Tinha chegado o fim. Aquele momento em que cada um devia seguir o seu caminho. Paula e Horácio não precisavam dos papéis de divórcio, porque não eram casados, mas as discussões sobre quem ficaria com os filhos pareciam não terminar. Delegaram, então, num juiz do Tribunal de Família e Menores do Porto o acordo parental. E as suspeitas adensaram-se. O magistrado estranhou só ouvir falar de duas meninas, quando no papel estava registado um terceiro filho, rapaz, o filho do meio. E ousou perguntar-lhes por ele. A resposta disparou primeiro para uma madrinha, com quem o rapaz passaria grande parte do tempo. Mas, sob pressão, o casal acabaria por confessar: o filho não existia e só tinha sido declarado para que pudessem ter uma casa maior. E mais apoios da Segurança Social.
Paula e Horácio já tinham uma menina com três anos quando decidiriam que estava na altura de mudar de casa. A viver numa casa cedida pela autarquia, a única forma de conseguirem uma casa maior era tendo um outro filho. Da ideia ao ato não foram precisos nove meses. Naquele dia 21 de abril de 2005, os dois deslocaram-se à 1ª Conservatória do Registo Civil do Porto e atestaram que tinham sido pais. O pequeno Luís Filipe Moreira Cardoso tinha nascido no dia anterior pelas 14h55. As suas declarações, de acordo com a lei, foram suficientes para saírem dali com um assento de nascimento nas mãos.
“Formalizado com sucesso o aumento fictício da descendência e, consequentemente, do agregado familiar, os arguidos retardaram por algum tempo o início da execução da fase seguinte do plano traçado”, lê-se no despacho de acusação a que o Observador teve acesso. E só um ano depois, Paula requereu à Segurança Social o abono de família pelo seu segundo filho. Com o requerimento, entregou cópia do assento de nascimento. O abono foi pago pelos serviços entre maio de 2006 e novembro de 2012. Quase seis anos de um pagamento total de 3.375,46 euros, por uma criança que nunca existiu.
Em maio de 2006, novo requerimento. Desta vez entregue à empresa municipal que gere as casas da autarquia a solicitarem uma “habitação social de tipologia superior” daquela em que viviam. Na altura, Paula e Horácio, pais de dois filhos (embora um deles não existisse), viviam num t1. O pedido acabara por ser-lhes concedido, com a atribuição de um t3 no Agrupamento Habitacional da Pasteleira, no Porto.
Como registar um filho?
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Um nome, um pai, uma mãe e um local de nascimento. É quanto basta para conseguir registar uma criança numa Conservatória do Registo Civil. Em 2014, o projeto “Nascer Cidadão” viria a instalar em vários hospitais do País serviços do Registo Civil para que os bebés saíssem dos hospitais já registados. Aqui, é necessário um papel da equipa médica. No entanto, para todas as crianças nascidas em hospitais sem esses serviços, em casa, em instituições ou noutros locais, o registo é feito nas Conservatórias e bastam as declarações de quem regista a criança. Na Conservatória aceitam-se as declarações e acredita-se na boa-fé dos requerentes. Não se exigem documentos clínicos. É quanto basta para fazer nascer uma criança para o Estado. Mesmo que ela não exista.
Até aqui, Paula recebia o Rendimento Social de Inserção como tendo só um descendente. Em julho, acabaria por receber mais 85 euros por mês por ter tido mais um filho. Este valor foi sendo atualizado nos anos seguintes e foi pago até setembro de 2011, num total de 5.524.14 euros. Só foi suspenso nesta altura “por falta de celebração do programa de inserção”. Paula não reclamou.
Paula e Horácio ainda tiveram (de facto) uma segunda filha em 2009, mas pouco depois decidiram separar-se. E foi por esta altura, já em 2010, que o caso acabou por chegar ao Tribunal de Família e Menores do Porto em forma de processo de “promoção e proteção dos descendentes”. Fonte ligada ao processo explicou ao Observador que os dois não se entendiam relativamente à guarda das filhas e que este processo serviu para regular o poder paternal.
Chamados a prestar declarações, Paula e Horácio falavam constantemente nas duas filhas, mas no papel estava o nome de um terceiro filho, Luís — que nunca existiu. Estranhando o facto, o magistrado perguntou primeiro a Horácio, depois a Paula, o que era feito do rapaz. “É filho de ambos, mas costuma estar muitas vezes em casa da sua madrinha de nome Mariza, que vive com um sobrinho”, respondeu Horácio, garantindo que o visitava regularmente. Paula respondeu o mesmo. Ainda justificou que o filho vivia em dois sítios: na casa da madrinha e na casa dela.
Sem qualquer inscrição no colégio ou qualquer sinal do paradeiro da criança, o magistrado do Ministério Público e o juiz, a quem foi atribuído o caso, chamaram novamente os pais da criança. Corria, entretanto, o ano de 2012, Paula e Horácio reiteraram que o filho não vivia apenas com eles, passando temporadas em casa da madrinha e da família paterna, onde se encontravam as irmãs. Estranhamente, diziam não saber qual a escola onde o filho estava inscrito.
O casal arrolou, então, como testemunhas, a mãe de Paula e a tal madrinha. Estas mantiveram a versão da história, dando conta da existência da criança. No entanto, segundo elas, o pequeno Luís viveria agora em Espanha em casa de uns tios paternos. Só mais tarde acabaram por confessar que, afinal, a criança nunca tinha existido.
A mãe de Paula e a alegada madrinha de Luís acabaram acusadas de um crime de falsidade de testemunho. Enquanto Paula e Horácio viriam a ser acusados, já em março deste ano, de um crime de burla tributária e um crime de falsificação agravada de documento.
Paula e Horácio foram entretanto detidos por suspeitas de tráfico de droga, no âmbito de outros processos. Ele foi condenado e está neste momento a cumprir pena de cadeia. Foi lá que foi notificado deste novo processo. Ela foi detida em 2013 e condenada a uma pena suspensa. Os dois aguardam o julgamento deste caso.
Luís só deixou de existir em novembro de 2015, dez anos depois de ter nascido apenas no papel, no âmbito de um processo de justificação administrativa instaurado por iniciativa do Ministério Público, com fundamento na sua falsidade.