Está nervosa. As palavras saem-lhe aos bochechos. Quando lhe perguntam pelo marido, piora. Baixa os olhos redondos e procura o chão. Recordações que ainda magoam, mesmo dois anos depois de arrancar os dois filhos de casa e pedir ajuda. Prepara-se, agora, para deixar a casa de abrigo onde aprendeu a viver uma vida nova. Será autónoma, dizem as técnicas. Ela acredita nisso. E tenta esquecer promessas de outrora. Aquelas que saíram da boca do homem que a convenceu a vir da Guiné para Portugal. A voz que lhe prometia que ela iria tirar um curso superior, trabalhar e ser feliz. Promessas caídas na primeira vez que ele lhe deitou a mão. E da segunda, quando disse que não repetia. E que falhou.
O casamento fora arranjado pela família. A tradição assim o impunha. A mãe, que dividia na Guiné o marido com duas outras mulheres, conhecia o homem. Disse-lhe que era um bom partido. Ania (nome fictício) aceitou. Trabalhava na altura como secretária na Secretaria de Estado da Juventude e do Desporto. Prometeram-lhe que, em Portugal, poderia estudar secretariado na Universidade. E ir mais longe.
Mal casou, engravidou. Foi há sete anos. O marido já estava em Portugal, mas esteve presente no nascimento do rebento. “A minha filha nasceu no Senegal. Ele foi lá e voltou. Eu ainda fui à Guiné tratar dos papéis para me juntar a ele. Tratei logo dos certificados de habilitações para depois estudar cá”, disse.
Foi viver para o seio de uma comunidade muçulmana. Famílias como a dela, que não tinham nascido em Portugal e que viviam num bairro dos arredores de uma grande cidade portuguesa. Aos 22 anos o marido anunciou-lhe que teria de esperar mais um ano para entrar na Universidade Lusófona. “Disse-me que só podia ir quando tivesse mais de 23 anos”. Ela aceitou. E engravidou outra vez. Ele acabou por dizer-lhe que o curso superior nunca passaria de um sonho. O seu lugar era em casa, a educar os filhos.
Tinha já dois filhos quando as agressões começaram. Na primeira vez que ele lhe bateu ela correu para o centro de saúde. Na parede um cartaz falava de “violência doméstica”. “Não sabia o que era”, admite. Uma psicóloga recomendada pela enfermeira que a acompanhou deu-lhe umas luzes do que seria. Disse que havia associações e locais de acolhimento onde podia ficar com os filhos, até conseguirem ter uma vida autónoma. Ela não quis mais voltar para casa.
Conseguiram-lhe um quarto numa pensão. Ania avisou a família mais próxima que saíra de casa. E que era ali que tentaria atravessar a ponte para uma vida nova. Eles não aceitaram a decisão. Foram ter com ela e obrigaram-na “a voltar para o casamento”. Promessas. Ele disse que não voltaria a tocar-lhe. Que a faria feliz. Até aos primeiros gritos. Insultos que a faziam tremer e lhe provocavam medo. “Sempre que ele chegava a casa, eu pegava no meu filho ou na minha filha ao colo para ele não me bater”. Não tinha força para lhe fazer frente. E não queria.
Certa noite ele bateu na filha. A menina que ela queria pôr na escola e que ele não deixou. “Na comunidade islâmica adia-se a entrada das crianças na escola. Como as mulheres estão em casa devem tratar dos filhos”. Ela ainda pensou em ligar para o número de telefone da Associação de Apoio à Vítima (APAV), aquele que tinha visto no cartaz do centro de saúde. Mas tinha medo que ele descobrisse. Que ele vasculhasse os registos do telefone. “Esperei que ele saísse e fui à polícia. Pedi ajuda”, conta.
Passou o dia na esquadra da PSP à espera de um caminho. A Cruz Vermelha encontrou-lhe uma pensão. Desta vez ela manteve-se em segredo. Não partilhou com a família. A APAV acabaria por encontrar-lhe um lugar numa casa de abrigo. Para ela e para as duas crianças. Foi há dois anos.
A vivenda discreta
A vivenda de 500 metros quadrados tem oito quartos e é discreta. Fica entre várias casas de habitação. A morada não aparece em páginas oficiais. Mas, mesmo assim, já houve quem a descobrisse. Três vezes, pelo menos. “Já me apareceram aqui homens à procura das suas mulheres. Só posso concluir que houve fuga de informação e que terão sido elas a dizer onde estavam”, diz ao Observador a diretora técnica da Casa de Abrigo, Cátia Rodrigues.
Muitas das mulheres desconhecem que são vítimas. Vivem em contextos familiares específicos. “Precariedade, violência, álcool, desemprego”. Muitas vezes desconhecem os limites. Acabam, mesmo, por desculpar a violência pelo facto de o marido estar alcoolizado ou perturbado pela falta de emprego, explica Cátia Rodrigues, psicóloga de formação. “Um dos pressupostos para o acolhimento na casa de abrigo é a ameaça de vida. Às vezes andamos no limbo. O facto de muitas mulheres chegarem aqui e não estarem motivadas para a mudança, não quer dizer que não tenham sido vítimas”, explica.
O coordenador e supervisor da rede nacional de Casas de Abrigo da APAV diz ao Observador que a maior parte das mulheres que passam por estas casas desconhecem que são vítimas. Na tese de mestrado sob o tema, “A experiência de residir numa casa de abrigo para mulheres vítimas de violência conjugal”, Daniel Cotrim concluiu o que já outros estudos internacionais tinham concluído. “Havia a ideia de que as mulheres iam para uma casa de abrigo e que já sabiam o que era. Mas não. Só depois percebem as expressões da violência doméstica!”
Por esta casa, que abriu portas há oito anos, já passaram cerca de 200 mulheres. Foi em 2012 que recebeu mais vítimas. 60 no total. A média caiu para metade nos anos seguintes. E Cátia Rodrigues encontra explicação para isso. “Normalmente o tempo de estadia é de seis meses, até as mulheres conseguirem ser autónomas. Mas com a crise e com a dificuldade em encontrar emprego, a estadia tem-se prolongado por cerca de dois anos”. Uma situação que se tem sentido noutras casas de abrigo. E que impede que existam vagas para a entrada de outras vítimas de violência doméstica.
“Em 2013 e 2014 só fiz dois acolhimentos, porque só existiram duas autonomizações”, diz a psicóloga Cátia Rodrigues. O Governo já anunciou que as vítimas de violência doméstica vão passar a ter aulas nas casas de abrigo. O projeto piloto vai avançar, para já, em 16 casas distribuídas por nove distritos. A ideia é que as vítimas possam prosseguir os estudos, aprendam a fazer um currículo ou a mexer no computador.
Ao Observador, a secretária de estado dos Assuntos Parlamentares e da Igualdade, Teresa Morais, reconhece a situação. Embora não a considere uma novidade. “A permanência de mulheres vítimas de violência doméstica em Casas de Abrigo por um período superior a seis meses não é nova. Esses casos sempre existiram, quer por razões de segurança das vítimas, quer por razões relacionadas com as diversas dificuldades que podem surgir no seu processo de autonomização. Naturalmente, que para aqueles casos em que a permanência não se justifica pela existência de um risco para a vítima, mas por razões de natureza social, é preciso que haja condições para apoiar o seu processo de saída”.
As casas de abrigo foram regulamentadas há 14 anos. E os regulamentos têm de obedecer a uma lei publicada em 2006. Daniel Cotrim defende que este sistema devia ser alterado, até porque algumas das regras impostas se assemelham “às de um lar de terceira idade ou de um centro de acolhimento”. “Estas mulheres foram vítimas de um crime, não estão doentes sequer”, lembra.
No estudo, em que falou com seis mulheres acolhidas numa casa de abrigo, percebeu que muitas das vítimas se sentem “presas”. “A questão dos regulamentos, dos controlos, da falta de privacidade estão a replicar a vida que a vítima tinha com o agressor”, defende. E dá o exemplo de algumas experiências que têm sido feitas nos Estados Unidos, de casas de abrigo que não têm regulamentos e que não são secretas. “Quando existem regulamentos, eles são feitos pelas próprias mulheres acolhidas. Elas têm uma participação”, explica. “Está-se a perceber que o facto de a casa não ser mantida no secretismo dá um sentimento de maior liberdade à mulher. E, por outro lado, a comunidade onde estão inseridas está atenta ao fenómeno da violência doméstica. Por outro, intervém na segurança destas mulheres”. “É altura para repensarmos estas medidas de intervenção”, afirma.
A sua tese mestrado, segundo afirma, é o primeiro estudo do género feito em Portugal. “Curiosamente foi baseado num estudo israelita feito em casas de abrigo que acolhem vítimas de violência doméstica israelitas e palestinianas”, diz. Realidades diferentes, mas conclusões idênticas. O facto de estas mulheres se sentirem presas, e de, por vezes, mostrarem uma certa passividade perante o futuro, de desconhecerem o fenómeno da violência doméstica e de não se unirem muito intimamente com as outras vítimas, com quem vivem, é uma realidade idêntica “à detetada noutros países”.
Outro dos problemas que, segundo o especialista, deve ser repensado é o das mulheres com mais de 65 anos que são acolhidas nestas casas. “Muitas não têm pensões nem direito ao rendimento social mínimo. Mas têm o direito de abandonar a casa onde sofreram maus tratos”, sublinha. “Como não conseguem entrar num processo de autonomização, porque já não trabalham, que fazemos?”, interroga – afastando a hipótese de um lar de idosos, até porque elas não aceitam. “Há medidas a serem tomadas a vários níveis.”
90% das mulheres voltam para os maridos
Cátia trabalha de perto com duas outras mulheres. Outra Cátia, Cátia Fernandes, e Teresa Silva, ambas assistentes sociais. As três reúnem já um punhado de histórias de mulheres que por ali passaram. Muitas conseguiram autonomizar-se. Mas a autonomização de grande parte passou pelo regresso à casa onde sofreram maus tratos, junto dos maridos. “Mais de 90% voltam para casa dos maridos”, afirma. Embora só tenham tido conhecimento oficial de uma, com quem continuam a comunicar. “Ela telefona-nos por vezes. E nós acompanhamos o caso. Tornou-se uma mulher mais forte e sempre que passa uma reportagem sobre violência doméstica, por exemplo, ela mostra ao marido. Para ele perceber o que fez e o que não pode fazer”.
Quando recordam as histórias que por ali passaram, não esquecem a das “Manas Medo” como as apelidaram. “Por vezes há casos tão duros que temos de recorrer ao humor negro para não nos deixarmos envolver”, ressalva Cátia Rodrigues. Uma destas duas irmãs assistiu ao homicídio da mãe às mãos do seu companheiro. Ela estava no local de trabalho e ele esfaqueou-a até à morte. A rapariga foi viver para casa da irmã mais velha e percebeu que também ela era vítima de violência doméstica. “Entrou em pânico temendo igual destino para a irmã.” As duas acabaram por ser acolhidas numa casa de abrigo.
“Foi uma situação muito complexa, porque elas sentiam muita culpa por tudo”, explica a psicóloga. Uma sentia culpa porque viu a mãe morrer, a outra sentia culpa porque a mãe tinha tido a opção de emigrar e escapar ao companheiro, mas não o fez para estar perto dela.
Cátia Rodrigues diz que a passagem de uma mulher por esta casa funciona quase como o crescimento de um bebé até à fase adulta. “Chegam aqui bebés e temos que fazer com que se tornem adolescentes e depois adultas. Nem sempre conseguimos chegar à fase adulta”. É que, explica, “é necessária disponibilidade emocional para evoluir”. E nem sempre é assim.
Regulação do poder paternal: encontro na esquadra da PSP
Ania entrou na casa de abrigo com os filhos, uma menina que agora tem sete anos e um filho de três. Apesar de estas vítimas encetarem, por vezes, processos contra os seus agressores, não os podem impedir de ver os filhos. “Há pais que ameaçam suicidar-se se não virem os filhos ou se não lhes disserem onde estão”, diz a responsável pela casa de abrigo. Cada caso é um caso e é avaliado. A equipa técnica traça um plano de segurança e, grande parte das vezes, o ponto de encontro da entrega das crianças é numa esquadra da PSP ou num posto da GNR. Há ainda casos em que, mesmo assim, eles esperam por um momento a sós com as vítimas. “Temos que ter sempre cuidado e nunca deixar que elas sejam perseguidas ou que sejam sujeitas a alguma situação que as coloque em risco”.
O risco. Ania está disposta a corrê-lo agora que vai sair da casa de abrigo. Um protocolo entre a APAV e uma Câmara Municipal (o anonimato de Ania leva à omissão) permitiu que as técnicas lhe encontrassem uma casa, para onde se mudará em breve com os dois filhos. “Ainda não pensámos como vai ser a entrega das crianças ao pai, mas não vamos deixá-la”, garante Cátia perante o olhar amedrontado de Ania. Para a autonomização destas mulheres o Estado financia as casas de abrigo com um valor destinado a equipar as casas das vítimas.
“Além do problema da violência, há outras questões que temos de resolver. Há que incutir alguns hábitos, como por exemplo ao nível da gestão das contas”, diz Cátia. Neste momento Ania está desempregada, mas o dinheiro que ganhou a trabalhar nos últimos dois anos foi poupado, o que lhe permite um fundo de maneio. “Aqui elas não gastam nada”, ressalva Cátia.
Ania afirma estar preparada para a sua nova vida. Mesmo que tenha dúvidas quanto aos laços que vai estabelecer. As amigas que tinha eram as vizinhas. E os maridos não gostam que elas se vejam porque Ania “abandonou” o casamento. Ania não quer regressar à vida que tinha.