da década de 1940. Porém, a tatuagem terá sido feita muito antes disso, isto porque as datas são referentes ao ano em que foram feitas as colheitas. Ou seja: as tatuagens terão sido feitas anos antes. Segundo os curadores, algumas delas serão, muito provavelmente, de finais do século XIX.
Rudimentares na forma e na execução (eram feitas em casa por amadores), as tatuagens portuguesas de então eram sobretudo de temas religiosos (as imagens de Jesus na cruz eram muito populares), políticos ou retratos de mulheres, desconhecidas ou nem tanto. Uma das imagens do Instituto de Medicina Legal, inclui uma reprodução de uma tatuagem da atriz Beatriz Costa. Sobretudo monocromáticas, eram feitas com pigmentos de cor preta, normalmente com tinta-da-china. Por vezes eram feitas fora de Portugal, e nessas é possível detetar uma outra qualidade de execução. “Há registo de tatuagens feitas na Guiné, em Hong Kong, em Nova Iorque, até. Por todo o lado do mundo”, afirmou Catarina. “E essas são realmente mais ricas, mais elaboradas.”
Independentemente da qualidade, uma coisa é certa: “Estes homens, só sabemos deles, porque foram objeto de estudo, porque seriam marginais”, afirmou Catarina Pombo Nabais. “No fundo, também eles tornaram as suas vidas em obras de arte e os seus corpos em obras de arte. Eram marginais, não eram pessoas que fossem ficar para a História e, no entanto, hoje estamos aqui a observar os vestígios e os documentos que há sobre essas vidas.” E essa é a parte interessante: “O homem infame acaba por ser o homem artista, o homem obra de arte.”
A exposição O mais profundo é a pele pode ser visitada entre 30 de março e 25 de outubro no Palácio Pombal, na Rua do Século, das 10h às 18h. Está aberta de terça a domingo.